As estrelas estavam mortas, e o céu era tingido somente por um tom carmesim, iluminado por bolas de fogo ardentes. Acima de uma montanha de cadáveres, havia um cavalo vermelho, assombrosamente magro a ponto de seus ossos perfurarem a própria pele. Onde seus olhos deveriam estar, não havia nada além de uma fina camada lisa de pele. Um cano estourou e a água se misturou ao sangue dos mortos.

    Um punho coberto de sangue ergueu-se lentamente de um espelho estilhaçado, sujo de vômito, suor, sangue e lágrimas.

    Mais uma vez, Kenji Hayashi acordou com o barulho do despertador que marcava 05h00. Apesar do pesadelo medonho, ele permaneceu calmo. Não se levantou, não deixou de abraçar o cobertor, nem desligou o alarme que continuou tocando por longos dois minutos.

    Deitado de lado, seus olhos exaustos vagaram até o despertador sobre a cômoda desgastada pelo tempo de gerações. Após o alarme cessar, ele esticou a mão e derrubou o aparelho no tapete ao lado da cama, e que estava em frente à cômoda.

    Kenji fechou os olhos e se levantou com grande esforço. Depois, quase cambaleando, seguiu em direção à porta. Sua mão segurou a maçaneta gelada e a girou. Quando enfim passou pelo batente, juntou ambas as mãos e penteou seus cabelos alvos como a neve para trás à medida que abria seus olhos âmbar. No entanto, alguns fios se recusaram a permanecer deitados e caíram sobre sua face.

    — Maldita Fundação — resmungou, coçando as nádegas enquanto se dirigia ao banheiro.

    Puxou a cortina velha e empoeirada, que cumpria o papel de porta, e entrou no cômodo. Ele urinou sentado, recostado no vaso sanitário, enquanto olhava para o teto mofado.

    “Eu realmente não quero sair do Japão…”

    Em seguida, levantou, se despiu e entrou no box de acrílico.

    A água fria causou arrepios por todo o seu corpo esbelto, mas ele não recuou nem um centímetro. Seu cabelo branco, encharcado, caiu sobre as sobrancelhas e sombreou seu olhar caído que fitava cegamente o ralo, como se estivesse em um transe de indecisões ou em um devaneio imersivo. Somente quando a água do chuveiro parou gradualmente de cair, ele voltou à realidade, e se lembrou imediatamente de algo.

    “Droga, esqueci de pagar a conta de água.”

    Com um suspiro preguiçoso, Kenji se enxugou, antes de jogar a toalha sobre o ombro e seguir de volta ao quarto.

    Vestiu uma calça, camisa, penteou o cabelo para trás com um pente quebrado e guardou seu celular de botão no bolso. E seguiu adiante, para fora de sua pequena casa, ignorando a minúscula cozinha, composta apenas por um fogão, uma pia e uma cômoda que fazia papel de armário.

    Não havia outros pedestres, as ruas estavam completamente vazias, exceto por alguns carros estacionados em frente às casas. Os raios de luz precoces foram engolidos pelas nuvens densas e cinzentas, dando a impressão de que a noite havia acabado de cair.

    Essa calmaria e silêncio, trouxe um pouco de paz para o seu coração ansioso e alívio para sua mente preocupada.

    Ao chegar na cafeteria, ele abriu sutilmente uma das portas duplas de vidro, passando de fininho, como se estivesse invadindo o estabelecimento — e, estranhamente, olhou para trás, para ter certeza de que ninguém estava o seguindo ou o viu entrando.

    As cadeiras, todas vazias, feitas de madeira escura envolta das pequenas mesas redondas, contrastavam com o piso bege. Havia somente duas fileiras de mesas, uma à esquerda e outra à direita.

    De repente, um sorriso exagerado se abriu no rosto de Kenji no momento em que seus olhos notaram um garoto sentado próximo ao balcão. Ele não hesitou em se aproximar, dando passos longos e deliberados.

    — O que você faz aqui, Ryo? Você nunca vem à cafeteria pela manhã.

