Sally Dakis voltou apressadamente para àquela casa. Não havia mais nenhum resquício de nervosismo, empatia ou hesitação em sua face, somente uma determinação sanguinária. Podia-se dizer que não era mais a mesma pessoa, mas fruto de uma vontade maligna. 

    Em menos de um minuto, lá estava ela, de frente ao homem e ao garoto, provavelmente pai e filho. Eles nem sequer haviam se recuperado, pois ainda permaneciam no chão, incrédulos com o que havia acontecido. Mas agora, o pavor deles voltou quando a sombra de Sally pairou sobre eles novamente.

    Ela avançou dois passos firmes.

    Não… Não houve gritos. Somente uma reação aterrorizadamente silenciosa por parte do garoto, vendo a lâmina pálida sendo cravada na testa de seu pai, várias e várias vezes. O sangue espirrou e manchou as vestes negras de Sally. 

    Um tilintar de um sino ecoou, o que impediu o menino de fugir, ou sequer recuar. Ele vomitou, mas vomitou sangue. Suas pernas não o obedeceram, e suas mãos tremularam lentamente em direção ao seu estômago enquanto as lágrimas desesperançosas escorriam pelo seu rosto.

    E havia algo de errado… Sally apenas o observava como se fosse um animal, não só indefeso, mas completamente desprovido de utilidade a não ser satisfazer o prazer da caça.

    As pequenas mãos do menino, prestes a perder a consciência, sentiram uma textura quente, úmida, mole e escorregadia. Seus olhos pasmos e fracos caíram para analisar o que estava segurando. Pela fraqueza, pelo medo, instigando uma paralisia total, houve outra reação silenciosa e horrenda ao ver o que estava segurando eram os seus próprios intestinos.

    Um gemido trêmulo escapou pelo ofegar de Sally. Seu rosto coberto de suor turvou sua visão, e as pupilas confusas e hesitantes trepidaram. A respiração ofegante e pesada fazia subir e descer seu peito dolorido, latejando de agonia. Não apenas isto, mas também a adaga limpa tremia em sua mão tensa.

    “Como… Como você consegue?!”

    Pai e filho, recostados na parede, temiam o que Sally faria, mas também estavam confusos, se perguntando o porquê dela estar tão nervosa.

    Havia uma ponte malfeita, e Sally havia escorregado ao tentar ir para a direita. A dor de seu braço esquerdo se intensificou e a obrigou a soltar um grunhido longo à medida que recuava, como se estivesse sendo acertada por inúmeras flechas. Nesse recuo, a adaga caiu de sua mão com um tilintar seco contra a tábua desgastada.

    Ao se colocar para fora da casa, um vento fresco e brusco soprou, mas isso não a trouxe alívio, somente a sensação de estar sendo forçada a relembrar memórias de muitos anos atrás em forma de sussurros, imagens e odor. 

    Enquanto seguia com esforço e sem rumo, usando as fachadas da fileira de casas como apoio, o odor imaginário inundou seu olfato; a terra úmida, não só pela chuva, mas de sangue, era viscosa por conta da gordura e pele que havia se acumulado. A terra grudava sob suas pálpebras, impedia que o oxigênio passasse livremente pelas narinas e abafava totalmente sua audição. 

    Sally havia sido enterrada ainda viva em um cemitério de restos de animais. Mas alguém a devolveu ao sol nublado — mãos pálidas e esguias, unhas pintadas de azul-safira acolheram seu braço e face, e a arrancou desse inferno.

    As imagens vieram logo após, tão vivas que ela pôde sentir na pele, fortes o suficiente para a desequilibrá-la e forçar seus joelhos a se dobrarem. 

    Os inúmeros olhares de canto, carregando nojo e repulsa, esfaqueavam suas costas nuas repletas de hematomas. Seus lábios feridos, inchados e ressecados ao ponto de se assemelharem a vidro trincado, permaneciam fechados, impedindo que o ar frio da sala machucasse as gengivas. Ela fitava pasma, a pequena poça de sangue seco em sua frente e alguns de seus dentes quebrados sobre a mesma.

