Capítulo 15: Gilead (3/3)
Depois de nunca ter passado mal mesmo comendo carne em excesso todas as manhãs, ele agora ia engasgar com chá? Com a garganta ardendo, Eugene tossiu violentamente enquanto batia no peito.
Mas essa revelação era algo que ele realmente não conseguia deixar de se surpreender.
O Reino Mágico de Aroth possuía cinco Torres de Magia, as Torres Vermelha, Azul, Verde, Branca e Negra.
Menos de trezentos anos atrás, não existia algo como uma Torre Negra. Ela surgiu após o misterioso Juramento entre o Herói e os Reis Demônios, e centenas de anos se passaram desde então.
Mesmo que Eugene tenha matado mais de uma centena de magos negros em sua vida passada, hoje essa era considerada uma profissão respeitável. Após o Juramento entre o Herói e os Reis Demônios, os magos negros também firmaram um pacto especial com o Herói e, com o tempo, reuniram influência suficiente para erguer sua própria Torre de Magia em Aroth.
De qualquer forma, diferente da Torre Negra, a Torre Vermelha existia desde trezentos anos atrás.
— Está tudo bem? — perguntou Lovellian, olhando para Eugene com preocupação.
— Ah, sim. Eu esto… digo, estou bem — respondeu Eugene entre tosses.
Ele só havia engasgado por surpresa. No entanto, agora que todos olhavam para ele, não conseguia deixar de se sentir constrangido. Eugene pigarreou e pegou um guardanapo. Porém, antes que pudesse começar a limpar o chá derramado na mesa, Lovellian estalou os dedos, e a toalha encharcada secou instantaneamente.
Era magia.
— Parece que ficou bem surpreso.
— Sim, bom… — Eugene abaixou a mão esticada e forçou um sorriso. Em momentos assim, ser jovem novamente provava ser uma vantagem.
“Se ele é da Torre Vermelha… isso quer dizer que é discípulo da Sienna.”
Embora, tecnicamente, Lovellian não fosse um discípulo direto de Sienna. Se Eugene se lembrava bem, o mestre de Lovellian era o discípulo do discípulo de Sienna. Mas, embora estivessem separados por gerações, tanto Lovellian quanto a Sábia Sienna haviam sido mestres das Torres Vermelha e Verde, respectivamente.
Era natural que, trezentos anos atrás, Sienna tivesse se tornado a mais jovem Mestre da Torre de Magia Verde da história de Aroth. Ela era companheira do Grande Vermouth e uma Arquimaga capaz de matar dragões e Reis Demônios. Incontáveis magos haviam procurado a Torre Verde, desejando se tornar discípulos de Sienna.
Além disso, Sienna realizou muitos outros feitos como Mestre da Torre. Ela rasgou todos os textos comuns de magia em Aroth, corrigiu seus erros e reescreveu tudo. Mais ainda, ela não escondia nada ao ensinar os discípulos das outras torres, e até seus colegas, os Mestres das outras torres, recebiam sua orientação.
Ao final de seu mandato, os magos ensinados por Sienna ocupavam cargos de destaque em suas respectivas torres. Seus ensinamentos haviam se perpetuado até os dias atuais, e dois magos renomados que se consideravam discípulos de Sienna tornaram-se Mestres das Torres Vermelha e Verde.
“O mestre do mestre do mestre dele…”
Por mais que pensasse, não parecia provável que Lovellian tivesse conhecido Sienna pessoalmente. Ainda assim, Eugene não esperava encontrar alguém ligado a mais um antigo companheiro naquela ocasião.
“Se é da Torre Vermelha… então sua especialidade é magia de invocação.”
Magia de invocação também era uma das especialidades de Sienna. A casa em que o herói e seus companheiros ficaram durante boa parte de suas aventuras era uma das invocações de Sienna.
— …Você disse que se chama Eugene, certo? — Gilead falou.
Embora tivesse sido chamado diretamente, Eugene não se alarmou dessa vez, e tampouco se engasgou com o chá. Apenas se virou para Gilead e assentiu levemente.
“Já estava esperando que ele me chamasse.”
Desde o momento em que se encontraram em frente à mansão, Eugene sentia o olhar sutil de Gilead sobre si.
