Além de uma pilha organizada de papéis e um relatório sobre uma mesa branca de mármore, jazia o grimório que foi dado de presente aos Crowwell, agora, nas mãos da Fundação. A capa, composta por um couro preto-fosco desgastado, se destacava pelas duas mãos esqueléticas, segurando com a ponta dos dedos, um sol negro contendo um rosto semelhante ao de “O Sol” de Pablo Picasso, mas tomado pela ira e lamentações.

    — A caçadora Sally Dakis me entregou este grimório pela manhã — disse o homem ruivo. — E pedi a ela um relatório sobre a missão de Jax Bennett em Garhata.

    — Dois caçadores em uma só missão? — indagou de forma ríspida o sujeito com um charuto entre os dentes.

    — O teletransporte usado por Sally e pelo novo caçador vindo do Japão falhou, e foram parar no castelo de Garhata — explicou o ruivo. — Coincidentemente no momento em que Jax também estava no castelo.

    — Isso é impossível! Faz décadas desde o último relado sobre a falha de um teletransporte — exclamou a mulher loira.

    — Alguns dos zeladores devem ter alterado, por algum motivo, os selos de conexão dos teletransportes — supôs o ruivo. — Mas isso não vem ao caso.

    Eles, de pé, ao redor da mesa de mármore, eram administradores.

    Os Administradores são funcionários responsáveis por gerenciar as áreas de atuação de seu Pilar e por atribuir missões aos Caçadores e Agentes, estando sujeitos apenas às ordens dos Presidentes e às várias exigências dos Agentes.

    — Bem, agora irei resumir o relatório de Sally Dakis — o ruivo disse educadamente, gesticulando com a mão aberta, apresentando o relatório ao lado do grimório. — A família Crowwell pretendia roubar a mana e os feitiços dos Elfos Pálidos, mas isso se mostrou impossível, pois o grimório que continha tais conhecimentos estava escrito em um idioma extremamente complexo. Este grimório foi dado como presente à família real por um, provavelmente, mago desconhecido, mas perigoso o suficiente para justificar a mobilização de um ou dois agentes. Caso esse grimório caísse em mãos astutas, o custo seria a perda de um continente.

    — Absurdo! — exclamou a mulher, esticando os braços para se apoiar sobre a mesa.

    — Loucura — murmurou o homem do charuto, dando um trago e soltando a fumaça nos cantos dos lábios, semelhante a uma locomotiva a vapor.

    — Tenho uma forte intuição que os genocídios no sul da Nova Pangeia possui relação com o caso de Garhata. É por esse exato motivo que irei enviar Sally Dakis, Jax Bennett e Jade Valderbilt à Nova Pangeia.

    — Não há necessidade de enviar três caçadores para uma única missão! — discordou o homem de charuto à medida que deu um soco na borda da mesa, sem tirar os olhos do ruivo. O impacto brusco desfez a pilha de papel que caiu sobre o grimório e o relatório.

    O ruivo não reagiu à ação bruta de seu colega, assim como a mulher loira. Ambos já estavam acostumados ao temperamento dele.

    — Eu aprovo. Os genocídios no sul da Nova Pangeia não devem ser tratados com negligência — exclamou ela. — Sally Dakis é uma caçadora medíocre, ao contrário de Jax Bennett que é extremamente talentoso, mas Jade Valderbilt foi responsável por conter Dagon que estava assolando o Mar Marfim. Ela assegurará o êxito da missão.

    Após os lábios da mulher se fecharem, o homem de charuto deu uma longa tragada e retirou o mesmo entre os dentes. Uma enorme nuvem de fumaça se formou ao escapar de sua boca quando ele resmungou: — Tolos.

    ∞—————————————–∞

    — Como assim vai me contar na hora certa? Eu quase morri de frio!

    — Quieto. — Ela ajeitou a gola das vestes de Kenji com um puxão.

    Ao terminar de vesti-lo, Blanc deu dois passos para trás, seus olhos safiras admiraram discretamente o seu trabalho. O hanfu preto, adornado com poucos desenhos prateados de flores e galhos, se ajustou perfeitamente ao corpo de Kenji.

    Ambos se encontravam em um quarto de arquitetura oriental, onde havia uma mistura peculiar de estilos. As cômodas e quadros pareciam se entrelaçar, com elementos japoneses coexistindo harmoniosamente com toques chineses.

    — Você está perfeito — afirmou Blanc, quase friamente, mas seu tom soou tão definitivo que era como se ela estivesse afirmando uma verdade incontestável.

    — Por que tenho que me vestir assim? — Inclinou-se para examinar suas vestes. — E eu odiei aquela banheira.

    Blanc não respondeu de imediato, mantendo seu olhar fixo e severo em cada detalhe do hanfu. Internamente, sentia orgulho pela escolha das cores e das combinações das peças, que se combinavam perfeitamente. Com a demora para resposta dela, Kenji desviou seu olhar da manga larga em seu braço estendido para erguer uma sobrancelha.

    — Blanc?

    — Me chame de Senhora Blanc ou de Mãe — ela o corrigiu, sem qualquer traço de irritação na voz, como se estivesse apenas ensinando uma lição simples, algo natural e óbvio. — E eu o vesti assim, porque um amado amigo meu irá lhe conceder A Vontade. Então é justo que você esteja limpo, vista as melhores roupas, calce os melhores calçados e use os melhores perfumes. Assim será digno de recebê-lo.

