Novamente, afundou a mão na pochete. Tirou daquele bolso sem fundo um livro preto, sem detalhes, robusto como um dicionário completo. Sally Dakis levou o livro até a escrivania e o largou; o baque, semelhante a um estalo, ressoou por todo quarto iluminado somente pelo sol tênue da tarde. Abriu o livro pela última folha e começou a folhear as páginas com os olhos atentos, examinando apressadamente os desenhos envoltos por escrituras estranhas.

    Havia vários desenhos feitos a carvão de selos mágicos, órgãos e objetos estranhos. Todos possuíam traços diferentes e únicos, assim como a caligrafia, portanto, esse livro possuía vários autores.

    Enfim, seus olhos captaram o que procuravam. Cautelosamente, ela voltou algumas páginas. O desenho consistia na ilustração da anatomia humana distorcida e deitada em um pentagrama feito de pedras e galhos. Ela analisou a pele, os músculos, intestinos, coração e o cérebro. Em seguida, fechou o livro seguido por um bufo frustrado e o enfiou de volta na pochete.

    “Aquele médico imbecil, me deu somente cadáveres em decomposição. Assim eu não consigo identificar os efeitos do feitiço.”

    “Talvez eu deva conversar com o juiz novamente. Não posso investigar usando restos.”

    Sally, após refletir, tirou uma cartela de cigarro do bolso da calça, e uma caixa de fósforo guardado no outro bolso. Inclinou a cabeça e, com os dentes, retirou um cigarro da cartela antes de depositá-la na borda da mesa. Abriu a caixa, acendeu um fósforo e o levou até a ponta do tabaco, o incendiando.

    Puxou um trago à medida que se virou com os olhos fechados, recostando as nádegas na pequena mesa. Exalou em um sopro uma espessa nuvem de fumaça que se dissolveu em um véu preguiçoso, ao mesmo tempo em que suas pálpebras se abriram. 

    Ela fitou a porta sem graça como se esperasse por alguém — e assim aconteceu — o silêncio foi interrompido por quatro batidas impacientes, quase desesperadas. Sally, por outro lado, permaneceu indiferente e decidiu soltar mais uma pequena nuvem de fumaça antes de se direcionar até a porta.

    Ela girou a maçaneta com o cigarro preso entre os lábios, permitindo que o homem suado e ofegante de sobretudo, segurando uma boina cinzenta contra o peito, desse dois passos apressados até o batente da porta.

    — Senhorita Sally — disse ofegante —, mais quatro! Mais quatro mortos! Morreram simultaneamente enquanto trabalhavam nas ferrovias!

    Com uma surpresa notável, Sally retirou o cigarro dos lábios, e perguntou: — Simultaneamente? 

    — Sim! Todos os outros trabalhadores por perto afirmaram que foi assim que o ponteiro da nossa grande torre do relógio marcou quatorze em ponto! 

    — Hm… — Ponderou por um momento. — Fale com o juiz que desejo ter outra conversa com ele. Chegarei depois das quinze e dez. Depois vá até o hospital e tente enrolar o Christopher para ele não mexer nos corpos até eu chegar com a licença.

    — Como desejar, senhorita! — Ele deu meia volta e correu, ajustando firmemente sua boina cinzenta na cabeça.

    Após o homem virar o corredor, Sally novamente puxou um trago e soltou a fumaça em direção à maçaneta enquanto a fechava. Deixou cair os olhos, analisando suas próprias vestes.

    “Preciso me trocar. Eu estou horrível.”

    Embora afirmasse que estivesse mal-vestida, ela estava impecável.

    E, ao extinguir o cigarro, jogou a bituca na quina da parede. Depois, caminhou até a cama ao lado da pequena mesa onde havia investigado o livro robusto. Retirou a pochete do ombro, e se despiu sem pressa. Já semi-nua, dobrou as roupas e as guardou dentro do bolso maior da pochete. E permaneceu com a mão naquele fundo extenso, afundou o braço até a altura do ombro e puxou uma maleta de couro preto.

    Como se já estivesse acostumada a realizar tais ações, Sally abriu a maleta sobre a borda da cama, deslizou algumas roupas para fora e vestiu habilmente; uma camisa de botões, calça social larga, apertou a fivela do cinto ao redor da cintura e calçou uma sapatilha preta no fim — eram idênticas às que ela estava vestindo antes.

    Enquanto se retirava do quarto, tratou de incendiar mais um cigarro já preso entre os lábios. Com certa paciência, atravessou o corredor velho, desceu as escadas, passou pelo recepcionista com um aceno, e saiu do prédio de apartamentos feito de tijolos vermelhos.

    Sally analisou brevemente o que passava pelo seu campo de visão, deixando o fumo de tabaco contaminar insignificativamente o ar úmido, cheirando a fumaça de carvão e a um típico odor de ferrugem trazido pelo véu da neblina. Ela seguiu sem se importar com os julgamentos discretos feitos pelos homens que a avistavam.

    Entretanto, as mulheres vestindo saias crinolinas não escondiam o orgulho e admiração pela coragem dela. A maneira indiferente, os gestos relaxados, mas atentos, provocaram uma chama ardente de determinação nos corações dessas mulheres. Para elas, Sally era um exemplo.

