Capítulo 26 - A cisma do Diabo
A cidade do norte a que o monge se referiu, ficava ao sul — Dherry — a primeira cidade a ser vítima das mortes súbitas e da tempestade. Localizada a 229 km do campo de colinas.
A areia grossa e pesada não dificultou a marcha de Sally Dakis até a cidade da enorme catedral, Durham. Ela não só se concentrou em seguir o mais rápido possível, mas também, mais uma vez, revisar as informações adquiridas. Pois, sempre que fazia isso, sentia, mesmo que insignificativamente, estar mais próxima de desvendar esse mistério.
Portanto, estar ciente de que, talvez, houvesse uma feiticeira em Dherry, significava que estava aos meados da missão. Isso se essa tal mulher realmente for uma feiticeira, mas não era como se Sally tivesse mais opções. Ela tinha que conferir esse fato.
Quando a noite já havia engolido o sol e trazido a lua ofuscada pelas nuvens densas, Sally chegou em Durham. Uma caminhada que demorou cerca de quatro horas e poucos minutos. Seria um erro afirmar que ela estava apenas exausta fisicamente, pois suas sobrancelhas fracas e olhar desatento concretizavam um certo cansaço mental. E estar na mesma cidade que o mago não a preocupava. Desde que houvesse uma rota de fuga facilmente acessível, ele não era motivo de preocupação.
Então ela seguiu vagando, alheia com tudo a sua volta. E assim que virou uma esquina, essa, onde se encontrava o seu prédio de apartamento, suas narinas se contraíram e a forçou a recuar.
“Mas que merda…?!”
Sally levou seus dedos até o nariz e os apertou com força.
“Que fedor!!”
Entretanto, interromper a respiração nasal, para evitar o odor, não foi o suficiente. O mesmo permeou as papilas de sua língua, a obrigando a sentir uma amostra do gosto distinto de podridão.
A preocupação envenenou seu semblante sereno, tirou dela a lerdeza de seus gestos. Agora, cada movimento era tenso e hesitante. Sally avançou, seu caminhar firme e impaciente na intenção de descobrir o motivo desse odor catastrófico.
A cada passo em direção àquela esquina ao longe, iluminada somente por um pequeno poste a óleo, sua tensão aumentava, como se houvesse uma presença maligna espreitando a rua de onde se originava o odor. Não era como se somente tivessem sido jogado excrementos, restos de comida e cadáveres de animais; parecia também que havia ocorrido um abate asqueroso de porcos doentes com úlceras que ardiam a vista, e jogado as tripas, o fato e a pele grudada na gordura pela calçada já umedecida pelo sangue e lixos de meses.
À medida que se aproximava, pôde ouvir murmúrios melancólicos e ecos suaves de choros.
Sally estava absorta com aquela rua. Embora seus dedos estivessem apertando o nariz, estavam prontos para retirar alguma arma de dentro da pochete. Um passo atrás do outro, cautelosos, mas apressados.
Ela virou a esquina.
Sally Dakis deixou a mão deslizar para o lado da coxa, seus olhos pasmos relaxaram imediatamente. Neste momento, o seu cansaço mental atingiu a ponta da ruptura e obrigou sua mente a ordená-la a dar meia-volta e seguir em direção ao prédio de apartamentos.
Não esbarrou com a presença de ninguém ao percorrer a rua, passar pela porta dupla, subir as escadas velhas, atravessar o corredor, e enfim estar de frente à porta sem graça de seu pequeno quarto.
Sua mão trêmula girou a maçaneta. Ela não hesitou em puxar um cigarro com a ajuda dos dentes e incendiá-lo rapidamente com um fósforo. Foram duas tragadas rápidas e ofegantes em contraste com seu semblante fraco e confuso. Mas isso não significava que ela não sabia o que fazer agora.
Moveu-se até o banheiro à medida que se despia com cuidado para não machucar o seu braço, agora, sem a tipoia e a tala. Com uma fraqueza evidente, abriu a torneira da banheira. Seus pés pequenos afundaram na água fria, suas costas entraram em contato com ferro gelado como gelo, gradualmente, se equilibrando à temperatura da água.
Fechou a torneira assim que a água alcançou a ponta de seu queixo. Seu olhar afadigado fitava o teto de gesso cinzento enquanto os fios de seu cabelo flutuavam em sua volta, harmonicamente, quase como se estivessem imóveis.
Ela permitiu que todas as sensações do momento inundassem seu corpo, seja a dor de seu antebraço e pulso, seja o sono, seja o cansaço, e até mesmo as dores por ter privado as necessidades básicas, como fome e sede.
Lentamente, suas pálpebras devolveram a visão aos seus olhos, pois ela havia dormido por um tempo consideravelmente longo.
Sua mão direita emergiu da água e segurou com preguiça a borda da banheira. Ao se levantar, caminhou de forma lenta e debilitada para o quarto.
