— Por favor, não ligue para a bagunça — disse o monge, abrindo a porta da pequena cabana.

    Os olhos de Sally se estreitaram ao ouvir o pedido humilde dele. Um rosnado ligeiro e silencioso reverberou pela sua garganta. A gentileza e a paz que ele emanava a incomodava, e ser amado por várias pessoas não era motivo de ser merecedor de sua confiança. 

    O interior da cabana de troncos escuros e brutos era incrivelmente aconchegante e minimalista. Havia somente uma pequena mesa abrigando três bancos, uma pilha de lençóis brancos dobrados sobre cômoda ao lado da cama, e uma poltrona em frente a uma lareira, obviamente apagada.

    “Não ligar para a bagunça? Está tudo perfeitamente organizado”, Sally refletiu, um pouco descontente, achando que o monge era um pretensioso subjacente à falsa humildade.

    — Quem é você? Não me parece ser do sul. — Sally permaneceu de costas para a porta fechada, quase rente à mesma, e ela continuou dizendo: — Veio somente para confortar as pessoas dessa “praga”?

    Um pequeno riso escapou dos lábios do monge como rápidos murmúrios alegres. Ele ergueu levemente o queixo, um gesto quase arrogante, seu olhar simpático se tornou consideravelmente malicioso. Suas palavras se tornaram firmes, entretanto, o seu tom não lançou nenhuma ameaça, continuou sendo tão amigável como antes.

    — Dharma. Me deram esse nome quando eu tinha quatro anos, é quem eu sempre continuei sendo.

    Sally ponderou por um momento. Os monges o batizaram? Provavelmente, mas isso era irrelevante. Na verdade, qualquer assunto sem conexão com a sua missão era irrelevante.

    — Acredita mesmo que está livrando essas pessoas da morte às “abençoado”? Não se preocupa em saber a causa de tudo isso?

    — Que falta de educação! Eu queria pelo menos saber como posso te chamar antes de esclarecer suas dúvidas — exclamou, mas brincando para que o clima entre eles permanecesse leve.

    Sally recuou sua postura em um instante em pura perplexidade. A mesma rasgou sua fisionomia séria e focada.

    — Me… Me desculpe. — Não havia um pingo de arrependimento em suas palavras, apenas incrédula por ter sido tão desatenta. — Me chamo Sally, Sally Dakis.

    Dharma escondeu os braços sob as mangas de seu manto, os cruzando discretamente. Seu pescoço se inclinou suavemente para o lado.

    — Sally… Dakis? Hm. — Ele pensou, fazendo biquinho. 

    — Algum problema?

    — Não, não há nenhum problema. Então, Sally, ainda não entendi o que você quer. De todas as pessoas que quiseram falar comigo pessoalmente, você está sendo a mais confusa.

    — Eu te fiz duas perguntas. O porquê você veio para o sul, e se realmente concede bençãos para essas pessoas.

    As palavras de Sally provocaram rugas de confusão na testa de Dharma.

    — Está insinuando que sou um charlatão? 

    Sally entortou os lábios para o lado, já irritada por ele simplesmente não responder às suas perguntas. Ela não se importava se ele se sentia ofendido ou não, apenas queria respostas.

    — Não, claro que não. Apenas… responda às minhas perguntas.

    — Hm. Tudo bem. — E ele começou: — Eu posso conceder, sim, bençãos. Esse é o princípio da fé, certo?

    Um impacto de decepção atingiu Sally assim que essas palavras chegaram aos seus ouvidos. Ela esperava que Dharma realmente possuísse um Dom, e não a fé de ter a capacidade de abençoar. Entretanto, ainda havia dúvidas sobre a origem desse monge.

    — E de onde você veio?

    — Do norte — respondeu com um tom de saudades.

    — E por que veio para o sul? Para o quê? Ninguém vem de muito longe apenas pela gentileza de querer ajudar o próximo.

    Subitamente, o semblante de Dharma se tornou tão duro e fechado quanto o silêncio que nasceu com a pergunta e a afirmação de Sally, como se ela tivesse passado dos limites, invadido descaradamente sua privacidade.

    Entretanto, Sally não se deixou intimidar com a mudança abrupta de humor e com a tensão da atmosfera.

    — Me diga, garota, o que nos torna humanos? — Dharma indagou, sua raiva transparecendo pela voz rouca, mas leve, como um sussurro.

    Ela não o respondeu de imediato, mas refletiu por alguns segundos, escolhendo meticulosamente as palavras certas.

    — Um monge deveria saber a resposta de perguntas como essas. Mas eu vou responder caso for apenas curiosidade sua. — Sally fechou os olhos, assertiva com a resposta que daria. — A nossa vontade imensurável de viver, continuar seguindo em frente mesmo que seja impossível vencer, sem influência do instinto, nos torna uma forma de vida única, talvez, até em todos os cosmos.

    — Está errada — ele negou rapidamente, a deixando surpresa por um instante, nada que realmente a abalasse. — A nossa capacidade de determinar o valor de vidas é o que nos torna únicos. 

    — Isso é meio vago. — Sally o fitou, procurando e esperando que ele dissesse mais alguma coisa, mas ao perceber que não diria mais nada, deixou fugir um bufo à medida que deu meia volta para girar a maçaneta da porta. — Já que você não vai mais colaborar, eu estou de saída. 

    Dharma, obviamente, não se importava que Sally fosse embora depois dela ser tão invasiva. Contudo, ele parecia entender suas atitudes, e decidiu finalmente cooperar. Dar aos ouvidos dela o que desejavam ouvir.

    — Em uma cidade ao norte, chamada Dherry, há uma sacerdotisa — ele disse com convicção, ganhando novamente a atenção de Sally.

    — Uma sacerdotisa?…

    — Alguns dizem que ela é uma feiticeira, outros dizem ser um anjo mandado por Deus, o restante, uma santa dotada pela benção divina. Mas ela de fato cura aquilo que toca. Não é somente fé.

    Sally ponderou e fechou os olhos, a leveza da brisa abanando seus cabelos e acariciando sua pele permitiu que ela organizasse seus pensamentos, além de deixá-la jogar para o lado o estresse causado pelo inconveniente com a besta-fera. Quando abriu as pálpebras novamente, olhou para o céu nublado, em seguida, fixou o olhar na grama próxima às suas botas. Por fim, voltou a encarar Dharma, próximo à porta.

    — …

    Com uma despedida silenciosa, Sally seguiu rumo ao deserto negro. Dúvidas borbulhavam em seu interior, causando uma inquietação incandescente transparecendo em seu caminhar apressado. 

    Ela sabia que, na Nova Pangeia, não existiam bestas-feras e nem mana, e que o índice de haver alguém com um Dom era quase zero. Entre todos os continentes, esse era o único que não havia objetos mágicos ou encantados. Não havia motivo para causar tantas mortes, não existia sentido em ter uma besta-fera em um continente isolado e de certa forma, morto — no sentido de não haver nada de fantástico.

    Assim que Sally escapou do campo de visão de Dharma, ele fitou uma foto em preto e branco que retirou da manga de seu manto. Seus dedos seguravam o papel fotográfico com amor. Um sorriso confiante, contento uma promessa, adorava a mulher fazendo uma pose alegre. Mesmo a fotografia estando desgastada pelo tempo de décadas, não foi o suficiente para ofuscar os cachos grossos, provavelmente loiros, dessa mulher tão meiga, vestida com um vestido pálido.

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