Capítulo 7: Os Lionheart (4/5)
Cyan não era um idiota. É claro que sabia que Eugene estava segurando uma lança e a balançando como exercício de treinamento.
No entanto, era a primeira vez que via um método de treinamento tão anticientífico. Usar um gibão de malha várias vezes maior que o corpo, amarrar sacos de areia nos braços e balançar uma lança que também estava carregada com sacos de areia, dava mesmo pra chamar isso de treinamento?
Pelo menos na visão de Cyan, esse método não fazia sentido algum. Era bárbaro e extremo demais. Ele estava apenas balançando e estocando a lança de forma descuidada, sem o mínimo de estilo ou técnica, e tinha tão pouco controle corporal que mal conseguia se manter firme; como algo assim podia ser considerado treino?
“Esse caipira. Está se matando só pra chamar um pouco de atenção.”
Mesmo que o gibão fosse grande, só de ver o estado em que se encontrava, dava pra saber que tinha sido feito com a sucata mais barata possível. Isso queria dizer que não podia ser tão pesado quanto parecia.
Quanto aos sacos de areia, mesmo que parecessem pesados, dava pra perceber que, apesar do couro grosso por fora, estavam quase vazios, pelo modo como saltavam enquanto ele se movia.
“Mesmo que ele queira chamar atenção, deveria haver um limite pra tanta idiotice. De onde é que ele tira coragem pra vir aqui e fazer esse tipo de palhaçada…?”
Na verdade, ele até entendia. Aquele sujeito era um caipira vindo de algum canto do interior que ninguém conhecia, e mesmo entre os ramos colaterais, Eugene era o mais baixo dos baixos. Provavelmente resolveu fazer esse tipo de cena no primeiro dia, animado por alguma palavra de encorajamento dos pais.
Sem um truquezinho desses, ele não teria chance nenhuma de receber qualquer atenção. Embora o fato de tudo ser tão obviamente falso tornasse a coisa até engraçada.
Mas, infelizmente pra ele, o caipira ter ousado chamar Cyan de idiota não tinha graça nenhuma, e na verdade, era revoltante. Respirando fundo pra se acalmar, Cyan apontou o dedo pra Eugene.
— Peça desculpas.
— Pelo quê? — perguntou Eugene.
— Você tem a ousadia de fingir ignorância? Peça desculpas por ter insultado minha inteligência!
— Foi mal — respondeu Eugene imediatamente.
No entanto, Cyan não ficou satisfeito com aquele pedido de desculpas. Estreitou os olhos e ergueu o queixo com orgulho.
— Abaixe a cabeça e peça desculpas com mais respeito! — exigiu Cyan.
— Nós não temos a mesma idade? — Eugene perguntou sem mover um centímetro da cabeça. — Você tem treze. Eu também tenho treze. Isso quer dizer que somos colegas da mesma idade, então por que eu abaixaria a cabeça?
— Não tem como eu e você sermos amigos!
— Não somos amigos? Então por que você tem falado comigo como se fôssemos, desde que chegou?
Eugene escondeu o constrangimento que sentia por dentro com um estalo de língua. Sentia vontade de perguntar a si mesmo: ‘O que é que você pensa que está fazendo?’
Somando os anos da vida anterior à idade atual, já tinha mais de cinquenta anos. Com uma diferença de idade dessas, não era ridículo estar brigando com um pirralho de treze anos, ainda por cima um descendente de um velho rival?
“Bom, e daí? Minha vida passada é minha vida passada. Agora, eu também tenho treze.”
Como Cyan não respondeu, Eugene pressionou:
— Como eu disse, que jeito é esse de falar comigo? Então você não entende nada de lanças nem de etiqueta?
— Isso… — Os olhos de Cyan se arregalaram, sem palavras.
Como alguém que sempre foi mimado desde pequeno, cresceu cheio de regalias e não estava acostumado a esse tipo de briga infantil.