    Não houve outra reação de Kenji a não ser um espanto abrupto, exposto nos olhos arregalados. Ele não estava surpreso pela forma que deveria receber o amigo de Blanc, mas porque ele iria lhe conceder A Vontade.

    — Mas a Sally disse…

    — Existem dois métodos conhecidos para adquirir A Vontade — ela o interrompeu, levantando a mão com dois dedos estendidos. — O primeiro é durante a gestação; o segundo, por meio de uma luta interna.

    Blanc cruzou os braços sob as mangas de seu hanfu e deu dois passos em direção a Kenji. Sem notar a aproximação dela, ele continuou se questionando o porquê de Sally o contar somente o primeiro método.

    — A Sally não me disse sobre o último método para se ter A Vontade — disse frustrado, com uma raiva discreta franzido sutilmente suas sobrancelhas.

    — É tão raro de se obter A Vontade durante uma situação de vida ou morte quanto uma maldição. Por isso é considerado um mito.

    — Maldição? — Kenji perguntou, depois ele caminhou até o futon, afofou as almofadas e deitou. Sua coluna ainda doía por ter dormido no corredor do castelo de Garhata, e a posição em que ele estava deitado não ajudou muito; de lado com a cabeça apoiada na mão.

    E Blanc observou tudo com um sorriso sutil.

    — Um Dom obtido durante uma situação extrema de agonia e dor, ou próxima à morte, não pode ser considerado uma benção, porque ele vem defeituoso. Às vezes, prejudicando o próprio indivíduo que o porta; por isso, é uma maldição. Não é muito diferente do segundo método para se ter A Vontade. Ambos podem vir no momento mais difícil na vida do indivíduo. — Caminhou para próximo de Kenji, dando passos pacientes.

    — Eu não vou arriscar minha vida só para ganhar um poderzinho! Sem chances!

    Um olhar gelado, mas gentil, foi dado como resposta ao seu protesto, o que também deixou sua mandíbula tensa.

    A face de Blanc foi tomada por um véu obscuro e pesado, o ar gelou, a luz tênue das lanternas piscou repetitivamente por um breve momento, um pequeno intervalo de silêncio durou exatamente nove segundos, mas para Kenji, que sentiu o medo envenenando seu corpo lentamente, apenas três. 

    — Criança… — murmurou. — Não será necessário nada do que lhe foi dito, apenas confie em mim — ressoou a voz de Blanc pelo quarto, contudo, mais forte, mais grave e difícil de entender, como se pertencesse a outra pessoa.

    Blanc estendeu a mão, oferecendo ajuda para que Kenji se levantasse do futon. Os olhos dele fitaram a mão pálida e esguia. Ele sabia, sabia que esse gesto carregava mais do que aparentava. Um aperto sufocou seu coração por um segundo, um segundo para notar que já estava sentado, e com a própria mão erguida. 

    Kenji Hayashi tomou para si a oferta.

    Um vapor quente escapou de seus lábios ao ofegar. Não avistou nada além da ponta cinzenta do próprio nariz distorcido pelo breu. Um vento gelado soprou e violou seu corpo em posição fetal e, silenciosamente, percebeu que estava nu. Ele sentiu várias mãos percorrendo por sua pele, lábios desferindo beijos preguiçosos em seu pescoço, e fios e mechas de cabelos escorrendo por todo seu corpo. Não era mais como se estivesse sentado em posição fetal, mas deitado sobre uma superfície macia.

    Lágrimas de dor e culpa escorreram pelo seu rosto apavorado.

    Gentilmente, seus ombros foram erguidos por duas mãos pálidas e esguias no instante em que os toques lascivos recuaram com relutância.

    Os olhos fracos e lacrimejados de Kenji viram, envolto ao breu, um dromedário farto, coberto de ouro e joias. A mandíbula deste animal mastigava preguiçosamente o que pareciam ser flores negras e folhas secas. E montando soberanamente no dromedário, um homem afeminado. Em sua cabeça, uma coroa de galhos, e seus cabelos como uma lua pálida, contendo algumas tranças, caíam até acima do joelho. Ele, sem pudor, revelava sua nudez.

    O badalar grave de um sino pesado tocou, de novo, de novo e de novo, repetindo-se nove vezes. 

    Blanc interrompeu o aperto de mão. Em seguida, ela limpou as lágrimas de Kenji em suas bochechas, dizendo: — Irei treiná-lo por cinco meses. — Você quer ser forte, não quer?

    “O que aconteceu?!”, indagou a si mesmo, como se ainda estivesse preso em sua mente.

    “Aquilo aconteceu mesmo?!”, ele continuou indagando à medida que uma porta se fechava em seus pensamentos.

    “Isso… aconteceu?”

    “Aconteceu… aconteceu o quê?”

    — Cinco meses? — Sorridente, colocou as mãos na cintura. — E quando vou conhecer o seu amigo? 

    O sorriso irônico insubstancial torceu o canto dos lábios de Blanc assim que Kenji mencionou o amigo dela. 

    — Sim… É claro que vai. 

    Blanc não disse nem mais uma palavra. Com um gesto silencioso, afastou as mãos das bochechas dele e se dirigiu para fora do quarto, esperando que ele a acompanhasse.

    “Que estranho… A dor nas costas passou…”

    “Tanto faz! Agora eu tenho uma sensei!”

    E ele marchou em direção a Blanc, alegre, ansioso, e de queixo erguido.

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