    Os olhos castanhos de Ryo, transbordando um tédio que camuflava uma intensa raiva, se fixaram no sorriso largo e bobo. Mas ele se manteve em silêncio, saboreando amargamente sua doce xícara de café.

    — Você não está bravo comigo, está? — Kenji indagou, se sentando animadamente em frente ao garoto aborrecido.

    — Idiota — Ryo resmungou.

    — Você está bem?

    — Idiota.

    — Ainda trabalha naquela lanchonete?

    — Idiota.

    — Como vão às gatinhas?

    — Idiota.

    — Vo…

    — Idiota.

    — Sa…

    — Idiota. Idiota, idiota. Você é um completo estúpido, Kenji! — Ryo se levantou de repente e arremessou a xícara no chão; os cacos voaram pela cafeteria. Neste momento, o sorriso de Kenji já havia se quebrado. — Você não pode sair do Japão!

    O batimento cardíaco de Kenji acelerou, e a culpa escorreu por sua bochecha em forma de suor. Seu semblante se desfez em vergonha, e ele não teve coragem nem para encarar a gola da camisa de Ryo. O que lhe restou foi se afundar em um silêncio constrangedor.

    — Que tipo de emprego é esse? Disse que amava este lugar! E agora vem com essa de sair do Japão!?

    — Eu… Me desculpe.

    — E sua família?! A Yoki, sua mãe e eu! — Ofegou por alguns segundos, seu peito subia e descia sem pausa.

    Ele sentou-se de volta na cadeira. Embora estivesse mais aliviado depois de desabafar, sua carranca indignada permaneceu inalterada e fitando Kenji que, mesmo demonstrando apenas vergonha e culpa, ele estava se remoendo internamente, desejando mais que tudo contar o motivo pelo qual deixaria o Japão em breve. E ele ponderou, debatendo consigo mesmo se deveria revelar o motivo ou não.

    Depois de longos segundos silenciosos, a paciência de Ryo alcançou o limite. Usando a mesa como apoio, se colocou de pé com frustração e seguiu para fora da cafeteria.

    Enquanto ele se aproximava da saída, Kenji soube que precisava dizer algo, que precisa confortá-lo de alguma forma. Então ele encheu moderadamente o peito de ar, soltou um suspiro, e disse: — Ryo. Eu prometo… prometo que voltarei em alguns meses! E nunca mais vou embora!

    Ryo, congelado em frente à porta dupla, não conseguiu evitar torcer seus lábios num sorriso meigo, provocado pelo seu coração que batia com grande vitalidade eufórica.

    — Você é um sem noção…

    A luz do Sol brilhava intensamente, trazendo vida ao pacato bairro de Kenji. Seus passos, embora rápidos, carregavam um tom de relutância e ansiedade, como se hesitasse em seguir adiante para onde se dirigia.

    As olheiras profundas, marcando seu semblante desanimado, chamavam a atenção de alguns pedestres por onde passava, mas não era como se ele se importasse. Ter recebido uma repreensão tão severa de Ryo o deixou abatido, no entanto, não o fez mudar de ideia, porque sair do Japão era uma obrigação no momento.

    Quando enfim chegou ao seu destino, em frente a uma padaria chique e movimentada, se recostou ao lado da porta dupla do estacionamento. Seus olhos vagaram até o limite de sua curiosidade. Enquanto observava os pedestres — como e o que vestiam, calçavam, o que carregavam e suas fisionomias — pensava consigo mesmo:

    “Onde foi que eu me meti? Merda…”

    “De qualquer forma, eu preciso fazer isso.”

    Buscando algum tipo de alívio, fechou os olhos e visualizou a escuridão distorcida pela iluminação intensa do sol. Não pensou e nem procurou boas memórias, apenas observou as imagens confusas sob suas pálpebras. Ao soltar um suspiro cansado, devolveu a visão aos seus olhos novamente. Um carro preto de luxo o aguardava com o motor ligado. A porta traseira estava aberta e, dentro, havia uma moça de cabelos amarrados em uma longa trança única.

    — Entre — disse ela.

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