— Isso… Isso é ousadia demais…
A maior vantagem de ser criança era poder agir por impulso sem nenhum filtro sempre que quisesse. Então, mesmo não estando familiarizado com esse tipo de discussão, Cyan recorreu ao que mais conhecia, extravasar emoções nos outros. Com passos largos, avançou até ficar cara a cara com Eugene.
— Você realmente não conhece seu lugar…! Só porque seu sobrenome é Lionheart, acha mesmo que é um dos mesmos Lionhearts que nós?
— Não. Tenho uma boa noção da diferença. Sou de uma linha colateral, e você é da linha direta. — Eugene levantou o dedo e apontou para a mansão da família principal. — Aquela é a sua casa. A minha… em que direção era mesmo? De todo modo, fica bem longe daqui.
— Mesmo sabendo disso, ainda ousa bancar o arrogante diante de mim? — acusou Cyan.
— Eu não banquei nada. Só te informei de uns fatos que parece que você não percebeu. Primeiro, você perguntou o que eu estava fazendo enquanto me olhava, então eu respondi. Depois mandou eu pedir desculpas, e eu pedi.
— Você é mesmo insolente — cuspiu Cyan, tapando o nariz. — E além disso, tem um fedor vindo do seu corpo. É o cheiro de esterco de vaca do interior misturado com seu suor! Tá fedendo muito, muito mesmo.
— Nunca cheguei perto de esterco de vaca na vida, então quem você está dizendo que cheira a isso? — Eugene perguntou com curiosidade.
— Se for assim, então é o cheiro do seu próprio cocô…! De qualquer forma, você fede.
— Vou me lavar daqui a pouco.
— Não, vá agora. E quando terminar, vá limpar a carruagem em que você veio também!
— A carruagem?
— Porque o cheiro de merda do seu corpo com certeza ficou impregnado no assento! Então estou mandando você limpar!
— E por que eu faria isso?
— Porque foi você quem deixou seu cheiro espalhado por toda a carruagem! — Cyan gritou, elevando a voz com estridência.
Por estarem tão próximos, cada grito de Cyan fazia saliva voar na direção de Eugene. Este franziu a testa e deu um passo para trás. Embora tivesse recuado apenas para não ser salpicado, Cyan o olhou de cima com um sorriso de superioridade, achando que havia feito Eugene ceder.
— Além disso, você precisa abaixar a cabeça e se desculpar comigo. Ainda não aceitei suas desculpas por me chamar de idiota, por dizer que eu não sabia o que era etiqueta e por ousar se colocar no meu nível sendo apenas um descendente colateral. Tudo isso precisa—
Sem esperar que Cyan terminasse, Eugene se virou para Nina e disse:
— Nina.
— S-Sim.
— Você é minha atendente pessoal, certo?
— Sim… Embora eu não seja digna desse papel, fui temporariamente designada como atendente pessoal do Mestre Eugene.
— Nesse caso, em vez de ficar aí derretendo no sol, vá limpar a carruagem em que eu vim.
— …Como?
Nina já havia decidido que, se Cyan e Ciel perdessem o interesse e fossem embora, ela, naturalmente, iria limpar a carruagem sozinha. Então, não achou que Eugene estava lhe dando uma ordem irracional, era apenas uma questão de fazer a tarefa agora em vez de depois.
No entanto, Nina não conseguia entender por que Eugene dava essa ordem naquele momento. Ele não percebia que um dos gêmeos demoníacos estava bem na frente dele? O comportamento de Eugene mostrava um total desprezo pelas ordens de Cyan.
— O que você pensa que está fazendo? — explodiu Cyan.
— Só estou mandando limpar a carruagem — explicou Eugene.
— Eu mandei você limpar!
— E por que eu faria isso se tem alguém que pode fazer por mim?
— Eu te dei uma ordem!
— E quem é você pra me dar ordens?
— Eu… Eu sou Cyan Lionheart.
— Ok, e eu sou Eugene Lionheart. Prazer em conhece-lo — Eugene acenou com desinteresse.
Ciel levou as mãos ao rosto, tentando conter um largo sorriso enquanto ria, mesmo com Cyan ficando de queixo caído.
