Capítulo 24 - Campo Vibrante
Sally Dakis mordeu a gola do próprio sobretudo para conter a enorme dor que sentiria em breve. Cuidadosamente, retirou o pedaço da manga que estava enrolado no pulso e trocou por uma bandagem firme. Depois, posicionou o antebraço sobre uma tala alinhada à coxa esticada, as costas da mão alinhadas ao joelho. E o cinto de sua calça se encontrava entre a coxa e a tala.
Com um forte puxão seguido por um grito doloroso, Sally alinhou os ossos. Um gemido ofegante escapou de sua boca tensa quando ela se jogou para trás. Suas costas se encontraram com a maciez da areia, e por um segundo, seu corpo relaxou. As íris cinzentas-esverdeadas fitavam o céu nublado.
O seu peito subia e descia com a respiração pesada, ofegando o ar gelado sendo soprado pelo vento do leste.
Ela sentou-se novamente, fechou as pálpebras e respirou fundo, inalando o ar até encher completamente os pulmões, soltando em seguida na forma de um bufo.
A pochete estava jogada ao lado de vários objetos de um kit médico, bandagens para lá e para cá, pinças, tesouras e bisturis, todos ensanguentados. Inúmeras seringas vazias de analgésicos e anestésicos estavam dispersas na areia.
Sally se inclinou para o lado, esticou o braço e puxou a pochete, depois retirou de dentro uma tipoia. Após posicionar com cuidado a tipoia sob o braço quebrado, passou a faixa macia para trás do pescoço.
Seus olhos congelados sob as pálpebras levemente caídas fitaram a areia em volta de suas pernas cruzadas, sua mente presa, imaginando mil e uma possibilidades. O suor que escorreu pela lateral de seu rosto, não era nada menos que uma resposta natural de seu corpo perante a preocupação a roendo de dentro para fora. Não, não era apenas isso. Aquelas íris cinzentas adornadas por uma tonalidade suave de verde, dilatadas, fitando a areia negra, escondiam um sentimento mais doloroso e agonizante que ter um braço quebrado.
Um sentimento que logo foi ensurdecido pelo riscar de um fósforo e sufocado pela fumaça densa de uma primeira e única tragada.
Levantou-se à medida que pegava a pochete pela alça, deixando para trás os objetos cirúrgicos e o sobretudo. Ela seguiu com os joelhos fracos, as pálpebras pesadas e os ombros caídos. A cada passo, era solto um suspiro exausto.
A Vontade foi neutralizada por uma força maior. Seus joelhos fraquejaram e se dobraram, atingindo simultaneamente a areia com um farfalho, depois veio o resto do corpo que tombou por cima do antebraço esquerdo.
Duas noites se passaram desde então.
Nenhuma outra pessoa que passou pelas redondezas a avistou, nem as aves ou qualquer outro animal. Sally era como um cadáver invisível. Apenas seus ombros, nuca e metade do rosto estavam descobertos pela areia que a escondeu do restante do mundo.
Sua mão direita, com a alça da pochete presa entre os dedos, deslizou inconscientemente até ao lado de sua face, e ergueu o seu corpo débil e mole com um esforço considerável. Seus olhos despertaram, expulsando a areia dos cílios volumosos.
Passou a pochete em volta da cintura e a prendeu de forma frouxa, o que fez com que caísse para os quadris. Ela levou a mão até atrás da cabeça e desprendeu o penteado firme e curto, seu cabelo sedoso caiu sobre os ombros até a lombar, e foi desgrenhado em um instante pela ponta de seus dedos, farfalhando ligeiramente, expulsando grande parte da areia presa entre os fios.
“Por quanto tempo eu dormi?”, pensou, se posicionando de frente ao sol da tarde com os olhos semicerrados.
Uma combinação harmoniosa adornou seu rosto por um instante, a luz morna aqueceu seu semblante sonolento, e o vento soprou algumas mechas negras de cabelo para frente dos ombros relaxados.
“De qualquer forma, isso não importa agora.”
A linha de separação entre o mar de areia que tomava todo o sul da Nova Pangeia e o enorme campo de colinas, era um degradê ondulante, imperfeito e extenso. Sally percorreu pela mistura discrepante entre a areia preta e a grama verdejante por longos e exatos trinta e dois minutos.
Suas botas pesadas deslizavam à força pela grama, desmanchando os milhares de filetes. Os mesmos eram tão perfeitos que parecia que alguém os aparava todos os dias.
Particularmente, ela não achou nada de especial o “paraíso verde”, pois seus olhos já guardavam memórias mais lindas e harmônicas que essa paisagem pacífica. O cheiro de grama adocicado não se comparava ao aroma de mel que suas narinas já inalaram em uma terra distante desta.
