Kenji Hayashi despertou lentamente de um longo sono. Suas pálpebras pesadas deram à luz de mais uma manhã às íris de mel. Usou o antebraço como apoio e deslizou preguiçosamente para cima com um grunhido, sentindo uma forte dor aguda na coluna. Era como se alguém tivesse martelado suas costas no meio da noite enquanto dormia.

    — Merda! Eu fui atropelado?! — Recostou-se com força na parede, para então, finalmente perceber que havia dormido no chão do corredor.

    Ele revirou os olhos em aborrecimento por ter simplesmente caído no sono enquanto andava, indignado consigo mesmo. Com um leve impulso com a ajuda da parede, se moveu até a janela meia-lua por onde o sol passava e tingia o tapete de vermelho-dourado.

    A luz quente, mas reconfortante, banhou sua face e forçou as pálpebras a se fecharem devido à sensação prazerosa. O vento morno bagunçou seu cabelo pálido e refletiu grande parte dos fios, os tornando dourados. Seu aborrecimento e pulmões foram limpos com um grande suspiro. Neste exato momento, Kenji se lembrou das manhãs precoces quando se levantava para ir à cafeteria. Lembrou de Ryo, de sua irmã e de sua mãe — rostos amados, era quase como se eles estivessem aproveitando a brisa da manhã ao seu lado.

    Mas este momento de paz foi curto, pois foi quebrado por uma voz serena. Uma voz meio rouca, por ter recentemente expulsado a fumaça do cigarro dos pulmões.

    — Os zeladores estão aqui — informou Sally, seu tom de voz exalando serenidade absoluta. Parecia até que ela era outra pessoa. — Vamos para a Central do Pilar do Leste.

    O cigarro entre seus dedos foi extinguido por um longo trago deliberado. A fumaça permaneceu em seus pulmões por longos segundos, antes de ser solto em direção aos seios à medida que guiava Kenji aos zeladores. Com um peteleco, arremessou a bituca para longe.

    — Onde conseguiu aquele cigarro? — Kenji perguntou.

    — Enquanto você dormia, usei o teletransporte para ir à Central e comprei um maço de cigarro — ela disse, tirando um maço de cigarro do bolso interno do blazer de alfaiataria.

    — Eu dormi por tanto tempo assim? — questionou, coçando a nuca.

    Sally subia silenciosamente pelos degraus em espiral que levavam ao topo da mais alta torre do castelo, onde estava o Prisma de Onírico. Ela guardou o maço de volta no bolso e abotoou o blazer. Com a ponta do dedo indicador emanando pequena aura ardente, incendiou discretamente a ponta do cigarro.

    Agora que a sonolência se foi, Kenji pôde, além do cheiro de tabaco, sentir o aroma doce do perfume de mel de Sally e também notar como ela estava elegante e impecável, vestindo uma camisa preta de gola alta sob o blazer bege. Comprar um maço de cigarro não foi a única coisa que ela fez ao chegar à central do Pilar do Leste.

    “Ela sempre foi tão bonita assim?”

    No topo da torre, estavam vários zeladores; homens de baixa estatura, mascarados, cobertos da cabeça aos pés por roupas de borracha, com óculos de proteção de armação redonda com as lentes vermelhas.

    Ao mesmo tempo que eram organizados, também eram desajeitados. Oito deles haviam escalado o Prisma de Onírico para inspecioná-la delicadamente… utilizando furadeiras e marretas. Cinco deles estavam sentados em um círculo e jogando Uno; as cartas flutuavam alguns centímetros sobre o chão, assim como eles. Outros sete, se encontravam no interior do castelo, acomodando parte da família real em seus devidos aposentos.

    — O que eles estão fazendo? — Kenji perguntou.

    — São curiosos com todo tipo de objeto mágico. — Ela atravessou o selo do teletransporte formado por papéis amarelados colados no piso, e parou bem no centro dele. — Apenas os ignore, eles não são humanos.

    — Sério? E o que eles são? — Quando a sua ficha finalmente caiu, notando que, novamente estava sobre o selo de um teletransporte, a curiosidade sobre os zeladores foi esquecida num instante, e engasgou com a própria saliva, antes de exclamar: — Dessa vez iremos para o lugar certo, não é?!