A água escorria calmamente pela sua pele, acentuando seu semblante calmo, mas ainda um pouco exausto. Ela inclinou-se e abriu a pochete, e retirou uma toalha e roupas leves, como um vestido de seda branco, vestes íntimas, um chapéu de verão, e um par de tênis.
Ao terminar de se vestir, se sentou sobre a ponta da cama e levou mais uma vez a mão até o fundo da pochete. Seus dedos mansos puxaram uma escova de cabelo; Sally sugou com a toalha parte da água de seus cabelos, e os penteou logo em seguida, mas sem pressa, como se tivesse todo o tempo do mundo somente para si.
Agora, os cabelos estavam como fios sedosos pintados com carvão, caindo em seus ombros e deslizando até a lombar como cascata.
Dentro daquela pochete, ela tinha tudo o que precisava — envolveu o antebraço e pulso quebrados com gesso e gaze. Depois, foram abraçados por uma tipoia macia, uma melhor do que ela estava usando.
Indubitavelmente, não havia outra palavra para descrever o semblante de Sally, a não ser sereno.
“Sally… você é uma princesa, uma flor delicada… Não deixe que esses infortúnios a destruam. Somente… Uma única vez, faça o que você ama, só dessa vez… Não há mal nisso.”, advertiu-se com gentileza, como se tivesse profundo apreço por si mesma.
Sally encaixou o chapéu de verão na cabeça, depois, atravessou a pochete sobre o ombro para descansar na cintura, próximo ao quadril. Tal pochete, branca como algodão.
Ela não deixou nada do que era seu para trás, somente o vestígio de que um dia esteve ali: a cama desarrumada, a banheira cheia, e as bitucas de cigarro no canto do quarto.
E seguiu adiante, em direção a Dherry.
Passou em frente à rua onde o odor abominável e os murmúrios tristonhos se originavam. No entanto, ela não se atreveu a olhar para o lado, não se atreveu sequer imaginar a dor das inúmeras mães abraçadas com os corpos gelados de seus filhos, de suas crianças pálidas, já com vermes roendo a carne podre. Seus rostos sem vida, úmidos pelas lágrimas de suas mães. Cada polegada da rua foi tomada por figuras maternas, cadáveres que elas se recusavam a deixar partir e clamores silenciosos.
Elas, sem dormirem por dois dias, compartilhavam suas dores com olhares tingidos pelas olheiras roxas. Suas bochechas avermelhadas e úmidas aninhavam-se aos pescoços frios ou à região do coração, esperando que milagrosamente, os pulsos de seus filhos voltassem a bater.
Em contraste a essa desgraça, as feições de Sally permaneceram calmas. Agora, percorrendo pelo deserto negro, banhado pela lua pálida, ela sabia mais do que nunca que precisava encontrar a suposta feiticeira, mesmo que talvez fosse apenas uma sacerdotisa comum.
O sopro do vento abanou a aba larga de seu chapéu e o seu vestido empalidecido pela lua. Suas vestes ondulavam com o vento, ritmicamente, como se fossem uma só substância da natureza. Ela não aproveitou a forte brisa de forma convencional, mas, com o braço direito, puxou um maço de cigarro seguido por um isqueiro.
E incendiou a ponta do cigarro. Cada tragada foi como a última.
Graciosa noite estrelada sobre o deserto gélido como um mar de petróleo, noite essa que passou a não existir mais, depois da “A cisma do diabo; a madrugada silenciosa”, era como estava nos jornais de todo o sul da Nova Pangeia. Cerca de 1/3 das crianças abaixo de 12 anos de toda Durham, faleceram na madrugada de quinta-feira. Portanto, a rua contendo a cena calamitosa que Sally havia se deparado não era a única.
Quando ela visualizou essa cena, percebeu que mesmo que descobrisse qual feitiço que estava sendo utilizado para cometer toda essa atrocidade, isso pouco adiantaria. Passou a acreditar que nem ela, nem Jade Valderbilt seriam capazes de impedir o que estava acontecendo sem dar um fim no causador.
Entretanto, nesse instante, percorrendo pelo deserto, Sally não se perguntava as motivações do mago, o porquê de tanta crueldade. Sua mente se encontrava envolto por memórias que a traziam leveza no coração.
A cada tragada lenta e deliberada, ela se afundava nesse devaneio tão reconfortante, como se estivesse fumando apenas para se entrelaçar mais e mais nessas memórias — talvez ilusórias —: a imagem de uma mulher com vestes de casamento encharcadas de água, assim como seus cabelos castanhos, com muitos fios grudados em sua face feliz.
Seu ombro esquerdo foi descoberto até acima dos seios, e sua mão direita segurava seu outro braço, era como se ela estivesse posicionada para uma foto. Não, definitivamente, era isso, uma grande foto que duraria gerações.
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