Capítulo 29 - Ressentir
Sally Dakis repousava numa caixa de madeira, segurando um cigarro entre seus dedos. Diante de seus olhos pensativos, uma rua comercial vazia.
Obviamente, a casa de uma sacerdotisa era a sua igreja, mas não havia nenhuma igreja em Dherry. Sally vasculhou cada rua, cada viela, cada prédio, e a única coisa que encontrou foram pessoas de poucas palavras.
O único motivo pelo qual não desistiu de procurar a sacerdotisa foram as reações dos habitantes com quem conversou. Sempre que mencionava algo relacionado à suposta feiticeira, eles, evitando qualquer tipo de contato, sussurravam entre si e, em seguida, a mandavam ir embora.
Ela não queria forçar ninguém a lhe dar respostas, pois seria pura crueldade seca perturbar mentes já atormentadas.
Ao contrário de Ravenwell, Dherry se manteve firme, mesmo sendo a menor cidade de todo o sul da Nova Pangeia, possuindo apenas três a quatro mil habitantes antes das mortes súbitas e da tempestade surgirem. Embora fosse a primeira a ser afetada por essas anomalias, milagrosamente, quase 2/3 dos habitantes sobreviveram. No entanto, após a onda de tragédias, eles permaneceram nas sombras de suas moradias; postes a óleo apagados mesmo à noite, carros a vapor abandonados, janelas sempre fechadas e encobertas por cortinas, estabelecimentos trancados e ruas desertas onde apenas o vento perambulava.
Sally puxou mais um trago antes de se levantar. Soprou a fumaça e jogou a bituca do cigarro aos pés de um poste próximo, enquanto seguia sem rumo pelas ruas desertas.
Seus pensamentos não permitiram que ela seguisse consciente, mas presa na dúvida constante sobre o porquê os habitantes agiram tão estranhamente ao ouvirem “sacerdotisa” ou “feiticeira”. Talvez estivessem a escondendo? Bem, era apenas um palpite de Sally, um palpite com grandes chances de ser verdade!
Por ser a primeira cidade a ser perturbada pelas anomalias, a mesma deveria estar com menos de cem habitantes. Isto foi o que provocou Sally a continuar buscando por essa feiticeira. Porque, pelas palavras do monge, Dharma, a sacerdotisa possuía o dom da cura. Então faria sentido estarem a protegendo, afinal, ela garantiu a sobrevivência de grande parte da população.
Tendo quase a certeza que a sacerdotisa estava escondida em algum lugar, Sally passou pelas próximas duas horas vagando pelas ruas vazias, batendo em porta, em porta, apenas para ser enxotada como um vira-lata. No entanto, isso não a irritou, mas a instigou mais desconfiança, pois, com o passar do tempo, os moradores foram ficando mais agressivos, ao ponto de atirarem objetos nela, como pratos e facas.
Era como se uma mentira asquerosa rapidamente houvesse repercutido por debaixo de sua sombra.
Para ter certeza dessa ideia, ela voltou para a primeira casa que a recebeu, localizada no centro de uma das várias fileiras de casas assobradadas de tijolos escuros. Vivia três famílias nesse único edifício de três andares.
Sem hesitar, mas com uma impaciência evidente pelas sobrancelhas franzidas, Sally ergueu a mão e bateu quatro vezes na porta, as batidas fortes reverberam pelo batente, vibrando toda a estrutura.
Com o passar dos minutos silenciosos, ela fumou alguns cigarros. Sempre soprando a fumaça em direção à porta e jogando a bituca aos pés da mesma. Um gesto claro de desprezo causado pelo esgotamento de sua paciência.
Antes de incendiar o quinto cigarro, bateu várias vezes na porta novamente. Embora as batidas fossem mais fracas que as primeiras, ainda possuía um aborrecimento escancarado pela velocidade que se seguiram.
O som metálico de uma chave sendo colocada na fechadura, fazendo funcionar as engrenagens minúsculas, pôde ser ouvida por Sally que não largou o cigarro, mas continuou fumando para suavizar a carranca. E funcionou, entretanto, seus lábios continuaram levemente caídos. Não seriam cinco cigarros que iriam acalmá-la.
Quando a porta foi aberta o suficiente para que ela visualizasse o rosto do homem que a recebeu da primeira vez, forçou um sorriso, afastando o cigarro de seus lábios.
— Olá, de novo — ela exclamou.
— Vá embora, por favor. Não queremos problemas.
— Eu tam…
Um baque seco e abrupto não permitiu que ela continuasse. O som da fechadura sendo travada às pressas mal se disfarçou com o estrondo agudo que se dissipou rapidamente.
Neste instante, surgiu uma pergunta convicta em sua mente bagunçada pelo estresse: onde estão escondendo a sacerdotisa.
Recuou dois passos e virou o pescoço para o lado, fitando brevemente a extensão da rua — não havia nada.
