Sapatilhas, calça folgada presa por um cinto elegante, e uma camisa de botão. Sally Dakis estava em um dos vários quartos de uma das mansões da Central, prestes a finalizar seus preparativos para a missão no sul da Nova Pangeia; pegou uma pochete e a colocou sobre o ombro, cruzando o peito e descansando na cintura.

    Depois, ela caminhou até em frente ao espelho acima de uma cômoda escura e encarou o próprio reflexo, ou melhor, o que deveria ser o seu reflexo. Fitou Blanc que sorria sutilmente, mas de forma presunçosa. Seus olhos vagaram pelos cabelos soltos e sedosos dela; a franja reta caindo nas sobrancelhas; a face perfeita mesmo sem um resquício de maquiagem; os olhos maliciosos exalando desdém, adornados por um delineado discreto; e os lábios rosados. Por fim, analisou as unhas quase pontiagudas pintadas de azul-safira, os dedos delgados, e a mão pálida. 

    — Odeio — murmurou Sally, depois, pegou uma xuxinha, colocou as mãos no couro cabeludo e trouxe todos os fios de cabelo para trás da cabeça, e os amarrou em um coque desleixado. Sem tirar os olhos do próprio reflexo, puxou a gaveta tão rudemente que foi como se quisesse arrancar a maçaneta, e pegou um kit de maquiagem para pôr sobre a cômoda.

    Maquiou-se às pressas como se estivesse atrasada para o trabalho — e estava — mas não era como se ela se importasse tanto. Seu rosto, com rugas finas ao redor da boca, o seu olhar envelhecido que parecia estar desolado, e os lábios finos e ressecados, foram encobertos pelo primer facial, a base, corretivo e batom. Não havia mais nenhum vestígio de sua feição desolada. A maquiagem simples e discreta foi o suficiente para “renovar” sua aparência.

    Em seguida, pegou um esmalte azul no fundo da gaveta entreaberta e, com uma precisão quase automática, pintou as unhas com rapidez, como se fosse apenas um gesto rotineiro.

    Ela soltou um suspiro satisfeito e, para não borrar as unhas, guardou com cuidado o kit de maquiagem e o esmalte. Seus olhos analisaram seu reflexo pela última vez, lançando um pequeno admiro antes de fechar a gaveta e caminhar até a porta deslizante.

    ∞—————————————–∞

    — Onde está a vadia da Sally? — Jax exclamou com um resmungo.

    Uma fraca brisa soprou, e balançou as folhas e pétalas de peônia, bagunçou o terreiro de areia do jardim de pedras, e farfalhou insignificativamente os longos cabelos encaracolados — estes, que pertenciam a Jade Valderbilt.

    — Não seja assim, Jax — disse ela preguiçosamente, expondo um sorriso relaxado, assim como a sua voz grave. — A Sally é legal.

    — Não é! — Ele opôs-se, cerrando os punhos.

    — É sim. Você deveria deixar de ser tão amargurado.

    — Eu? Amargurado? Não me faça rir! 

    Jax cuspiu ar em desdém e se sentou em uma rocha, inclinado, apoiando os antebraços nos joelhos. O selo de teletransporte feito de ágatas sem cor foi fitado pela sua carranca prestes a soltar um rosnado.

    — Soube do novo pupilo da Blanc? — Jade perguntou, na intenção de trazer um assunto interessante que o lhe fizesse se acalmar.

    — Ele não passa de um moleque alto e bonito, sem personalidade, extremamente chato.

    Assim a resposta rápida e rabugenta chegou aos seus ouvidos, Jade soltou um riso ligeiro e se moveu até ele. Seus tênis esmagaram e rasparam o cascalho, pois seu andar era quase que preguiçoso. Ficando à esquerda de Jax, ela colocou a mão na cintura, e com a livre pôs sobre a touca dele. Inclinou-se, sorrindo gentilmente para a carranca sem rugas, mas lançando raiva e impaciência nos lábios tortos e sobrancelhas caídas.

    — O que aconteceu? Você está mais estressado que o normal. E qualquer pessoa é mais alta comparada a você — disse brincando.