— Ouvi uma história e tanto da Tanis — disse Gilead com consideração.
Ao ouvir isso, Cyan começou a morder violentamente o lábio inferior. No entanto, Gilead ergueu a mão e deu um leve tapinha no ombro de Cyan, em sinal de consolo.
— Meu filho… insultou tanto você quanto seu pai — afirmou Gilead.
— Sim, mas não guardo nenhum ressentimento — disse Eugene, endireitando a postura na cadeira. — Pude extravasar tudo durante o duelo.
Gilead apontou — E você venceu o duelo.
— Mesmo se tivesse perdido, não guardaria rancor. Isso apenas significaria que fui fraco demais para proteger minha honra, e, sendo assim, teria que suportar o insulto — explicou Eugene.
— Você é muito mais maduro do que meu filho — disse Gilead, com um sorriso.
Tap.
Com um último tapinha no ombro de Cyan, Gilead continuou — Cyan.
— …Sim — respondeu Cyan, em tom tímido.
— Não me envergonho da sua derrota. Mas me envergonho de ver você evitar o olhar do seu pai por vergonha da sua derrota.
— … — Ciel permaneceu em silêncio.
— Ouvi dizer que o duelo começou porque você o insultou. Mas, mesmo tendo perdido, você não pediu desculpas ao Eugene.
— E-Eu… isso…
— Cyan. Você carrega o sobrenome Lionheart. Isso significa que é descendente do Grande Vermouth. Para estar à altura do sangue que compartilham, é preciso saber respeitar a honra dos outros assim como a própria.
“Mas o Vermouth, aquele desgraçado, nunca pareceu respeitar a minha honra.”
Pensando nessa bobagem, Eugene olhou para o rosto de Cyan. Por causa das personalidades desajustadas dos gêmeos, havia presumido que o pai deles também fosse um canalha. Mas Gilead parecia alguém surpreendentemente sensato.
“Dizem que ele passou três anos fora de casa.”
Três anos é muito tempo para crianças de dez anos, cerca de um terço de toda a vida delas.
— …Desculpa — admitiu Cyan, fungando, com lágrimas brilhando nos olhos.
Ele não estava chorando por arrependimento, mas porque sentia que pedir desculpas era injusto. Eugene percebeu isso na hora, mas não disse nada, já que nunca esperou um pedido de desculpas sincero de Cyan.
Gilead também percebeu a relutância evidente do filho. No entanto, se apontasse isso ali, a conversa se estenderia demais.
Gilead mudou de assunto — …Sinto dizer isso, mas Eugene, não conheço seu pai.
— Isso é natural. Eu mesmo admito que minha família é bem do interior — disse Eugene.
— Foi seu pai quem te ensinou?
— Ele me ensinou o básico, mas o resto aprendi treinando sozinho.
— Que tipo de treino fazia?
— Só treinava com espadas e lanças de madeira… Por causa das proibições da Cerimônia de Continuação da Linhagem, só podia usar armas de treino mesmo.
— Então você não teve ninguém para lhe ensinar?
— Embora tenhamos alguns cavaleiros na propriedade, nenhum deles era realmente bom o bastante pra me instruir.
— Entendo.
Gilead ficou pensativo por alguns segundos. Cyan continuava mordendo os lábios, imerso em seus próprios pensamentos, enquanto os olhos de Ciel brilhavam como se estivesse se divertindo. Eward olhava para Eugene com um olhar vago.
“…Ele entrou em um duelo com o Cyan e venceu?”
“Quem era mesmo esse tal de Gerhard?”
Enquanto esses pensamentos passavam, Gargith e Dezra olhavam para Eugene com olhos arregalados. Ao lado deles, os outros filhos das linhas colaterais também o encaravam em choque.
— …Parece que a Cerimônia de Continuação da Linhagem deste ano vai ser interessante — Gilead quebrou o silêncio com um sorriso.
— Eu também acho — disse Lovellian, que acompanhava a conversa com interesse, assentindo com um sorriso.
A comida começou a chegar da cozinha. No entanto, ninguém tocou nos pratos, esperando por Gilead.
— Não sei se os pratos agradam ao gosto de vocês, mas aproveitem a refeição. — Após essa bênção, Gilead começou a comer.
