Capítulo 22 - Campo de Colinas
No dia seguinte, Sally Dakis acordou antes mesmo do sol espalhar a luminosidade gratificante de uma boa manhã. Seu cabelo desgrenhado e volumoso, disperso em linhas onduladas pelo lençol amarrotado, cobria parte de seu rosto sonolento. Ela escorreu as mechas que cobriam sua visão para o lado com os seus dedos feridos e manchados de sangue.
“Preciso dar um jeito nisso”, refletiu, analisando as poucas unhas lascadas que lhe sobravam.
As solas de seus pés encostaram na madeira fria, assim que se sentou. Ela pousou os dedos na cabeça e coçou com certo cuidado à medida que soltava um bocejo. Logo, ganhou forças para se levantar.
Depois de encarar brevemente a pochete sobre a escrivaninha, a pegou e retirou do bolso sem fundo; um sutiã, uma calça, camisa justa, botas, uma boina, um sobretudo, um cortador de unhas, algodão, lixa, alicante, vários curativos, uma torrada, uma xícara, uma garrafa de café e, finalmente, um óculos de armação redonda.
Sally, meticulosamente, consertou suas unhas antes de limpar o esmalte e o sangue que manchava suas mãos. Ainda seminua, comeu a torrada acompanhada por uma xícara de café amargo. Suas feridas foram cuidadas logo em seguida. Depois, juntou o cabelo sedoso e o amarrou de uma forma que ficasse escondido sob a boina. Vestiu a calça, a camisa justa, e o sobretudo que ocultou a pochete atravessada entre os seios, descansando próxima à cintura.
Ela abaixou a aba da boina enquanto colocava os óculos e se dirigia de volta para a catedral. Não chamou a atenção de ninguém por quem passou. Os seios estavam bem comprimidos, a feição madura, mas delicada, sombreada, dificultava notar os traços femininos.
“Acabei deixando minhas sapatilhas no corredor. Com certeza a polícia as encontrou com os corpos. Elas têm um modelo diferente dos dessa cidade, então, certamente, vão pensar que ‘a nova médica estrangeira’ tem algo a ver com isso.”
“Uma médica que não tem permissão para auxiliar o médico local. Que piada.”
Ela continuou seguindo adiante mesmo após pisar nos territórios da catedral, sem perder tempo admirando toda a estrutura gótica.
Alguns olhares duvidosos a seguiram, olhares de freiras incomodadas, lamentadores e adoradores, pois Sally seguia na direção onde uma tragédia havia ocorrido.
Nesta manhã, já estava nos títulos de todos os jornais: “ATROCIDADE: BISPO PAUL MORTO”.
E no subtítulo: “Encontrado no mesmo local, um homem estraçalhado até os ossos.”
Entretanto, a tranquilidade que Sally carregava consigo, escondida sob muitas camadas de roupas, era como se tais acontecimentos horripilantes fizessem parte de seu dia a dia.
Ela, de volta aos corredores que mais se assemelhavam a um labirinto no purgatório, tirou discretamente de sua pochete uma agulha dourada, do tamanho de um antebraço, grossa como um charuto. Todos os anjos de cada corredor por que passou foram marcados no calcanhar com números romanos. Inclusive, recolheu os pedaços de suas unhas entre a poeira e estilhaços de tijolos e os guardou no bolso.
Incomodada pela escuridão persistente mesmo pela manhã, franziu as sobrancelhas, sua boca se fechando numa linha dura e rabugenta.
A sala onde os corpos foram encontrados estava fechada, provavelmente trancada, pois havia placas de aviso próximas à mesma. Suas sapatilhas também não estavam mais neste corredor.
Se passou o que parecia ser uma hora inteira; entretanto, dentro do labirinto de corredores, o sol quente não alcançava, as janelas não serviam de nada — era como se estivesse à noite —, mas não para Sally. Ao descobrir novas estátuas de anjos, sem lanças ou espadas, ela percebeu que havia chegado a uma nova área.
Decidindo explorar todo o primeiro andar para que pudesse seguir para o segundo, a cada minuto que passava, sua desconfiança se intensificava, pois até agora não havia encontrado nenhuma freira. Provavelmente, elas apenas estivessem com medo por conta da atrocidade que havia acontecido, e assim evitando esse lado da catedral. Então, Sally deu de ombros, aceitando o óbvio.