Apesar de precisar procurar pela suposta feiticeira, Sally também sabia que precisava, acima de tudo, descansar, além de checar seu antebraço esquerdo, é claro.
Pelo fato de quase metade dos habitantes de Dherry morrerem, havia inúmeras casas vazias de três ou quatro andares, esperando para serem saqueadas ou, como no caso de Sally, serem usadas para tirar um bom descanso.
À medida que a noite se aproximava, ela não perdeu tempo em procurar uma dessas moradias. A maioria permanecia no mesmo estado desde que os donos partiram: portas trancadas, janelas fechadas e cobertas por cortinas. Seria fácil se confundir com uma já habitada.
Portanto, uma casa em pedaços, com vidros quebrados e porta arrombada foi a sua escolha. Estava situada próximo a um pub que dava início à outra fileira de moradias. E ao entrar nessa residência, notou que grande parte dos móveis foram roubados, restando apenas um carpete vinho e uma poltrona em péssimo estado.
Como já esperado, as janelas quebradas do térreo permitiram que o vento trouxesse poeira, folhas secas e pedaços de galhos para os cômodos, os impossibilitando de serem usados. Mas não custava nada verificar se havia algum quarto utilizável.
Ao abrir a porta, mas somente uma fresta para que seu olho direito pudesse bisbilhotar o que havia lá dentro, Sally a fechou com rispidez assim que viu o cômodo tomado por poeira, estilhaços de vidro, galhos, cascalho e pedaços de tijolos. O cheiro empoeirado, úmido e terroso invadiu suas narinas.
“Mas o que aconteceu aqui?!”, exclamou, em seguida, se direcionou até às escadas.
“Eu não quero sujar o meu vestido… É tão difícil de limpar!”
Assim que chegou no primeiro andar, seus olhos se direcionaram para uma porta aberta, revelando a metade de uma cama de casal. Ao caminhar até a ela, notou que estava intacta, embora seus lençóis estivessem cobertos por poeira.
Mas nada que uma rápida limpeza não resolvesse. Ela enrolou com cautela os lençóis da cama para não levantar toda a sujeira, jogou os travesseiros encardidos e pesados no canto do quarto, e virou o colchão, o forrando com um grande lençol que retirou da pochete, seguido por um travesseiro com cheiro de novo.
Simplesmente, o necessário para uma boa noite de sono.
Mas algo de repente a incomodou.
O guarda-roupa tomando toda a parede em frente à cama — o espelho no formato de um telão.
Seus dedos deslizaram até… suas olheiras?
Seu coração palpitou dolorosamente como se estivesse sendo costurado por uma agulha de crochê. Ao se aproximar do espelho, seus lábios ressecados se torceram de frustração e angústia, notando as olheiras, mesmo que manchando discretamente seu rosto, e como as rugas em volta de sua boca pareciam mais profundas. Sally se sentiu velha, feia e desatenciosa por não ter notado em como estava horrível. Era o que ela achava — uma figura horrível que não merecia amor.
“Que droga… Como me permiti ficar assim? A Senhora Blanc me mataria…”
Neste momento, ela soube que deveria ter cuidado totalmente de sua aparência ao invés de ter dormido na banheira. Não apenas isso, mas também por ter vacilado e quebrado o pulso e o antebraço. A ideia de que Blanc ficaria desapontada ou até irritada com seu estado, a amedrontava até os ossos. Ela agiu com o que desejava no momento, e isso também a roía por dentro.
O espelho diante dela era afundado em direção à parede, o que permitia que objetos fossem colocados em frente ao mesmo, servindo como uma espécie de cômoda estreita.
— Eu sabia que seria uma má-ideia. Droga de chapéu! — afirmou antes de retirar o chapéu de praia e jogá-lo no chão empoeirado, como se fosse uma espécie de fardo.
Seus olhos tomados por lástima desceram e fitaram seu vestido alvo. Não, não era apenas lástima, mas havia um rancor subjacente às íris cinzentas-esverdeadas. Um rancor provocando um leve tremor em seus dedos, agarrando a ombreira delicada do vestido.
“A Senhora Blanc me mataria…”
Um estalo seguido por um rasgo seco contínuo ecoou pelo quarto.
Seu semblante entristeceu e se enraiveceu no instante em que o vestido caiu, encobrindo seus pés.
Depois de longos segundos silenciosos fitando o próprio reflexo, Sally se virou, voltou para a cama e se deitou de bruços.
Sua mente conturbada foi invadida por murmúrios e sussurros, compelindo uma imagem de Blanc, ou talvez, uma memória indesejável: o corpo pálido, despido, com o braço estendido atravessado sob o queixo, puxando um véu vermelho para esconder sua nudez. As íris de um azul tão escuro quanto um mar negro, sombreadas pela franja reta, fitavam e perfuravam a alma de Sally, instigando as lágrimas de raiva e frustração escorrerem pelas bochechas rosadas, pressionadas contra o travesseiro.
— Como… você consegue?!
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