Capítulo 3: Hamel, o Estúpido (2/2)
Durante sua vida, Vermouth teve muitas concubinas além da esposa legítima.
“Ele não parecia alguém muito interessado em mulheres, mas acho que mudou com a idade.”
O Vermouth das memórias de Eugene não era apenas casto, era praticamente ascético. Pensar que um homem assim acabaria com dez concubinas e uma porção de descendentes…
“No fim, ele era humano como qualquer outro, então até que faz sentido.”
Somente os filhos da esposa legítima eram reconhecidos como linhagem direta de Vermouth. Embora a família de Eugene também carregasse o sobrenome Lionheart, era apenas de um ramo colateral.
Mesmo assim, não viviam na miséria. Embora não chegasse aos pés da propriedade principal na capital, a mansão da família de Eugene era luxuosa o bastante para parecer extravagante em meio ao interior. Então, mesmo como descendentes colaterais, ainda eram tratados conforme sua posição.
Dentro dessa mansão espaçosa, o ginásio gigantesco era o maior símbolo de imponência. Descendentes que herdavam o sangue do Grande Vermouth, o Herói, o Deus da Guerra, o Mestre-de-Tudo, não tinham o direito de negligenciar o treinamento. Essas palavras tinham sido marteladas na cabeça de Eugene desde pequeno.
— De novo, não…
Gerhard Lionheart olhava para o filho de dez anos com olhos cansados. Embora também tivesse sido diligente em seu próprio treinamento desde jovem, o esforço de seu filho já deixava o dele no chinelo.
Apesar de ser um descendente do grande Vermouth, Gerhard não tinha talento algum para as artes marciais.
— …quebrou de novo.
Sempre que via o filho, era tomado por sentimentos contraditórios. Desde o comportamento nada infantil até os olhos afiados, sem um pingo de inocência, Gerhard sentia que havia sempre uma certa distância entre eles. Mesmo tendo perdido a mãe ainda pequeno, Eugene jamais chorou pela esposa falecida.
E não era só isso. O talento do filho… era imenso, tão grande que era difícil acreditar que compartilhavam o mesmo sangue.
— Ele é um monstro.
Mesmo sendo um pensamento inapropriado sobre o próprio filho, às vezes Gerhard sentia medo. Ainda com apenas dez anos, sem nem ter começado a mexer com mana, sua habilidade com uma espada de madeira era algo que precisava ser visto para ser acreditado.
— Só estava balançando a espada, e ela quebrou.
Eugene abaixou a espada com um estalo na língua. A espada de madeira tinha um núcleo de ferro, pesada demais para ser manejada com a força de uma criança. Mesmo assim, Eugene insistia em usar uma espada como aquela desde os sete anos.
No começo, Gerhard achou que fosse apenas teimosia de criança. Chegou a pensar que seria engraçado ver Eugene tentando erguer aquilo com lágrimas nos olhos. Mas já se passaram três anos desde então. Agora, Eugene manejava aquela espada pesada com facilidade e ainda acrescentava sacos de areia quando o peso inicial já não era suficiente.
Gerhard engoliu seco ao olhar o chão coberto por pedaços da espada quebrada e o boneco de treino completamente destruído. Quanto tempo fazia desde que tinham trocado aquele boneco? Uns três dias? Mas isso nem era motivo de surpresa. Todos os bonecos de treino do ginásio já tinham sido substituídos em algum momento.
— O ferreiro da vila é um lixo — resmungou Eugene.
Embora duras demais para a boca de uma criança, Gerhard não se deu ao trabalho de repreender. Aquilo fazia parte do jeito de ser de Eugene. Passara a infância tentando corrigir os modos do filho, mas o temperamento selvagem dele não mudava.
— Ele não sente vergonha de aceitar dinheiro por essa porcaria? Devia ser chamado e levar uma surra, mas o senhor, pai, é misericordioso demais.
— Isso… cof… Não perca tempo com isso. Da próxima vez, vamos pegar algo mais resistente.
— Não precisa mais do boneco de treino. Me consiga um bloco de ferro puro. Vai apanhar de espada de madeira mesmo, então não precisa ter forma.
Gerhard apenas olhou para o filho, sem saber o que responder. Reparou que o garoto já tinha um físico tão rígido que mal parecia ter dez anos. Para ser sincero, se lutassem no mano a mano, suspeitava que perderia…
— Eu gerei um homem das cavernas…
Gerhard não conseguia sentir alegria pura com o talento do filho. Era porque achava que o menino era um monstro? Não, não era isso. Entre os muitos sentimentos que nutria por Eugene, havia também orgulho. Ao contrário do pai, Eugene tinha nascido com um talento brilhante. Como não sentir orgulho disso?