— E eu sou Ciel Lionheart — disse ela, ainda rindo.
Após lançar um breve olhar para sua irmã atrevida, Cyan respirou fundo.
— Você… não tem como eu me dar bem com você.
— Que decepção — comentou Eugene com um olhar entediado.
Ignorando Eugene, Cyan continuou:
— Porque você continua ignorando minhas ordens.
— Isso porque não estou em posição de ter que obedecer às suas ordens.
— E além disso… você também me insultou pela última vez — concluiu Cyan.
— Nossa, que dramático — foi a última resposta espirituosa de Eugene.
Cada palavra que saía da boca de Eugene atiçava ainda mais a raiva no peito de Cyan.
Por que ele ainda estava ali discutindo com esse desgraçado? Não era pra isso que tinham ido até aquele caipira.
Como jovem mestre da família principal, uma vez que dava uma ordem, o outro deveria obedecer sem questionar. A cabeça de Cyan estava prestes a explodir de teimosia e orgulho ferido.
— Então, irmão, você vai deixar barato? — Ciel se apoiou nele, piscando os cílios com expectativa.
— Um duelo — respondeu Cyan à pergunta não dita.
Aquilo não era uma tentativa de impressionar a irmã, mas sim porque Cyan não aguentava mais ser menosprezado. Depois de tamanha falta de respeito vinda daquele caipira, se não fizesse nada, sabia que passaria dias sendo provocado por Ciel.
— Você me menosprezou e me insultou. Sendo assim, devemos duelar — declarou Cyan.
— Que lógica maravilhosa — Eugene riu do quão ridículo era o raciocínio de Cyan.
Nunca teria imaginado que um moleque de treze anos fosse mesmo lançar um desafio de duelo.
— Ei, camarada, um desafio de duelo não é algo que se faz tão à toa — aconselhou Eugene.
— Quem é seu camarada?! — retrucou Cyan, furioso.
— Se não quer ser meu amigo, tudo bem. Mas então não diga algo de que vai se arrepender. Só vai embora e para de me encher.
— Você tá com medo, né? — Cyan ergueu o queixo com orgulho, como se já soubesse que Eugene reagiria daquele jeito.
Embora fosse uma provocação óbvia, Eugene semicerrava os olhos enquanto repetia:
— Medo?
— Isso mesmo. Está na cara que você tá com medo. Se estiver com tanto medo de me enfrentar, então peça desculpas logo.
— E o que eu faço se eu não estiver com medo, mas também não quiser lutar, nem pedir desculpas?
— Você não sabe o que é honra?
— Sei sim. E sei também que não é uma palavra que se deva usar tão levianamente.
— Você… tá me insultando de novo?
Por alguma razão, Cyan se sentia profundamente ofendido toda vez que Eugene falava. Por fim, sem conseguir suportar mais, Cyan levou a mão até um bolso no peito.
— Não faça isso — disse Eugene com uma careta. — Um duelo não é algo em que se entra por impulso.
“Esse filho da puta. Quem ele pensa que é pra ficar me dizendo o que fazer?” Cyan pensou, franzindo o cenho enquanto tirava o lenço do bolso.
— Se está com medo, então admita logo! Não tente fugir do nosso duelo com essas desculpas! Seus pais não te ensinaram o que é honra?!
— Oh — Eugene disse, inclinando a cabeça em resposta àquelas palavras acusatórias.
Enquanto Eugene o olhava como se ele fosse idiota, Cyan se alegrou achando que ele finalmente tinha caído na provocação. Então estendeu o lenço e o abriu bem, convidando Eugene a olhar de perto.
— Essa é a última vez que vou dizer. Me peça perdão e então…
— Joga logo — disse Eugene enquanto desamarrava os sacos de areia presos ao corpo. — Você queria um duelo, então joga isso de uma vez.
— …Hã? — respondeu Cyan, sem entender.
— Eu disse, joga.
Bang!
