“O sangue ainda está quente!”

    Sally Dakis encarou com repulsa e nojo as tripas derramadas no chão, rosnando como se tentasse segurar um vômito. Ela notou que, pelo sangue do corpo explodido ainda estar escorrendo e o pulso do juiz estar quente, obviamente ambos haviam morrido há pouco tempo. 

    “Merda… Por que eu não trouxe a pochete?”

    Ela correu e saltou sobre os restos de carne e a poça de sangue. Enquanto corria apressada e retirava suas sapatilhas, pensou: “Ele está aqui!”

    As estatuetas de anjos rente às paredes geladas apontavam suas lanças e espadas para aqueles que passavam pelos corredores, queimando os pecados junto aos pecadores. As asas repletas de rachaduras estavam abertas, não para receber os necessitados, mas para instigar medo, forçar a ideia de que não havia mais salvação. Sally estava ciente do perigo que corria.

    O arrependimento de não ter fugido assim que avistou os cadáveres corroía seus calcanhares, batendo desesperadamente contra o carpete, que era marcado pelas pontas dos pés. A cada segundo o senso de direção de Sally parecia se tornar confuso. Ela não conseguia mais diferenciar os mínimos detalhes dos corredores, consequentemente, voltou para onde estava. A luz mórbida da vela escapando pela porta, iluminava minimamente as sapatilhas jogadas no carpete.

    “Que merda!”

    Um fraco som metálico se chocando contra o piso de pedra onde não estava coberto pelo carpete, se tornou estridente para Sally, como se seu ouvido estivesse a poucos centímetros do impacto. Entretanto, ela não deixou o pavor tomar conta de seu corpo. Tensa, quase a beira de suar, seguiu silenciosamente, confiando somente em sua intuição. O instinto de fuga foi sucumbido pelo seu lado racional. 

    Recostou a face e as mãos em uma parede onde não havia nenhuma estátua anjo. Uma gota de suor escorreu de sua têmpora, contornou a mandíbula e caiu da ponta do queixo. Ela soltou um suspiro, relaxando os ombros tensos à medida que se abaixou até que um dos joelhos tocasse o chão; ouviu atentamente o que pareciam ser passos, sua audição influenciada pela A Vontade pôde notar perfeitamente que estavam subindo. Ali ficava uma das escadas para o terceiro andar.

    “São duas escadas para o primeiro andar Três para o segundo Três para o terceiro e duas para o quarto Não estão embaralhadas mas todas próximas das torres que possuem acesso único Aqui talvez seja a escada de alguma torre ou para o segundo andar Não há anjos próximos aos acessos às escadas Não posso fazer barulho Tenho que seguir em silêncio E se eu bater de frente com ele? Eu não queria, mas preciso fazer isso! Eu preciso! Eu preciso!

    Sally ergueu suas mãos, e cravou as pontas dos dedos na parede. A intenção era clara; marcar as paredes com o seu próprio sangue, mas o sangue de apenas um dedo ou cinco não seria o suficiente. Seis de suas unhas lascaram e quatro se descolaram dos dedos. 

    A parede também foi marcada por marcas semelhante a garras quando ela puxou suas mãos para baixo para arrancar suas unhas. Sua única cautela foi depositar aura o suficiente para não quebrar nenhum de seus dedos, somente feri-los. E capaz de ver naquela escuridão graças à A Vontade, lamentou com angústia a perda de suas unhas. As pontas de seus dedos sangravam e o sangue descia para as palmas de suas mãos.

    Não havia outra forma de Sally seguir sem se perder naquele labirinto de corredores. Seguindo em meio a escuridão que não era nenhum problema, mas sim a sensação agonizante de estar sendo perseguida, pois alguém realmente estava a perseguindo, ela marcou cada parede sem estátuas de anjos.

    Caminhando quase nas pontas dos pés, desabou de joelhos diante de outra parede — a trigésima oitava. E com o canto de seus olhos, notou o breu clareado escada a baixo.

    — Viu… como é fraca? Apenas foi necessário presenciar um verdadeiro perigo para que corresse com o rabo entre as pernas — disse uma mulher vestindo um hanfu simples e branco, com os braços cruzados debaixo das mangas, erguida atrás de Sally.

    — Cala boca… — Sally murmurou, sua voz trêmula contendo uma raiva evidente nas sobrancelhas franzidas e encharcadas de suor.

    — Volte para Vistéria e apodreça com aquela garota, sua puta ingrata. — Ela abriu um sorriso, sua face encoberta pelas sombras. — Não é isso que você deseja? Ou não tem forças nem para atravessar a ponte? Covarde.

    — Cale a merda dessa boca… — Levantou-se com a mão sobre a face, como uma forma de aliviar a dor latejante em sua cabeça.

    Ela caminhou lentamente até a escada, descendo degrau por degrau.

    — Profana… É melhor você correr — aconselhou a mulher, que, simplesmente, desapareceu quando Sally olhou para trás.