Em seguida, as crianças também pegaram os talheres. Então, como se estivesse esperando por isso, Eugene imediatamente cortou um pedaço grande de carne para si.
Assim que a refeição começou, o clima na sala ficou um pouco mais leve.
— Mesmo tendo comido tudo aquilo no almoço, ainda está com fome? — perguntou Ciel.
— Eu comi no almoço, mas fiquei me mexendo direto depois disso, então é claro que estou com fome — respondeu ele.
Rindo, Ciel empurrou alguns legumes, como pimentões e cenouras, do prato dela para o de Eugene.
— Nesse caso, coma um pouco do meu também. Não estou com tanta fome.
— Você só está fazendo isso porque não quer comer os legumes.
— Nada a ver, eu gosto de legumes — se justificou Ciel rapidamente, olhando de canto para a expressão de Gilead. — É só que não estou com muita fome mesmo.
Quando os pratos estavam quase vazios, Gilead pousou a taça de vinho e começou a falar — Como já devem ter imaginado, o motivo de termos organizado esse jantar é para explicar o conteúdo da Cerimônia de Continuação da Linhagem deste ano.
Ao ouvirem isso, os movimentos ao redor da mesa foram parando, um por um.
— Na cerimônia deste ano, além dos objetivos tradicionais, também quis dar a todos os membros participantes da família uma boa oportunidade para mostrarem o que sabem fazer — disse Gilead, passando os olhos por todos.
Seu olhar demorou mais sobre Gargith, Dezra e Eugene do que sobre os demais. Embora os três que Eugene classificou como ‘descartáveis’ tenham percebido isso, não sentiram qualquer insatisfação. Deacon, Hansen e Juris sabiam muito bem que não tinham as qualidades necessárias para se destacar na cerimônia.
Gilead continuou — …A Cerimônia de Continuação da Linhagem ocorre a cada dez anos. O conteúdo da cerimônia é decidido pelo Patriarca Lionheart. Eu também fui quem conduziu a última cerimônia. Como devem ter ouvido antes de chegar aqui, na cerimônia passada os doze participantes vagaram por uma floresta.
Gilead balançou a cabeça com um sorriso amargo.
— Apenas os filhos de sangue colateral participaram da última cerimônia. No entanto, na cerimônia deste ano… três dos meus próprios filhos também vão participar. Embora soe estranho vindo de mim, acredito que a tradição da Cerimônia de Continuação da Linhagem é discriminatória demais.
Os três filhos de Gilead pareceram surpresos com essa admissão.
— A Cerimônia de Continuação da Linhagem é uma tradição que favorece os descendentes diretos. Os descendentes colaterais não podem usar armas reais nem treinar a mana até que a cerimônia termine. Participar nessas condições… os resultados não seriam óbvios? Os descendentes colaterais nunca conseguiram vencer os da linha direta.
— … — Todos escutavam em silêncio.
— No entanto, é impossível eliminar uma tradição centenária de uma vez só.
Essa divisão entre linha direta e linhas colaterais existia há centenas de anos.
Recentemente, o irmão de Gilead, Gilford, também havia sido abençoado com um filho. Quando essa criança completasse cinco anos, Gilford seria obrigado a deixar a propriedade principal e se tornar chefe de um novo ramo colateral.
Embora todos fossem descendentes do grande Vermouth, apenas a linha direta do Clã Lionheart podia reivindicar o verdadeiro sangue direto. Por isso, apenas os filhos do Patriarca Lionheart podiam herdar a linha principal. Assim era como o legado da família era transmitido há gerações.
— Os membros das linhas colaterais, por mais diluído que esteja seu sangue, ainda carregam o nome Lionheart. O verdadeiro propósito da Cerimônia de Continuação da Linhagem sempre foi confirmar se aqueles que herdaram o nome Lionheart possuem as qualidades heroicas do Grande Vermouth. Portanto, a concentração do sangue não importa.
“Vermouth”, pensou Eugene enquanto mastigava um pedaço de carne, “seu descendente parece ser um homem melhor do que você foi.”
— Qual o sentido de uma competição cujo resultado já está decidido? Quero confirmar as qualidades heroicas não apenas dos meus filhos, mas também das demais crianças que herdaram o nome Lionheart.
Gilead virou a cabeça para o lado.