Mas junto com esse orgulho vinha também um sentimento de culpa. Era um fato inegável que, como pai, ele não tinha influência alguma. Só porque todos os descendentes de Vermouth tinham o sobrenome Lionheart, não significava que todas as famílias eram tratadas da mesma forma. Já se passavam centenas de anos desde que o ramo de Gerhard havia sido empurrado para o interior, e eles eram ignorados até mesmo entre os outros ramos colaterais.
Será que devia contar ao filho como as coisas realmente funcionavam? Não, melhor não. Afinal, esse tipo de assunto não era complicado demais para uma criança entender?
— Não posso usar uma espada de verdade?
Sem pensar duas vezes, Gerhard balançou a cabeça, amargo.
— Ainda não pode.
— Por causa da Cerimônia de Continuação da Linhagem?
— Isso mesmo. Se você participar da cerimônia daqui a três anos, vai poder usar uma espada de verdade.
— Não dá pra manter isso só entre nós dois?
— Algo assim… não é permitido. Como um Lionheart, não posso simplesmente ignorar as tradições da família.
A Cerimônia de Continuação da Linhagem era uma tradição da família Lionheart realizada a cada dez anos. Nela, todas as crianças entre dez e quinze anos com o sobrenome Lionheart, tanto da linhagem direta quanto dos ramos colaterais, eram convocadas para a propriedade principal.
O motivo da cerimônia era simples: decidir quem era mais digno de carregar o nome Lionheart. Afinal, não era uma vergonha se dizer descendente do herói sem antes provar o próprio valor? Até lá, ninguém podia empunhar uma arma afiada de verdade antes que a cerimônia terminasse.
“Que tradição idiota.”
Eugene não deixou escapar o pensamento, mas toda vez que ouvia falar da Cerimônia de Continuação da Linhagem ou das tradições da família, sentia nojo e revolta crescerem no estômago.
A única função real da cerimônia era suprimir os ramos colaterais.
As crianças dos ramos colaterais não podiam treinar com armas reais antes da cerimônia. Também não podiam treinar o uso de mana. Mas os filhos da linha direta, que viviam na propriedade da capital, podiam usar qualquer arma desde pequenos e começavam a treinar mana assim que aprendiam a andar.
“É isso que querem. Enfiar desde cedo na cabeça das crianças que os colaterais nunca vão superar os diretos.”
Era um tipo de humilhação tão óbvio que até uma criança perceberia. Muito mais Eugene, que, apesar do corpo jovem, tinha a mente de um adulto.
Gerhard não conseguia enxergar o que se passava na cabeça do filho, mas tinha alguma ideia só de olhar a expressão carrancuda. Embora achasse o rosto irritado do garoto até bonitinho, sua culpa ficava ainda mais pesada.
“Se ao menos ele tivesse nascido na linhagem direta…”
O talento do filho era brilhante, mas os limites impostos aos ramos colaterais da família Lionheart eram claros. Na cerimônia daqui a três anos… mesmo que Eugene fosse tão excepcional a ponto de ser difícil acreditar que ainda era uma criança, não havia como competir com os herdeiros de verdade, criados na casa principal.
Essa realidade atormentava Gerhard. Se ao menos Eugene tivesse nascido sem talento, como o pai… então não precisaria encarar o abismo entre o próprio talento nato e os desafios impostos pela realidade.
— Por que essa cara, pai?
— Não… não é nada.
“Claro que é. Dá pra ver na cara dele que tá se culpando de novo por não poder me dar as melhores oportunidades.”
Eugene clicou a língua enquanto encarava Gerhard. Por causa das memórias tão nítidas da vida passada, era difícil vê-lo como pai de verdade. Mas não dava pra negar: ele tinha renascido como filho de Gerhard.
— Pai. Já faz tempo… que tal uma lutinha de brincadeira?
— Hm… O quê?!
— Eu disse, uma lutinha.
Eugene evitou usar a palavra ‘duelo’. Estava tentando poupar os sentimentos do pai, já que soaria humilhante ser desafiado a um duelo pelo próprio filho de dez anos. Por isso usou a palavra ‘brincadeira’, mas o rosto de Gerhard ainda assim congelou de horror.
Primeiro sentiu o peso da barriga. Depois, olhou pro braço do filho balançando aquela espada de madeira com núcleo de ferro como se fosse um brinquedo.
— V-Vamos deixar isso pra outro dia.
Se o filho de dez anos acabasse usando força total ‘brincando’… Gerhard recuou imediatamente, suando frio só de imaginar.
Eugene riu baixinho enquanto via o pai fugir.
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