Índice de Capítulo

    Embora os subordinados de Laman temessem a ideia de voltar sem ele, não tiveram outra escolha. Antes de partirem, combinaram bem a história que contariam sobre o que havia acontecido ali.

    Durante a perseguição secreta, Eugene Lionheart havia tentado entrar no Deserto de Kazani, e por isso, eles foram forçados a tentar impedi-lo. No entanto, foi impossível se manterem firmes diante da teimosia daquele jovem mestre da família Lionheart, e também não conseguiram convencê-lo com palavras.

    Dessa forma, o capitão Laman decidiu acompanhar Eugene sozinho. Por ora, permitiram que Eugene seguisse até o Deserto de Kazani, desde que prometesse recuar ao primeiro sinal de perigo ou confusão.

    Nenhum deles podia ter certeza de que Tairi Al-Madani, o Emir de Kajitan, aceitaria tal história. Os ferimentos que haviam recebido de Eugene tinham sido tratados, de alguma forma, com poções e magia de cura, mas… no fim das contas, a ordem do mestre fora impedir Eugene de entrar em Kazani, não acompanhá-lo caso falhassem.

    Por causa disso, Laman passou a noite inteira sem conseguir dormir. Após admitir para si mesmo que, mesmo que seus subordinados não tivessem falado, ele não teria suportado muito mais o medo e a dor impostos por Eugene, Laman sentiu-se profundamente envergonhado.

    Dever lealdade ao mestre e manter os lábios selados eram virtudes essenciais para um guerreiro. Mas Laman havia traído seu mestre. Seus lábios, que deveriam estar trancados como um cadeado, haviam se aberto com facilidade. Também se preocupava com o destino de seus subordinados, que voltariam sem ele.

    No entanto, no fim das contas, essa havia sido a melhor escolha. Embora morrer pelas mãos de Eugene fosse um pensamento assustador, o que Laman temia ainda mais era que sua honra, e a de seu mestre, fosse manchada por causa de seu fracasso.

    Tentava se consolar com a ideia de que estava protegendo essa honra ao acompanhar Eugene, mas seu coração ainda não encontrava descanso. Além disso, Laman não conseguia dormir por causa dos cortes e hematomas espalhados pelo corpo, especialmente no rosto, que havia sido repetidamente esmagado contra a areia.

    Do outro lado, Eugene dormia tranquilamente. Enquanto Laman era atormentado por dores no corpo e na consciência, Eugene dormia como um bebê, envolto no Manto das Sombras.

    Laman olhou para ele e clicou a língua, chocado.

    Apesar de ter sido espancado, Laman ainda tinha braços e pernas intactos. Suas mãos e pés não estavam amarrados, e ninguém havia lhe tirado as armas. Se tivesse confiança, poderia atacar Eugene quando quisesse.

    “Será que ele é só arrogante…? Não, impossível”, Laman descartou essa ideia.

    Eugene não se remexia nem roncava. Respirava devagar, com uma expressão serena. Mesmo assim, Laman não se atrevia a se aproximar. Em tão pouco tempo, a violência que sofrera já havia destruído completamente sua vontade de resistir.

    Além disso, Laman ainda não conseguia enxergar nenhuma abertura em Eugene.

    Eugene estava realmente dormindo. A respiração e o pulso indicavam isso claramente. Seria fingimento? Mas por que fingir dormir?

    A derrota de Laman não havia sido por acaso. Tinha sido completamente esmagado por aquele garoto de dezenove anos da família Lionheart. Não foi um golpe de sorte. A derrota foi o resultado natural da diferença esmagadora de habilidade entre os dois.

    “…Será que isso é só hábito?” Laman especulou.

    Imaginava que Eugene estava tão acostumado ao perigo que conseguia dormir profundamente mesmo sem saber de onde viria a próxima ameaça ou em que forma ela apareceria. Talvez a mente estivesse dormindo, mas o corpo ainda pronto para reagir. Laman pensou se deveria testar essa hipótese, mas logo se lembrou de que não tinha capacidade pra isso.

    Com um grunhido de escárnio, continuou cobrindo o corpo com ataduras. Na verdade, chamar aquilo de “teste” era ridículo, considerando que o risco era acabar com a garganta cortada.

    Não havia sentido em se aproximar de Eugene.


    — Vamos andando? — Eugene sugeriu.

    As manhãs chegavam cedo no deserto. Eugene se levantou assim que os primeiros raios da aurora começaram a surgir no céu. Mesmo recém-desperto, seus olhos estavam incrivelmente límpidos e brilhantes.