    Houve um pequeno intervalo de silêncio antes de Jax bufar e a responder: — Eu queria que o mago que está brincando de ser deus cometesse os genocídios em outro continente, sabe? É uma loucura gente morrendo para todo lado sem nenhum ferimento ou doença. Isso é interessante demais para estar acontecendo na Nova Pangeia. E eu odeio, odeio esse continente. Ele é chato, sem graça e morto. Não é à toa que não há mais relados de pessoas com dons ou que possam usar magia. Nem ao menos existem bestas-feras! Eu não quero pisar em um lugar desses!

    Jade endireitou as costas e deu dois tapas leves na cabeça dele. 

    — Entendo… E por que não faz um pedido para trocar a missão? Os administradores aceitam na maioria das vezes.

    Estalos de cascalhos sendo pisoteados interromperam a conversa entre eles, atraindo suas atenções.

    — Eu pude ouvir muito bem de longe, Jax. Não confunda feitiço e mana com magia — advertiu Sally.

    — É tudo a mesma coisa! Sabichona. — Levantou-se abruptamente e caminhou até o centro do selo do teletransporte.

    — Você está linda, Sally — elogiou Jade, a admirando da cabeça aos pés com um sorriso gentil.

    — Obrigada. — Sally apenas a deu um leve aceno de cabeça sem emoção e passou por ela. E depois de descansar suas sapatilhas no interior do selo, próximo à borda, abriu um dos zíperes da pochete e tirou um pequeno cubo que guardava areia azul.

    Jade seguiu logo atrás com as mãos nos bolsos de seu calção, pálpebras caídas pela metade, e sorriso relaxado. E se recostou em Jax, apoiando o braço no ombro dele.

    — Estamos prontos — ela cantarolou.

    Ao contrário de jogar o cubo para ativar o teletransporte, como aquele zelador fez, Sally apenas o torceu, como se tentasse resolver um cubo mágico. O objeto rompeu ao meio sem esforço, permitindo que a areia mágica caísse. Como das outras vezes, o selo brilhou, os eventos da resplandecência se repetiram. E o trio foi teletransportado para o sul da Nova Pangeia. 

    Três formações rochosas esculpidas na forma de mãos gigantescas, erguiam-se do solo arenoso, como se tentassem proteger algo situado entre elas — algo que estava antes do teletransporte.

    O trio caminhou para fora das sombras das mãos, contudo, somente Sally analisou todo ao redor. Ela viu uma extensão inimaginável de areia preta. Uma areia grossa e pesada o suficiente para o vento ter esforço para levantá-la, mas era macia e consideravelmente úmida, o que obscurecia o tom negro. Também havia tufos úmidos de grama por toda parte, alguns mais extensos que outros. 

    A preocupação logo atingiu o rosto de Sally, pois isso indicava que havia chovido recentemente, e nuvens escuras, inimaginavelmente grandes e pesadas, ainda pairavam sobre eles.

    “Isso não é bom… Sempre ouvi dizer que não chovia no sul da Nova Pangeia nessa época do ano.”

    — Toda essa areia vai estragar os meus tênis — disse Jade, mas seu tom de voz lerdo deu impressão de que ela não se importava com isso.

    Sally revirou os olhos para a voz preguiçosa de Jade, e se aproximou dela, dizendo: — Há duas cidades no leste, duas no norte, três no oeste, e uma no sul. Vamos nos separar em busca de informações relacionadas a mortes por causas desconhecidas. 

    — Pode deixar. — Jade gesticulou um okay. — Eu fico com o oeste.

    Jax fitava o horizonte, entediado, sem dar ouvidos a Sally, parecia até mesmo que ele estava a ignorando.

    — Jax? — Jade se inclinou moderadamente para trás.

    — Eu fico com o sul… — respondeu ele.

    — Então está tudo certo. Eu vou para o leste. Nos encontramos aqui em duas semanas.

    Depois de informar para onde iria, Sally recuou um passo e os deu as costas, seguindo ao leste. 

    Gotículas de água caíam do céu, carregadas pelo vento que soprava do leste para o oeste. As nuvens se tornaram densas, e o céu se encheu de uivos violentos de uma tempestade iminente. O vento se tornou agressivo, arrastando a areia e provocando correntes negras ondulantes.

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