    Sally Dakis foi tomada pelo pavor quando a luz de uma lamparina iluminou suas costas. Ela não hesitou em correr, mas tropeçou em sua própria fraqueza e nervosismo, e rolou nos degraus que formavam uma espiral quase sem fim. Rolou e rolou, os tombos reverberando em ecos surdos pelos tijolos negros.

    Enfim, seu corpo alcançou o chão. Sua têmpora sangrando, seus cotovelos ralados, e sua orelha esquerda com um pequeno corte foram os únicos ferimentos causados pela queda. 

    Ergueu-se com esforço, utilizando a parede como apoio enquanto seguia para fora da catedral.

    Alguns fiéis próximos, observaram horrorizados o seu estado; o cabelo desgrenhado, mas ainda amarrado em um coque, as roupas amarfalhadas manchadas de poeira, as mãos sujas de sangue, e o semblante caído.

    Sally se perguntou internamente o porquê do mago estar ali, o porquê dele matar aquele homem tão brutalmente, e não como os outros. Ela sabia que para causar aquele estrago seria necessária uma ação direta. E ela também sentia um incômodo angustiante por estar tão perto dele, de ter o azar de ir justo à cidade onde ele estava.

    Com a cena horrenda e brutal que havia visto, Sally soube no mesmo instante que somente Jade Valderbilt poderia impedi-lo. E também seria sensato ir até ela, mas até a encontrar, talvez o mago já tivesse ido embora ou ter cumprido qual for seu objetivo.

    Sally também cogitou na ideia do mago ser algum membro da igreja. Ela estava ciente de que havia grandes chances de ser alguém influente e, talvez, intocável. E provavelmente, recém-nomeado, e que veio de fora da Nova Pangeia, pois este continente era escasso de pessoas que possuíam Dom ou mana.

    De repente, ela entrou em um beco, jogou o torso para frente e vomitou.

    “Que droga…”, recostou-se de lado na parede.

    “Por que a Senhora Blanc queria tanto que eu aceitasse a missão? Isso é demais para mim. Eu… queria estar em Vistéria agora.”

    De cabeça baixa, evitou a pequena poça alaranjada e nojenta dando três passos incertos, logo depois, parou.

    “Não… Isso é besteira… Não devo questionar as vontades dela.”

    Seus lábios congelados e entreabertos gotejavam saliva misturada com o que sobrou do vômito. Ela não abandonou a parede gelada do beco, como se essa estrutura áspera e úmida fosse o único meio para se manter de pé. Alguns ratos se aproximaram de seus pés amundiçados pelo excesso de sujeira que havia ali. Eles investigaram com seus narizes os tornozelos de Sally, e suas unhas cortadas de forma tão perfeita, mas agora sujas de poeira úmida e água suja.

    Ao notar os ratos circulando seus pés, franziu as sobrancelhas e limpou a boca com o pulso, em seguida, pisoteou o chão e os assustou, além de causar respingos de água por toda parte.

    — Nojentos! — ela murmurou, sua voz rouca pela raiva.

    “Eu só preciso de um bom sono! Ou talvez um copo de Whisky Dourado”, refletiu, depois avançou pelo beco, se recompondo aos poucos. “Irei voltar para a catedral com a pochete, vestindo um bom disfarce, e descobrir se há algum recém-nomeado a qualquer cargo que for.”

    “Não preciso mais perder tempo pensando em como ele está espalhando o efeito do feitiço. Assim que descobrir o que esse mago quer, vou garantir que ele fique nessa cidade por tempo o suficiente para Jade agir.”

    “Faltam onze dias para nos reunirmos no ponto de encontro. Até lá eu consigo arrancar esse maldito das sombras.”

    A única preocupação de Sally, era de, ao encontrar o mago, ser pega pelo feitiço que explodiu aquele homem de dentro para fora. 

    Após posicionar os pés nus e sujos diante da porta do seu quarto, soltou um suspiro de alívio à medida que girou a maçaneta. Ela fechou a mesma com uma exaustão subjacente aos movimentos preguiçosos: recostando as costas na madeira sem graça e velha.

    Suas pálpebras cansadas esconderam suas íris cinzentas esverdeadas enquanto suas mãos ensanguentadas, pegavam dos bolsos a cartela de cigarro e a caixa de fósforo.

    O quarto estava exatamente como ela deixou, a maleta e a pochete sobre a cama, o pequeno armário com apenas um par de portas ao lado oposto da escrivaninha sombreando o travesseiro branco, a bituca de cigarro na quina da parede, e o tapete duro sem vida adornando o centro. 

    Sally levou os olhos até a janela, soltando um véu de fumaça. Ela prendeu o cigarro entre os lábios e se espreguiçou, erguendo os braços para o alto e deixando escapar um gemido cansado pelas narinas junto a um suspiro. Depois de caminhar em direção à cama, se sentou na borda. Seus olhos inexpressivos encararam a parede. Uma parede simples de tijolos, mas encobertos por tábuas elegantes de madeira para manter as aparências.

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