— Simon, o que faremos? — perguntou Jade Valderbilt, sentada em uma poltrona aos pedaços.

    — Não tenho certeza… A situação está mais precária do que imaginei — respondeu Simon, o administrador ruivo.

    Ambos se encontravam numa mansão em ruínas. Sem teto, sem paredes intactas ou janelas, apenas um amontoado de madeira e pilares de pedra.

    — Provavelmente a Sally descobriu algo. Não tem… como você se teletransportar até ela? — disse meio hesitante por não ter pleno conhecimento dos poderes dele.

    — Não. Preciso saber o local exato de onde ela está. Apenas consegui vir até aqui, graças ao novo dispositivo da Fundação. Não sei o porquê a maioria dos caçadores se recusa a usar uma coisa tão útil.

    Jade sorriu e apoiou seu rosto com o punho, e disse, gesticulando em desdém com a mão livre: — Sabemos nos cuidar, bobinho.

    Uma carranca surgiu em Simon no instante em que ouviu a inocente brincadeira de Jade.

    — Parecem um bando de crianças. — Ele ajeitou bruscamente sua gravata. — Agora tenho que ir. Se não descobrirem nada em quatro dias, voltem para a Central do leste.

    — Tudo bem, mas antes — exclamou, erguendo o dedo indicador —, como foi o conselho para decidir sobre a promoção do meu cargo?

    — Ainda não decidimos nada.

    Abruptamente, o espaço envolto de Simon se curvou por um segundo, e ele desapareceu, sem esperar pela resposta de Jade. Ela soltou um riso ligeiro à medida que se levantou do sofá, achando todo o receio que ele tinha de ela se tornar um Agente, divertido.

    “Que mal-educado…”

    Jade, sem nenhuma dificuldade, escalou um pilar destroçado e analisou o seu arredor, procurando por Jax Bennett. 

    “Onde ele se meteu?” 

    Mal sabia ela, que Jax se encontrava jogando baralho com alguns moradores de rua, apostando um anel de noivado e algumas moedas de prata e ouro.

    Os moradores de rua desejavam tanto os objetos valiosos no centro da roda, que seus sentidos sensoriais estavam todos voltados para o jogo. Nem ao menos engoliam a saliva, ou se importavam com os ratos farejando os seus pés calejados.

    Entretanto, para a infelicidade do trio, Jax era astuto demais e tomou as poucas coisas que eles conquistaram; uma lata de feijão, um casaco que mais se parecia com um trapo, um gorro vermelho e um isqueiro. Mas não era como se ele precisasse de alguma dessas coisas — jogou os mesmos em uma lata de lixo próxima.

    E foi então que Jade o avistou.

    Ela afundou-se em sua própria sombra, se encontrando por um instante com a escuridão absoluta. Mas no mesmo segundo, emergiu da sombra de um poste atrás de Jax. Interrompeu o curso dele ao puxar o seu ombro.

    — Onde você estava? 

    — Ah?! — Olhou para trás, assim percebendo que se tratava de Jade. — Em lugar nenhum. 

    Com uma carranca, voltou a seguir para algum lugar que, provavelmente, não era tão importante.

    Mas Jade, mantendo um grande sorriso fechado, o puxou pela gola da camisa e o girou para que seus olhos se encontrassem. Depois, ajeitou carinhosamente o gorro que estava mal colocado.

    — Aconteceu alguma coisa? Você parece triste. — Descansou suas mãos nos ombros dele, dando um aperto confortável.

    — Triste?! Eu sou a última pessoa no mundo que você veria triste!

    Como resposta, ela deu dois tapinhas na lateral do rosto dele, seguidos por um beliscão inofensivo. Depois, cantarolou: — Não precisa gritar comigo, meu pequeno baiacu. Agora, por que não vai dar uma olhada em uma mansão isolada que fica fora dessa cidade? Preciso fazer umas coisinhas. Depois eu vou lá conferir com você.

    — Eu ouvi falarem dessa mansão…

    Após alguns segundos refletindo, ele deixou fugir um bufo derrotado e afundou as mãos nos bolsos. E passou por Jade, que o observou com uma feição meiga seguir pela rua dizimada, completamente em pedaços, como se uma guerra houvesse acontecido.

    Ela não parecia tão preocupada com toda essa situação, como se uma hora ou outra, tudo iria ser resolvido. 