    — …Tudo bem — Laman concordou com relutância.

    No fim, não havia conseguido pregar os olhos. Ainda assim, não demonstrava cansaço. Também estava acostumado a condições difíceis. Como guerreiro capaz de controlar sua mana com destreza, podia se recuperar do desgaste com um punhado de energia, mesmo sem ter dormido.

    — Será que você está de mau humor porque fui tão rude com você? — Eugene perguntou.

    — De forma alguma — Laman negou.

    — Então é porque eu pisei na sua honra? — Eugene insistiu.

    — …De forma alguma — veio a resposta tardia de Laman.

    — Sua primeira resposta foi rápida, mas essa agora demorou um pouco. Ah, tudo bem se estiver irritado. Eu disse o que disse justamente pra te irritar, e foi por isso que te espanquei também — Eugene admitiu, começando a andar à frente enquanto batia a areia do manto. — Mas isso foi coisa de ontem. A noite passou, o sol nasceu, então vamos começar o novo dia com outra disposição.

    Laman não fazia ideia do que aquele desgraçado queria dizer com esse tipo de fala.

    — Existem Xamãs da Areia no Deserto de Kazani? — Eugene mudou de assunto.

    No meio da confusão de Laman, chegou mais uma pergunta. Ele não conseguiu pensar em uma resposta de imediato e apenas olhou em silêncio para as costas de Eugene.

    — Não faça essa cara de quem não sabe — Eugene advertiu.

    — E-Eu realmente não sei — Laman gaguejou.

    — Quer passar mais um tempo no inferno, na minha mão? — ameaçou Eugene.

    — De jeito nenhum…! Eu juro que não sei. Juro por tudo o que tenho — Laman garantiu.

    Ele estava sendo sincero. E por que Eugene queria saber se havia Xamãs da Areia no Deserto de Kazani? Por que os Xamãs da Areia, que juraram lealdade exclusiva à família real de Nahama, estariam no deserto de Kazani, tão longe da capital?

    — Qual é seu posto? — Eugene perguntou de repente.

    — …Hã? — Laman ficou confuso.

    — Você disse que seu mestre é o Emir de Kajitan. Já que estava até com subordinados, deve ter algum tipo de patente militar — Eugene explicou.

    — Eu sou… o comandante da Segunda Divisão dos Guerreiros da Areia Vermelha, uma unidade sob comando direto do meu mestre — Laman revelou.

    Uma unidade sob o comando direto do Emir. Isso era o mesmo que uma ordem de cavaleiros a serviço de um nobre. O posto de comandante da Segunda Divisão devia ser bastante prestigiado. Com as habilidades que Laman havia demonstrado no dia anterior, esse posto não era desperdício.

    Eugene virou a cabeça para observar o rosto de Laman. Tudo o que viu foi vergonha e medo. Não parecia que ele estivesse mentindo. Agora Eugene entendia por que alguém como Laman, já com um posto tão alto, tinha sido enviado numa missão daquelas.

    Laman era honesto e leal. No entanto, lealdade nunca era uma garantia absoluta. Já a ignorância… essa sim era confiável. Por mais que se ameaçasse, intimidasse ou torturasse alguém, não dava pra arrancar o que a pessoa realmente não sabia. Nesse aspecto, Laman era o bode expiatório perfeito.

    Eugene suspirou.

    — Você é burro, velhote?

    — …Hã…? — Laman ficou perplexo com o insulto repentino.

    — O Deserto de Kazani. Ele costumava ser território do Reino de Turas, certo? — Eugene puxou o assunto.

    — Por que você tá falando de uma coisa tão antiga…? É verdade que há cerca de cem anos era território de Turas — Laman respondeu.

    — Exato. Mas então uma tempestade de areia surgiu do nada e transformou todas as belas terras e florestas em deserto. Como o resto da fronteira com Nahama também virou deserto, Turas não teve escolha senão ceder esse território a Nahama.

    Embora Eugene chamasse de ‘cessão’, aquilo basicamente tinha sido extorsão. Alegando que a expansão do deserto era vontade dos céus, o Sultão de Nahama posicionou seus guerreiros no deserto e começou a realizar exercícios militares. Como Turas era um país pequeno, não podia se dar ao luxo de entrar em conflito com Nahama. E nenhum país justo nesse continente ia derramar o sangue de seus soldados só por pena de uma nação fraca.

    — A desertificação continua avançando até hoje, não é? Já que vocês não conseguem fazer esse tipo de porcaria contra o Império de Kiehl, continuam esmagando os fracos de Turas — havia um tom claro de acusação na voz de Eugene.