    Para a sua tensão, ansiedade e infelicidade, Sally o respondeu somente com uma tragada preguiçosa. O véu da fumaça rodou no ar e foi dissipado pela brisa do vento. Kenji cerrou os dentes para a atitude indiferente dela, seu aborrecimento intensificou e se misturou com o nervosismo.

    Um zelador que estava jogando Uno, ao notar que eles pretendiam se teletransportar, largou suas cartas e rapidamente se aproximou deles à medida que abria sua pochete e tirava um cubo de vidro contendo areia azul. 

    As máscaras de borracha de seus colegas, que o encaravam pelas costas, sofreram uma depressão por conta das testas e sobrancelhas franzidas. Era nítido que estavam irritados por ele ter abandonado o jogo tão repentinamente.

    O cubo de vidro foi arremessado para dentro do selo e estilhaçou-se em mil pedaços. A areia brilhou em azul-celeste tingido por alguns tons de roxo e se moveu magicamente para escrever em um instante, textos indecifráveis por todos os papéis. Sally e Kenji foram teletransportados instantaneamente. Não houve tempo para dar outra tragada ou reagir. Seus corpos foram reduzidos a partículas.

    As pálpebras medrosas de Kenji se abriram. 

    Seus olhos foram recebidos por inúmeras mansões de arquitetura oriental, posicionadas para formarem uma espiral colossal. Entretanto, não estavam perfeitamente alinhados, era como se um terremoto de alta escala tivesse alargado as vielas e distanciado as mansões do enorme prédio moderno situado no centro dessa espiral imperfeita. Portanto, havia diversas escadas de concreto permitindo o acesso às áreas mais elevadas.

    Sally e Kenji deram seus primeiros passos em direção à Central do Pilar do Leste, ou melhor, os primeiros passos de Kenji, que analisava sem nenhuma empolgação toda a arquitetura chinesa.

    Havia jardins de pedras espalhados por toda a Central. Acima, também havia fileiras de balões vermelhos, parecidos com o do Ano Novo Chinês, que ligavam as quintas dos tetos das mansões.

    O céu nublado não permitia qualquer vestígio de luz solar, parecia que uma tempestade estava se contendo para não devastar este lugar tão monótono.

    — Que mau tempo, hein? — disse Kenji, olhando para o céu. — Talvez seja por isso que está tudo tão vazio.

    — Um dos quatro presidentes da Fundação, Zeni Drakon, odeia o sol, então ele ordenou que o agente Remmi pedisse ao seu irmão que amaldiçoasse essas terras. Então temos sol apenas uma vez por ano. — Ela subiu os degraus liberando a fumaça de seus pulmões.

    — Odeia o sol? Não sabia que existia alguém tão amargurado assim!

    — Pois é… — concordou, mas em um tom tão descontraído e sem interesse, que era difícil dizer se ela realmente se importava. Seus dedos largaram a bituca do cigarro, e não demorou muito para que sua garganta se agitasse; deu duas rápidas tosses mal contidas.

    — Você deveria parar de fumar — aconselhou Kenji, mas não demonstrou nem um pingo de preocupação. Talvez ele apenas estivesse tentando ser gentil.

    — Deveria? Isso deixou de ser um hábito ou vício há muito tempo — disse com uma pitada de zombaria. — Por que não se preocupa em como se apresentar a Senhora Blanc? 

    Kenji não entendeu muito bem o que Sally quis dizer, então assim que Blanc foi citada, ele varreu essas palavras para fora de sua mente e respondeu: — E onde ela está agora? Naquele prédio? — Apontou para o prédio moderno.

    — Não. — Ela cessou a caminhada ao lado da entrada de uma mansão, e abriu delicadamente a porta deslizante.

    Kenji bateu os cílios duas vezes e se moveu para entrar, contudo, antes que pisasse no tatame, ela o esbarrou com o cotovelo, sinalizando com o olhar para que retirasse os sapatos. E ele o fez.