Agora, de frente à passagem de um corredor tomado pelo breu, ela soube imediatamente que se tratava das escadas para o segundo andar. O pilar da quina da entrada foi marcado com o número LXXXI.
Enquanto se colocava de pé, guardou a agulha na pochete, em seguida, retirou dos bolsos uma cartela de cigarros. Na escuridão absoluta daquele corredor, o silêncio foi quebrado por um fósforo sendo riscado. A chama breve e reluzente iluminou seu rosto, revelando um pingo de estresse. O tabaco queimou intensamente com o primeiro trago.
— Deixe para fumar nas vielas junto aos ratos, senhorita.
Com um giro brusco, Sally fitou a figura segurando uma lamparina, dona de uma voz rouca, mas doce. Era uma freira.
— Mas como… — Sally se perdeu nas próprias palavras e retirou o cigarro de entre os lábios.
— Acho que isso é seu — disse a freira, se aproximando dela. Em suas mãos, estavam as sapatilhas.
Sally retirou os óculos sobre os olhos arregalados, incrédula por ter sido descoberta por uma freira.
— Ontem eu tentei… — continuou a freira —… te entregar suas sapatilhas, mas você parecia tão assustada com o que viu que nem me deu ouvidos.
— Como sabe? — Sally indagou, pegando gentilmente as sapatilhas. — Como tem tanta certeza de que não fui eu que os matei e estava apenas fugindo?
Um pequeno sorriso bondoso e ligeiro escapou dos lábios da freira. A lamparina iluminava seu rosto pardo, o nariz de ponta caída e os olhos fortes.
— O homem é a única criatura que não possui simpatia com a escuridão. E você não me parece nem um pouco com uma besta.
Sally, sem tirar os olhos dela, ergueu uma sobrancelha, guardando os óculos no bolso da calça para que pudesse segurar as sapatilhas com as duas mãos. E ela disse: — O que você quer dizer com isso?
— Voltou para a catedral somente pelas sapatilhas?
Longos dez segundos se seguiram. Os olhos de Sally deixaram os da freira, analisando brevemente a lamparina servindo somente para iluminar seus rostos silenciosos.
— Se importa em me dizer há quantos anos você é freira?
— Me senti ofendida. Não pareço ter longos anos sendo uma?
— Não, não é isso, eu só… queria saber se alguém foi recém-nomeado a algum cargo da igreja.
— Está tudo bem… — perdoou, mas ainda havia uma “coceira” atrás da orelha. — Se não me falha a memória, faz quatro anos desde a última nomeação.
— Entendo… — Sally cuspiu um suspiro frustrado, vacilando a postura dos ombros por um segundo.
Vendo a frustração dela, a freira fechou os olhos, como se tentasse recobrar memórias recentes. Apesar de ainda estar na meia-idade, a mente já era falha.
— Há um campo de colinas ao norte, onde não há literalmente nada além de grama verde e algumas árvores. É uma viagem relativamente longa, mas muitas pessoas optam por seguir mesmo assim. Uma dúzia, três vezes na semana. — A freira se virou de costas, deu alguns passos e olhou para Sally por cima do ombro. — O monge que concede bênçãos deve ter algumas das respostas que você procura. Dizem que quando ele chegou, o surto de mortes súbitas aumentou, mas surpreendentemente, diminuiu depois de alguns dias.
Sally refletiu por um momento, observando a freira se retirar com a lamparina, permitindo que a escuridão a envolvesse novamente. O cigarro apagado jazia no piso, as sapatilhas firmes contra sua barriga.
Um monge que morava em um campo de colinas ao norte, concedendo bênçãos a trinta e seis pessoas por semana. Se ele realmente, de alguma forma, diminuiu o surto de mortes inexplicáveis, era incontestável que sabia de algo. Agora, com a informação de que ninguém foi recém-nomeado a algum cargo da igreja, Sally havia tomado o conhecimento de que o mago podia ser qualquer um, ou quase isso.
“Não, não é a freira. Ela teria tentado algo aqui mesmo…”
“Então, como esse mago sumiu tão de repente após ter matado o juiz e aquele outro homem? Não existe feitiço sem selo que faça alguém explodir de dentro para fora, nem encantamento poderoso o suficiente. Será um teletransporte? Não… Um feitiço de teletransporte deixaria um selo de enxofre no local que se teletransportaria.”
“Eu preciso encontrar esse monge!”
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