    De repente, tombou! Os olhos de Sally se espantaram com a queda repentina de um homem que passava por ela. Rapidamente, largou o cigarro, se ajoelhou, agarrou o ombro do sujeito e o virou de costas. Depois levou a manga do sobretudo dele até o cotovelo e checou o seu pulso — estava morto.

    Inevitavelmente, depois de alguns segundos, uma multidão se formou.

    — Mais um!

    — Estamos perdidos!

    — Quem era esse?

    — Pobre homem…

    — Eu o conhecia, ele era pai de quatro filhos.

    — Provavelmente recusou-se a receber a benção do monge!

    — Deus nos abandonou! Deus nos abandonou!

    — Levem-no até ao doutor!

    Enquanto essa gente exclamava, a expressão tensa de Sally se suavizou para um tom escuro, quase raivoso. Colocou-se de pé e seguiu adiante, cortando a multidão que continuava a rodear e sufocar o cadáver.

    Ela sabia que precisava realizar uma autópsia o mais rápido possível, pois a resposta para as mortes inexplicáveis estava nos cadáveres. E que seria capaz de identificar o feitiço exato utilizado assim que examinasse os órgãos de uma das vítimas. No entanto, ainda estava sob as ordens do administrador ruivo, que a instruiu a procurar uma conexão com o caso de Garhata, embora ela acreditasse que ambos os casos não tinham qualquer relação. 

    As engrenagens de sua mente não pararam de funcionar desde que chegou à cidade. À medida que prosseguia pela calçada, refletia qual dos meios o mago utilizou para executar o feitiço; pela água, comida, ou pelas fezes e urina dos ratos. Sally descartou prazerosamente o ar, já que seria necessário um enorme selo de ativação para realizar tal. Ela não comeu e nem bebeu da comida desta cidade, e não sentiu nenhuma anormalidade em seu corpo, assim tendo o alívio de afirmar para si que o meio de transmissão mais letal do feitiço não era possibilidade.

    “Descobrir o meio que ele espalhou o feitiço não vai me ajudar a saber especificamente qual feitiço ele usou.”

    “Preciso saber o efeito causado no corpo da vítima.”

    E encarou o imenso edifício gótico que cumpria o papel de catedral, orfanato e tribunal. Feito de pedras negras, suas torres se erguiam em direção ao céu. Entre os dois portões maciços, acima de seus batentes de tijolos, havia uma grande cruz de prata, mas que se tornou cinzenta e opaca pelas manchas negras trazidas pelo ar poluído.

    Havia uma boa quantidade de fiéis na nave da igreja, muitos estavam sentados, outros ajoelhados, e os que estavam de pé, buscavam confortar o próximo. Sally não avançou, mas virou à esquerda, onde levava ao tribunal e, é claro, ao escritório do juiz, que era também bispo.

    A galeria gótica, adornada por um carpete vinho, e por estátuas cinzentas de anjos situadas somente à direita, não amedrontavam Sally, que seguia calmamente pelo silêncio mesclado com a penumbra. 

    Com os minutos que se seguiam, com as várias portas abertas para apenas encontrar uma sala vazia, ela começou a pensar que estava perdida. Enquanto subia as escadas espirais, passou por algumas freiras, acenando educadamente para elas com um falso sorriso que se transformou em um semblante sério e frio, assim que sumiram de sua vista.

    “Merda. O juiz deveria estar em uma das três salas que eu chequei. Não quero ter que entrar naquele escritório fedorento.”

    Mesmo com o sol da tarde, todo o interior da catedral era mal iluminado pelo fato de sua estrutura ser robusta e suas janelas serem barradas por fileiras de grades de tijolos. 

    A escuridão era inevitável no centro da catedral, e era onde Sally estava. Ao virar um corredor, ela estreitou os olhos para a fraca luz que deveria ser de uma vela escapando pela fresta de uma porta. De qualquer forma, ela sabia que não era o escritório do juiz, não havia o porquê de conferir, mas sua curiosidade falou mais alto.

    O som de seus passos quase apressados foram abafados pelo carpete vinho e denso.

    Sally se posicionou em frente a porta, e a empurrou lentamente… Uma poça de sangue escorreu até a ponta de suas sapatilhas — ela recuou com cautela — seus olhos fitaram um corpo estourado do abdômen para cima, como se tivesse sido explodido de dentro para fora. Os ossos da costela estavam cravados na parede coberta de sangue. A coluna, ainda intacta, se encontrava enterrada sob as tripas. E os rins e o fígado estavam dispersos envoltos à coluna.

    O corpo irreconhecível jazia no chão, enquanto o sangue continuava a escorrer, afogando uma boina cinzenta e um sobretudo. Sally foi tomada por um sentimento de nojo e raiva. O medo que sentiu, se escondeu sob sua boca fechada com força. Abruptamente, seus olhos fitaram um homem sentado atrás da mesa, com o rosto e ombros deitados sobre os vários papéis ao lado de uma única vela acesa. Ela analisou as vestes e os poucos fios de cabelo daquele homem, e assim teve certeza que era o bispo e o juiz que procurava.

    “Ele está morto? Não! Ele não pode morrer!”

    “Ainda está ileso!”

    Sally, mordendo a mandíbula, agarrou o pulso do juiz e largou de imediato assim que viu o rosto duro dele, os olhos arregalados de terror, e a boca salivando.

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