Capítulo 30 - Relutância
Um gemido sonolento, quase inaudível, escapou como um sopro pelos lábios entreabertos de Sally. Seu corpo rolou para o lado oposto da janela, que lançava a luz de mais uma manhã. Seu braço direito caiu para fora da cama, e a ponta de seu dedo encontrou a tábua empoeirada. Quando suas pálpebras tremeram, juntando forças para despertarem, alguns ratos fuçando a pochete que jazia no chão correram para debaixo da cama.
Sally Dakis finalmente acordou e, a pochete sendo a primeira coisa que viu, a fez se lembrar imediatamente de sua obrigação.
Como se suas ações já estivessem premeditadas, ela se sentou e levantou sem permitir que a preguiça a afetasse. E caminhou até a pochete, a pegando pela alça, retirando do bolso sem fundo, roupas e materiais de autocuidado.
Sentou-se de volta na cama, borrifando um perfume amargo no pescoço, ombros nus, quadris e nas costas das mãos. Seu cabelo foi o próximo a receber atenção, desembaraçado e penteado sem pressa; no fim, se assemelharam a fios sedosos de ébano se estendendo até a lombar.
Sem se importar com a época em que se encontrava o continente da Nova Pangeia ou com a cultura, vestiu trajes chineses, uma túnica preta, adornada com detalhes florais prateados. Sua cintura, cingida por uma faixa preta de couro. Por fim, pôs um haori preto sobre os ombros, escondendo o seu antebraço quebrado e a pochete acomodada no quadril.
Sua mão segurava sutilmente uma adaga, em que a cor da empunhadura era de jaspe verde-escuro, um verde tão profundo que chegava a ser azul-meia-noite. E não era para se defender de qualquer perigo em potencial — mas para matar quem cruzar seu caminho.
Enquanto fitava a lâmina pálida diante de sua face, memórias passavam por sua mente como curtas-metragens, histórias contadas para ela quando apenas tinha 8 anos; Blanc, quando ainda era uma caçadora, em completa excelência, executando missões de grau 0 sem esforço, e utilizando somente uma adaga. Missões essas que duravam apenas horas, e sempre vestindo o mesmo uniforme, semelhante ao que Sally estava usando neste momento. E a adaga em sua mão não era apenas semelhante a que Blanc usava em suas missões passadas, mas a mesma. Pois próximo ao guarda-mão, estava escrito: “Blanc Wangmu A Peste Perniciosa”, em um idioma semelhante ao chinês.
“Eu não deveria fazer as coisas do meu jeito. Deveria matar o Christopher e depois realizar uma autópsia nos cadáveres que ele estava guardando. Deveria enfrentar o mago naquela catedral e cortar o pescoço dele com essa lâmina. E assim estaria tudo resolvido…”
Seus olhos deixaram a lâmina e fitaram o chapéu de praia e o vestido rasgado no chão.
“A Senhora Blanc sempre teve razão… Eu não… não deveria perder tempo com essas idiotices! Por que sonhar ter uma vida simples?! Ou agir tão passivamente!”
Ao guardar a adaga na bainha presa na faixa de couro. Encarou o espelho do guarda-roupa. Ela tirou de sua pochete uma tesoura prateada.
Sally, encarando seus próprios olhos irados de seu reflexo, separou uma mecha frontal de seu cabelo no intuito de cortar em uma franja, assim como era o cabelo de Blanc. Sua mão trêmula hesitou em fechar as lâminas da tesoura. Seu semblante determinado vacilou. Em um instante, as lâminas se fecharam o suficiente para cortar alguns fios.
Deixou escapar um suspiro cansado e recuou com esforço como se seus tornozelos estivessem presos a um grilhão. Largou a tesoura, que cravou na tábua suja. O impacto cortante expulsou algumas partículas de poeira para o ar.
Ao recuperar a postura, fechou os olhos e encheu os pulmões de ar, soltando em um suspiro logo e deliberado.
Suas pálpebras se abriram com calma, mas havia uma amargura em seu peito, exposta pela saliva seca que escorreu pela garganta. As íris cinzentas-esverdeadas apontavam para a última gaveta do guarda-roupa, entretanto, as mesmas enxergavam uma memória clara de muitos anos atrás, no início de sua adolescência. Era como se estivesse a vivendo novamente.