Primeiro, os sacos de areia do braço esquerdo caíram no chão. A expressão de Cyan congelou e depois endureceu ao ver a nuvem de poeira que subiu com o impacto.
— …Você…
— O lenço. Vai jogar ou não? — pressionou Eugene.
Bang!
Depois, os sacos do braço direito também caíram. Por fim, Eugene tirou o gibão de malha e o lançou para trás. O colete voou uma boa distância antes de cair no chão com um estrondo pesado. Cyan ficou de boca aberta diante daquela cena.
— Uwah — Ciel, que assistia a tudo como uma espectadora, soltou uma exclamação surpresa.
Eugene se abaixou e começou a tirar os sacos de areia amarrados nas pernas.
— …Você… Você deve ter treinado sua mana…! — gritou Cyan, que até então estava paralisado com a boca escancarada.
Os filhos dos ramos colaterais não podiam treinar sua mana antes da Cerimônia de Continuação da Linhagem. Era uma tradição antiga da família Lionheart. Somente os filhos da casa principal podiam treinar a mana e empunhar armas reais desde cedo.
E agora, essa tradição estava sendo pisoteada bem na sua frente. Aquilo já não era algo que ele pudesse responder com mera irritação ou birra.
— Não, eu não treinei — respondeu Eugene com uma expressão confusa.
Ele não estava mentindo. Poderia ter começado a treinar sua mana ainda bebê, mas não o fez.
Não queria causar problemas desnecessários para seu pai, Gerhard; além disso, como tinha reencarnado como descendente de Vermouth, queria seguir o próprio método de treinamento de Vermouth.
— Isso é mentira…! Sem treinar sua mana, como conseguiria aguentar esse peso?!
— É o resultado do treino que faço desde os sete anos.
— Não minta pra mim!
— Você nem tentou fazer igual, então por que continua me acusando de mentir? Se ainda tiver dúvidas, pode comprovar durante o duelo.
Eugene se sentou e começou a desamarrar os sacos de areia da lança. Cyan observava tudo com os olhos arregalados, quando sentiu o olhar empolgado da irmã pousar sobre ele. Também sentia o olhar assustado de Nina, que parecia não saber o que fazer. Os outros servos do anexo também tinham notado a confusão no ginásio e estavam reunidos nas janelas.
Foi Cyan quem falou primeiro em duelo. Também foi ele quem puxou o lenço, insistiu mesmo diante das recusas de Eugene e ainda questionou sua honra. Considerando tudo isso, ele não podia recuar depois de ter chegado tão longe. Além disso, precisava confirmar o pecado de um descendente colateral ter treinado a mana antes da cerimônia.
Se fosse confirmado que Eugene treinou sua mana, ele seria punido. Mas se Cyan recuasse e ficasse calado, sua irmã o zoaria não só por alguns dias, mas pela eternidade. Então, antes de qualquer coisa, Cyan pegou uma espada de madeira que estava caída por perto, a mesma que Eugene usava mais cedo.
— …Eu te desafio a um duelo! — gritou Cyan, jogando o lenço em direção a Eugene.
O lenço flutuou até pousar sobre o ombro de Eugene, que naquele momento terminava de desamarrar o último saco de areia da lança.
— Aceito — disse Eugene com um aceno de cabeça, levantando-se.
Cyan estava empolgado com o primeiro duelo da vida. No momento em que lançou o lenço, o coração já batia acelerado de excitação. Aquele idiota arrogante era um pecador que desrespeitara as tradições da família. Como ele deveria puni-lo? De que maneira devia dar uma lição nesse tolo, para que sua irmã pudesse admirar sua grandeza?
Mas seus pensamentos pararam abruptamente aí.
Assim que se levantou, Eugene avançou com a lança.
Sabendo que estava apenas com uma espada de madeira na mão direita, Cyan recuou alguns passos para manter distância, mas ainda assim não conseguiu reagir direito ao movimento da lança.
Bam!
A ponta da lança acertou o estômago de Cyan.
— Kuargh!
Com esse grito, Cyan saiu rolando pelo chão.
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