Sally pôde ver ao longe três dúzias de pessoas. Elas pareciam estar ajoelhadas diante de um carvalho velho, o único em toda a extensão do campo de colinas. E entre essa gente, prostrada e rezando constantemente, estava uma figura alta, vestindo um roupão. As sombras dos ramos grossos, galhos tortos e folhas verdes-escuras acolhiam a maioria dessas pessoas ajoelhadas.
Quando Sally se aproximou o suficiente para ouvir os murmúrios escapando da boca dos prostrados, ela rapidamente foi notada por aquele homem de roupão. Uma típica veste preta de monge.
Ele avançou, dando passos suaves e gentis. Seus chinelos de madeira, adornando as meias brancas, rastejaram ritmicamente até que estivesse aproximadamente a três metros de Sally. Com um sorriso, ergueu a mão com a palma aberta até a altura e, ao lado do ombro, acenando de forma estática.
— Eu estava esperando por você.
As pálpebras de Sally se estreitaram imediatamente com a afirmação dele. E ela, desconfiada, respondeu: — Não vim aqui para ouvir supostas predições.
— Então suponho que eu que tenha que escutar — disse, com um toque de sarcasmo amigável. — Por que não se junta às essas pobres pessoas? Depois eu ouço o que você tem a dizer.
— Não. Eu espero aqui.
O monge, gentil, não se importou com a forma seca que Sally o tratou. Ele a deu um sorriso generoso e voltou para o alto da colina para se sentar com as pernas cruzadas, próximo ao carvalho.
Um jovem, prostrado entre uma idosa e um homem de meia-idade, rastejou até o monge assim que ele estendeu sua mão.
O jovem rapaz sentiu a ternura de um toque gentil, semelhante a de um pai que preza seu filho como uma mãe prezaria. Os dedos escorreram do topo da cabeça até ao lado da bochecha, como se estivesse escovando as areias de uma praia. E sinalizou para que o jovem voltasse para onde estava com uma leve carícia com o polegar que se alastrou do nariz até o canto do olho.
Sally encarou a cena, se perguntando cética e tediosamente se essa seria a tal benção. Bem, ela acreditava que teria respostas assim que tudo isso terminasse. Que esse monge deveria ser útil de alguma forma.
Depois desse jovem, a idosa se esgueirou, arrastando a face pela grama. Lentamente, o monge ergueu a cabeça dela, como se fosse uma peça de gelo fino. Após sentir aquela pele quente exalando tanto amor, segurando seu rosto enrugado por alguns segundos, recuou ainda com os joelhos firmes no solo macio.
O homem de meia-idade foi o próximo; estendeu suas mãos como se implorasse pelo toque do monge. E o monge, ainda sorrindo amorosamente, satisfez sua vontade, segurando suas mãos e pressionando suavemente os polegares no centro das palmas, como se estivesse acariciando pétalas de rosas.
Sally esperou pacientemente — apesar de sua expressão dizer ao contrário —, o monge abençoar cada pessoa sob as sombras do carvalho. Uma por uma.
Enfim, após o que pareceram horas, o monge se levantou depois de abençoar o último indivíduo: um menino de cabelos castanhos e ondulados, cujas íris azuis estavam tomadas pela paixão, encharcadas de lágrimas e adorando as simples sandálias de madeira. Uma mulher, contendo um choro que desejava escapar pelos lábios trêmulos e escorrer pelas bochechas avermelhadas, se aproximou cautelosamente com a cabeça baixa e o puxou para longe.
Toda a multidão foi embora em prantos, alguns abraçando seus familiares, outros a sós, e enxugando as lágrimas nas próprias vestes.
O monge cruzou os braços debaixo das mangas largas, e perguntou exclamando: — Por que não me permite abençoá-la?
Sally continuou em silêncio, apenas o encarando no cume da colina, como se apenas quisesse aproveitar a brisa soprando seu cabelo desgrenhado. Seu olhar indiferente sugeria que ela não acreditava nem um pouco que ele poderia realmente abençoar.
— Que gelo… — brincou o monge. — Eu tenho uma cabana próxima daqui. Talvez seja melhor conversarmos lá.
Após alguns segundos, Sally soltou um suspiro quase cansado e respondeu: — Por que não?
— Mas antes, se importa em me dizer o que aconteceu com você? — Caminhou até ela, seus sedosos cabelos negros e longos, voando junto ao vento, ritmicamente com os dela.
— Você não acreditaria. E eu não posso ficar aqui por muito tempo, preciso voltar para a cidade o quanto antes.
— Então, vamos poupar tempo, por favor, me acompanhe — disse, dando as costas para Sally.
Ela não o seguiu imediatamente, mas ponderou por alguns segundos enquanto o observava caminhar em direção à cabana que ficava em algum lugar longe dali. A pequena desconfiança que sentia em relação à gentileza dele estava subjacente à sua expressão neutra.
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