— Eu quero mudar o meu sobrenome. Sempre que ouço alguém me chamar assim… me traz más lembranças — disse Sally, sentada sobre os tornozelos em um futon, de frente a uma minúscula mesa rente ao chão. Sobre a mesma, um bule de chá, e ao lado, um minúsculo copo vazio.
— Você não pode abandonar quem você é, filha — respondeu Blanc, segurando um copo de chá fervente, também sentada sobre os tornozelos.
— Mas…
— Você sabe que um dia terá que voltar para casa. Mostrar que não precisa de absolutamente nada, nem mesmo de mim. Isso é quem você é, e o que precisa fazer, e ser.
Apenas foi o suficiente um bater de cílios para Sally voltar à realidade.
Com uma suavidade forçada, virou-se e deixou o quarto, desceu as escadas e saiu da casa. Seus passos foram lentos e pacientes, como se estivesse refletindo enquanto caminhava. Posicionou-se no meio da calçada, analisou a sua esquerda e direita, antes de fitar cada janela da fileira de casas em seu campo de visão, procurando por algum vulto que obscurecesse o bege das cortinas.
E assim aconteceu. Uma rápida sombra bisbilhotando pela fresta da cortina recuou quando cruzou o olhar de Sally.
Ela dirigiu-se até a porta desta casa e a abriu à força, girando a maçaneta até quebrar e a madeira lascar.
No momento em que a porta escancarou o interior mal iluminado da casa e Sally deu um passo para frente, ela foi atacada. O fio enferrujado de uma pá voando em direção à sua cabeça. O ferro foi cortado pela lâmina afiada da adaga, o homem escondido atrás de um porta-casaco foi arrancado das sombras com um chute no estômago.
— Onde está a sacerdotisa? — Sally indagou, caminhando lentamente em direção ao homem caído que portava uma carranca irada, mas também apavorada. Ele rastejava de costas enquanto ela se aproximava.
A adaga foi erguida para o alto na intenção de empalar a testa do homem em um único arremesso certeiro. O semblante empático de Sally era como a lâmina, frio e sem vida.
— Não! — de repente, gritou uma voz rouca pelo desespero. Um garoto que rastejou para fora da sombra de uma mesa.
Ele envolveu o pescoço do homem com seus braços esguios, fitando Sally com uma raiva estridente.
A adaga tremeu. Sally vacilou brevemente, mas endureceu sua mão no mesmo instante, firmando a lâmina no ar mais uma vez.
— Me digam! Onde está a sacerdotisa?! — Sua voz quase engasgou, como se implorasse para que eles respondessem.
— Deus! Nos ajude! Envie-nos os teus anjos! — clamou o menino, espremendo os olhos ao máximo, aninhando o rosto no pescoço do homem.
Ele, com a mandíbula tensa, se recuava a rezar junto ao garoto, mordendo os próprios dentes como se sentisse o corte da lâmina rasgando sua pele antecipadamente.
Sally avançou dois passos, determinada a feri-los, no entanto, engasgou ao olhar o desespero de ambos de perto. Seu semblante aprofundado em confusão se intensificou, rompendo a vontade de matar. O seu pulso sustentando a mão trêmula perdeu forças, a obrigando a baixar a arma.
Ela recuou à medida que guardava a mesma na bainha. E seguiu pela calçada, ofegante, desgastada fisicamente por ter que conter seu corpo, influenciado por sua mente gritando para derramar sangue. Todo seu braço direito tremia de arrependimento como se dissesse a ela para voltar, para abrir um corte profundo no pescoço do homem e perfurar o coração do garoto.
Subconscientemente, deixou a calçada e se escondeu nas sombras de uma viela, usando a parede para apoiar seu braço direito. Suspirou fundo, ponderando sobre o que aconteceu, ou melhor, o que não aconteceu, o que deixou de fazer. Havia uma culpa a roendo por dentro, mas também havia um alívio confortando seu semblante.
Sally se recompôs aos poucos enquanto seguia pela viela, suas botas de couro deslizando com fraqueza. Ao reencontrar a luz do sol, ofuscada por nuvens cinzentas, arrancou bruscamente a bainha da espada. Fitou a empunhadura de jaspe, cogitando devolvê-la para a pochete. E depois de alguns segundos ponderando profundamente, decidiu o que faria — espremeu a bainha como se fosse tão preciosa quanto a si mesma.
— Tente de novo! — murmurou, com a voz rouca, quase como um resmungo.
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