    Kenji poderia ter vindo do Japão, mas, devido à região onde cresceu e ao fato de ser filho de um pai português e uma mãe japonesa, ele não aprendeu tão bem os costumes japoneses. Sua mãe, despreocupada e temperamental, e seu pai, ausente há muito tempo.

    Depois de deixar os sapatos no genkan, a pequena área onde os visitantes removem os calçados, ele se virou para Sally.

    — Não vai entrar?

    — Não. É aqui que nos despedimos. — Ela ergueu a mão para cumprimentá-lo. — Você é uma pessoa legal, admito. 

    — Obrigado. — Com um sorriso de orelha a orelha, também estendeu a mão e a cumprimentou com gentileza. — E continue com esse coque, você fica muito bonita assim.

    Sally não pôde conter um pequeno riso caloroso e tímido à medida que se preparava para fechar a porta. Do fundo de seu coração, ela desejava o melhor para ele.

    — Boa sorte sendo um caçador, Hayashi.

    O retumbar da porta deslizando para finalmente ser fechada, trouxe consigo um silêncio seco. 

    “Hayashi?…”

    — Não precisa de tanta formalidade! — exclamou, mas não houve nenhuma resposta, apenas o eco curto de suas próprias palavras.

    Kenji fez biquinho, que foi desmanchado por um bufo tedioso, quase aborrecido. Em seguida, caminhou pelo tatame de tom bege e palha com bordas marrons até a mesa baixa de madeira rente ao chão. Sentou-se sobre uma almofada creme, com uma perna dobrada em direção à virilha e a outra esticada.

    O que lhe restava agora, era esperar pacientemente.

    A iluminação era suave e minimamente aceitável. Havia três lanternas chinesas de papel em formato cilíndrico penduradas no teto, acima da pequena mesa. As portas deslizantes de papel translúcido que levavam aos outros cômodos da mansão estavam fechadas, impossibilitando quase que completamente a passagem da luz tênue das lanternas. Sendo esta, a única luz presente na mansão, o restante dos cômodos permaneciam na escuridão…

    — Como vai, Kenji Hayashi? — disse Blanc, abrindo gentilmente uma das portas deslizantes no interior da mansão, mais especificamente à direita de Kenji.

    Ele inclinou-se bruscamente de susto, e usou a mão para não cair de costas. O fato dela ter surgido de repente foi assustador, mas a dúvida sobre o que ela estava fazendo naquela escuridão persistiu em sua mente por alguns segundos.

    Blanc deslizou rente à parede enquanto puxava a porta para fechá-la, depois prosseguiu até a almofada azul-escuro diante de Kenji. Ela sentou-se sobre os calcanhares e disse: — Sente-se sobre os calcanhares, por favor.

    Incomodado com o pedido, talvez uma ordem, obedeceu com uma sobrancelha erguida, e sentou como instruído, mas sentiu um desconforto agudo nessa posição. Esticou o torso e aliviou insignificativamente a pressão sobre os tornozelos.

    “Por que eu tenho que sentar assim? Que ridículo…”

    — Sally e eu tivemos uma longa conversa sobre tudo o que aconteceu na Ilha do Véu Negro. Estou genuinamente orgulhosa por ela ter se esforçado para salvar sua vida — Blanc disse de forma lenta e serena, sua dicção era impecável, seu tom de voz era educado, maduro e firme, acentuado com o olhar afiado.

    — A Fundação deveria revisar os teletransportes — exclamou quase grunhindo, e finalmente cedeu à dor nos calcanhares. Ele abriu suas pernas e as esticou em “V”. Um suspiro de alívio escapou de seus lábios logo após. 

    Blanc não pareceu se importar com a falta de resistência dele ou com a forma desleixada com que ele estava sentado; seus olhos safiras não vacilaram, mas o encaravam como se o almejassem.

    — Não creio que seja necessário — disse, e deu uma breve pausa —, considerando que fui eu quem sabotou o teletransporte.

    Assim que ouviu a voz de Blanc proferindo algo tão absurdo, os olhos de Kenji foram arregalados pela incredulidade e espanto. Ele gritou: — Quê?! — E bateu os punhos na mesa.

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