— Por isso, ao contrário das cerimônias anteriores, decidi contar com ajuda externa este ano.
— E é por isso que estou aqui. Prazer em conhecê-los, crianças — disse Lovellian com um largo sorriso. — O sermão do Patriarca foi um pouco longo demais, não foi? Eu entendo se estiverem com sono, mas agora é hora de despertarem e prestarem atenção.
Gilead sorriu com amargura. Lovellian, sem se importar, continuou falando.
— Precisamos começar com os preparativos antes de termos certeza, mas a cerimônia deve começar em, no máximo, quatro dias. Se querem saber o que vamos fazer… pretendo conjurar um labirinto ali na floresta.
Lovellian ergueu as mãos. Mana se reuniu entre suas palmas como uma névoa, formando a imagem de um labirinto gigante flutuando sobre a mesa de jantar.
— Todos vocês entrarão no labirinto por entradas diferentes e começarão a explorar. Vários monstros estarão perambulando lá dentro, mas… haha, não precisam se preocupar demais. Ninguém vai se machucar de verdade, nem machucar ninguém.
— Como isso é possível? — perguntou Ciel, inclinando a cabeça.
— Porque tudo lá dentro será uma ilusão criada por magia. Então, o que quer que aconteça lá dentro, não será real. Mas… ainda assim parecerá extremamente real — o sorriso de Lovellian se alargou. — Um monstro que vocês encontrarem pode até cortar o braço de alguém. E, embora esse braço não vá ser realmente perdido, dentro do labirinto, vocês vão sentir como se tivessem sido de fato mutilados.
— Uau… — foi a reação coletiva.
— A magia é incrível, não é? Se tiverem interesse, venham me visitar em Aroth. O grande Vermouth também era um mago excepcional, sabiam?
Ou seja, além da magia de invocação, até magia avançada de manipulação mental estaria envolvida nesse projeto.
“Bom, é o mínimo que se espera de um Mestre de Torre de Magia.”
Eugene escutava em silêncio às explicações de Lovellian.
— Além dos monstros, também colocaremos vários tipos de armadilhas dentro do labirinto. Claro, elas também não serão realmente perigosas.
— Sim! — disse Ciel animada.
Ciel era a única rindo enquanto ouvia Lovellian falar. Os ‘descartáveis’, por outro lado, tinham o rosto tomado pelo medo.
— Assim que todos entrarem no labirinto, só há uma coisa simples a fazer. Ir até o centro e derrotar o monstro chefe.
— Como a gente derrota ele? — perguntou alguém.
— É só matar. Quem aqui já caçou monstros?
— Eu — várias vozes responderam.
Os três da linha principal levantaram a mão. Dos descendentes colaterais, apenas Gargith, Dezra e Eugene ergueram a mão. Eugene tinha uns dez anos quando matou um orc pela primeira vez, espancando-o com sua espada de madeira.
— Será parecido com aquilo. A cerimônia termina quando um dos nove participantes chegar ao centro do labirinto e derrotar o monstro maligno.
— E se a gente não conseguir chegar ao centro? — perguntou Hansen.
— Sem problemas. Se tiverem medo de avançar, podem ficar onde estão. Mas… não vão receber uma pontuação muito boa assim — respondeu Lovellian com gentileza, olhando para Hansen e suas bochechas rechonchudas.
— Se eu matar o monstro chefe… — Eugene perguntou.
“O que é esse tal de ‘monstro chefe’? Mesmo com um público infantil, não é um nome muito infantil?” Eugene balançou a cabeça ao pensar isso.
Ainda assim, seja chefe ou comandante, qual o sentido de matar esse desgraçado?
Seu primeiro impulso foi perguntar isso em voz alta, então…
— …vou ganhar alguma coisa por isso? — decidiu seguir o impulso e fazer a pergunta diretamente.
— Vou deixá-lo escolher um item à sua escolha do cofre subterrâneo da casa principal.
Quem respondeu foi Gilead.
Eugene sorriu amplamente e assentiu com entusiasmo infantil — Uau!
“O que devo pegar, uma espada, uma lança ou um arco?”
Embora a cerimônia nem tivesse começado, Eugene já tinha certeza de que seria o primeiro a atravessar o labirinto.
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