    A cidade onde ambos se encontravam se chamava Ravenwell, conhecida por sua grande fábrica de armas e por abrigar cientistas brilhantes. Não a mais afetada pelas mortes súbitas e pela tempestade, mas com certeza, foram onde as consequências de tais foram catastróficas.

    As pessoas haviam enlouquecido por perderem seus familiares amados subitamente, acreditando que Deus havia os abandonando. Eles, sem um mínimo de hesitação, invadiram a igreja, destruíram as imagens santas, incendiaram as janelas e crucificaram aqueles que eram contra suas revoltas.

    Por causa desses atos animalescos, as cidades vizinhas se recusaram a receber refugiados, acreditando que eles eram iguais.

    Entretanto, ainda havia muitas pessoas que mantiveram suas fés firmes, ou seja, houve uma guerra entre os dois lados, uma guerra que resultou somente em mais mortes, sangue, miséria e dor. Quando eles foram repensar seus atos, já era tarde demais, pois não sobrou nada além deles mesmos e uma cidade em ruínas.

    Jade, desde que chegou a Ravenwell, se empenhou em ajudar ao máximo, mesmo tendo que sacrificar a maioria de suas noites de sono. 

    O seu sorriso relaxado nunca vacilou, nem mesmo quando acolhia em seus braços as crianças dos becos, dizendo para elas frases como: “Vai ficar tudo bem”. E ela passava a madrugada reunindo restos de comida, e até caçando animais comestíveis para saciar a fome das crianças.

    Enquanto vagava pelos destroços, usando sombras como portais para se transportar mais rapidamente, avistou uma menina com o canto de seus olhos, coberta de sujeira e chorando.

    Por um momento, seus olhos cor de mel a fitaram. Seu coração não sentiu nenhuma empatia, seu olhar sereno não vacilou nem por um mili segundo. Entretanto, não houve hesitação para se aproximar dela.

    Com um sorriso tão discreto que parecia cansado, Jade agachou, e com a gentileza de uma mãe, pegou a menina no colo como se fosse um vaso valioso e tão frágil quanto uma pétala de rosa.

    — O que aconteceu, pequena? — perguntou enquanto se colocava de pé.

    Mas a criança ruiva de cabelos amarrados em duas tranças, derramando lágrimas em suas sardas, não disse nem uma palavra. Mas permaneceu aninhada no pescoço de Jade que decidiu não insistir na pergunta.

    — Shh… Vai ficar tudo bem — ela sussurrou, caminhando para um lugar mais agradável.

    Ao avistar uma parede caída, permitindo uma bela vista à algumas flores e gramas úmidas manchadas de lama, Jade se direcionou até as mesmas e se acomodou em meio à grama, de costas para os destroços da parede.

    — Não são belas? 

    A menina se virou lentamente, soluçando enquanto lutava para conter o choramingo. A cada respiração pesada, sugava o catarro que escorria de suas narinas e grudava nas vestes de Jade que não se importou com tal, mas continuou encarando as flores brancas.

    Com os minutos que se seguiam, a menina também ficava hipnotizada com as flores, aos poucos esquecendo o porquê chorava. Ela aconchegou suas costas nos seios de Jade, e esfregou suas narinas sujas com o pulso na tentativa de limpá-las.

    Não havia nada de mais nessas flores. Não exalavam nenhum cheiro, não possuíam uma forma interessante, e não eram muitas. Portanto, o que capturou as atenções delas, foi nada menos que a mais pura beleza de todas. A simplicidade.

    — Você está com fome? — Jade perguntou, assim finalmente quebrando o transe.

    — Um pouco. — A voz da menina soou trêmula, ainda um pouco abatida.

    Jade ponderou por um segundo, depois se levantou e a levou até a parede caída, e disse: — Fique aqui. Eu vou procurar algo para você comer. 

    E como um vulto, ela desapareceu sem chamar a atenção da criança. Enquanto vagava por Ravenwell, ou melhor, pelo que restou dela, tratou de vasculhar cada lata de lixo, beco e até em casas abandonadas, mas tudo o que encontrou foram ratos e baratas. Então, ela decidiu pedir às pessoas que ainda tinham casas e lareiras para se aquecerem, mas tudo o que ganhou foram “nãos”, “vá embora” e até o próprio silêncio. No entanto, o egoísmo dessas pessoas ariscas não foi motivo para aborrecê-la, como se entendesse o lado delas, ou talvez, fosse relaxada demais para se importar.