    — …Não ouse espalhar esse tipo de absurdo — Laman retrucou.

    — Ao contrário da sua aparência, parece que você é bem ingênuo, velhote. Ou será que só está fingindo ser? — Eugene provocou.

    — Mesmo que o que você esteja dizendo seja verdade… — num tom incerto, Laman argumentou. — Não há chance de que nosso mestre esteja envolvido em ações tão desprezíveis…

    — Suas ordens de esconderem as identidades e me seguirem pelas costas não foram, por si só, bem desprezíveis?

    — I-Isso… Ele só estava preocupado que você pudesse se meter em perigo num deserto traiçoeiro desses…

    — Parece mesmo que você não sabe de nada. Bom, tudo bem. Não é como se importasse muito se você conhece ou não a verdade — Eugene balançou a cabeça ao dizer isso e se virou para a frente. — Mas tem uma coisa que você precisa entender. Eu não vim até um país estrangeiro só pra me enfiar num conflito que não posso controlar, entendeu? Eu posso imaginar por que seu mestre não quer que eu vá pro deserto. Se um estrangeiro se perde no reduto dos Xamãs da Areia, e esse estrangeiro é o jovem mestre da família Lionheart… isso vira uma dor de cabeça pra todo mundo envolvido, não acha?

    Se Eugene fosse só um qualquer, podiam se livrar dele sem preocupação. Não era incomum viajantes sumirem nesse deserto imenso. Mas o desaparecimento do jovem mestre da família Lionheart teria um peso completamente diferente. Se Eugene sumisse no deserto, Gilead, o Patriarca da família, nunca deixaria a situação passar em branco.

    — …Acho que entendo o que está tentando dizer — respondeu Laman, abaixando o olhar. — Se realmente houver… Xamãs da Areia lá, como você está supondo… então, antes que possam fazer mal a você, eu mesmo irei protegê-lo, meu senhor. Mesmo que os Xamãs da Areia estejam sob o comando direto do sultão, deveriam ao menos demonstrar algum respeito pelo meu mestre, o Emir de Kajitan.

    — Seria bom se fosse assim — Eugene disse, sem muita convicção.

    — …Mas, meu senhor… por que deseja tanto ir ao deserto de Kazani? — Laman perguntou, hesitante. — Realmente não há nada lá…

    — Isso é algo que eu preciso confirmar com os meus próprios olhos — Eugene afirmou com firmeza.

    Eugene não sabia ao certo se conseguiria encontrar o túmulo de Hamel naquele deserto. Até certo ponto, tudo aquilo era suposição. Podia ser que não houvesse nada lá. Ainda assim, sentia que precisava verificar com certeza.

    Sem dizer mais nada, Eugene começou a correr pelo deserto.

    “Ele é tão rápido”, Laman exclamou mentalmente, apressando-se para segui-lo.

    Apesar de ter sido espancado na noite anterior, felizmente nenhum osso seu havia sido quebrado. Como passou a noite circulando sua mana em vez de dormir, Laman não teria problemas em acompanhar, mesmo correndo.

    Ou pelo menos era o que pensava. Ainda assim, aquilo se mostrou difícil para ele. Eugene nem parecia correr com força, mas a cada passo, seu corpo deslizava pela areia como se estivesse voando.

    Laman ainda teve tempo de pensar consigo mesmo: “…Será que essas tempestades de areia… são mesmo obra dos Xamãs da Areia?”

    Como guerreiro, Laman não via invasões a outros países como atos malignos. No fim, não havia nada de errado nos fortes tomarem dos fracos. Essa não era apenas a lei do deserto; o mundo todo funcionava pela sobrevivência dos mais aptos.

    Mas usar uma tempestade de areia como forma de invasão… algo assim não era verdadeiramente desprezível?

    Laman sentia que, se fosse pra haver guerra, então que fosse uma ‘guerra de verdade’, onde guerreiros derramassem seu próprio sangue pela vitória. Mas e se o grande sultão estivesse apenas mostrando que valorizava e preservava o sangue de seus guerreiros? Se, ao fazer isso, estivesse apenas guardando esse sangue para o grande dia da guerra pela conquista, então os soldados deveriam se preparar para esse dia com alegria e gratidão.

    Isso era tudo o que um guerreiro poderia desejar.

    Mas parecia que Laman Schulhov não era um verdadeiro guerreiro, pois podia sentir uma emoção traiçoeira começando a se contorcer no fundo de seu coração.

    Laman tentou ignorar esse sentimento.

    Um pequeno gesto, um grande impacto!

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