    O desânimo não atingiu Jade, que continuou firme e focada em buscar por algo comestível. A habilidade de usar sombras que suportassem seu tamanho como portais facilitou, e muito, a sua busca.

    Portanto, não demorou muito para finalmente encontrar o que queria.

    — Hm? Por que alguém jogaria essas coisas fora? — indagou a si mesma, retirando do lixo uma lata de feijão, um casaco que mais se parecia com um trapo, um gorro vermelho e um isqueiro.

    Jade, animadamente, pulou dentro da sombra da lixeira de onde retirou tais coisas. Seu corpo se moveu entre a entrelaça do mundo material e imaterial, percorrendo pelas sombras que seus olhos avistavam. Logo, em meros segundos, surgiu próximo onde a menina ruiva estava, caminhando para fora da sombra de uma parede que, por milagre, ainda estava de pé. 

    Os olhos tristes da menina fitavam cegamente as flores — tão nova, mas já perdida em seus próprios pensamentos; fantasias projetadas por sua mente para aliviar a agonia da realidade. Seu devaneio apenas foi quebrado quando Jade aconchegou o casaco em seus ombros. Sentiu uma mão terna pousar em sua cabeça. Um cafuné lerdo trouxe um pouco de calor ao seu coração.

    Enquanto isso, a sombra da altruísta Jade, distorcida pela posição do sol, se esticou e tomou sua forma exata. E esta sombra tirou de seu bolso uma lata de feijão, um isqueiro, um gorro vermelho e uma colher.

    Logo depois, se triplicou e, como um teatro de sombras independentes, elas, desajeitadas, tentando fazer o mínimo de barulho possível, juntaram galhos para fazer uma fogueira, a acenderam com um isqueiro, abriram a lata de feijão às pressas e a colocou próxima à fogueira crepitando suavemente.

    No fim, elas se fundiram novamente em uma só e retornaram para Jade, que se levantou abruptamente, revelando à menina, a lata de feijão sendo aquecida pela pequena fogueira.

    — Surpresa! — Sua voz serena fez seu tom parecer tênue, como se tivesse forçando emoção.

    Uma tímida esperança de sorriso surgiu no canto dos lábios da criança. Os mesmos se torceram para choramingar algumas palavras, mas o único som que saiu de sua boca foi um breve e triste zumbido. Toda sua linguagem corporal denunciava o choro que estava por vir, mas antes que a primeira lágrima escorresse, Jade a envolveu em um abraço. Ela pegou o pequeno corpo dela nos braços e se sentou próxima à fogueira.

    Algumas mechas dos cabelos encaracolados de Jade caíram sobre o seu próprio rosto moreno. Seus lábios gentis encontraram ternamente o topo da cabeça da menina. E uma das mechas destacou a pinta delicada que adornava a pele abaixo do canto do olho direito.

    — Vai ficar tudo bem — disse, estendendo o braço em direção à fogueira para pegar a lata de feijão.

    Jade, com uma paciência de assustar, passou os próximos quarenta minutos alimentando a pequena criança que mal conseguia abrir a boca. Uma colher de feijão após a outra, até que a lata finalmente ficou vazia.

    E estando ciente de que não poderia ficar com uma criança, Jade a colocou para dormir, mas é claro, não antes de proteger sua cabeça e orelhas com o gorro, e envolvê-la com o casaco, como em um casulo de uma borboleta. Seus braços balançavam constantemente como um berço. E cantava uma canção de ninar, quase como um sussurro hipnótico.

    Quando a menina havia dormido e o sol já se encontrava no meio da tarde, Jade a deixou com um casal de idosos que moravam em uma casa próxima à borda da cidade. Eles não passavam muita confiança, mas naquele momento, naquela situação, qualquer coisa séria melhor que a deixar com os ratos e o frio.

    As nuvens sempre permaneciam escuras, pairando em volta da cidade. Portanto, Jade sempre procurava pessoas dispostas a darem abrigo para crianças perdidas pelas ruas. Ravenwell era um verdadeiro campo de batalha pós-guerra. Os habitantes, com suas artimanhas, usaram de absolutamente tudo para destruir e matar. As mortes súbitas e a tempestade nunca deixariam a cidade tão precária. Eles somente estavam colhendo as consequências de suas decisões.

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