    Entretanto, uma coroa de flores de lótus foi colocada sobre sua cabeça por uma mulher vestindo um hanfu completamente branco, quase prata. Ela, com um sorriso malicioso, havia forçado a coroa sobre a cabeça de Sally, fazendo os galhos rasgarem a carne de sua testa e enroscar em alguns fios de cabelo.

    Quando a garganta de Sally ardeu profundamente, e ela vomitou somente os resíduos estomacais nos pés de um poste, as lembranças escorreram para fora de sua mente em forma de lágrimas. Mas não acabou por aí — lábios rosados curvados em um leve sorriso, sussurrou em seu ouvido: “Todas as artes, ciências e coisas secretas, serão tuas”.

    A voz forte de Blanc foi tão real que, de forma hesitante, Sally olhou por cima do ombro enquanto engatinhava em direção a uma viela para se esconder. A incredulidade cegou a sua visão e a distanciou da realidade. Tudo o que ela enxergava, não era nada menos que a própria escuridão escondendo uma presença maligna. 

    Agora, não havia mais som, cheiro e nem tato. Parecia que a escuridão, ou a própria coisa maligna, havia arrancado seus sentidos e deixado somente a visão. A curva da viela parecia estar mais distante, e seus movimentos mais lentos e fracos. 

    O queixo de Sally tremeu de aflição, o suor umedeceu completamente sua face desesperançosa, apavorada e cheia de culpa. No entanto, de repente, a sombra da viela finalmente a acolheu e todos os seus sentidos foram devolvidos, incluindo a enorme dor de seu antebraço quebrado.

    Seu choramingo mal reprimido, a provocando tremedeiras, amoleceu suas articulações e intensificou a fraqueza; ela foi derrubada completamente com um tombo quase inaudível. 

    — Desculpe… Por favor, me desculpe… — murmurou, enquanto apoiava as costas na parede e agarrava seu braço esquerdo.

    Neste momento, Sally continuava distante da realidade, pois o breu ainda tomava todo ao redor. Somente a entrada e o chão de pedras da viela era visível, como se fossem as únicas coisas que não foram engolidas pela sua própria mente. Ela estava ciente de como estava vulnerável, de como estava caída como um cadáver morto pelo frio.

    Lentamente, a sua mão direita deslizou pelas suas próprias vestes, procurando por algo que a tirasse desta situação. 

    Suas pálpebras murchas mal tinham forças para esconder seus olhos exaustos e avermelhados pelas lágrimas excessivas. Quando sua mão alcançou um ponto fundo na região de sua cintura, sentiu uma pequena forma cilíndrica, meio rígida e lisa. 

    O breu impediu que Sally visualizasse o que havia pegado, mas isso não significava que ela não sabia o que era. E não a impediu de colocar o material entre seus lábios. 

    Usando o chão gélido e sujo como apoio, lutou para se levantar — e falhou — portanto, tudo o que conseguiu, foi sentar, recostar-se na parede e olhar para o alto. Pela segunda vez, sua mão trêmula vagou lentamente pelas suas vestes, mas não encontrou nada. Então, após alguns segundos, ela decidiu procurar em sua pochete. 

    O zíper da mesma foi aberto com fraqueza, depois, vasculhada, e, com lentidão e cansaço, um objeto metálico foi retirado de dentro.

    Um crepitar rápido e seco deu à vida a uma faísca efêmera. Outro crepitar ecoou pelo breu, depois outro… e outro, até finalmente a minúscula chama tênue surgir e permanecer viva.

    Sally incendiou a ponta do cigarro com um isqueiro velho, seu rosto recebeu um tom luminoso alaranjado e suave. Com uma tragada prazerosa, carregada de alívio, a realidade foi devolvida à medida que a fumaça escapava pelos seus lábios.

    No momento, ela não queria fazer absolutamente nada a não ser aproveitar este cigarro acomodado entre seus dedos de forma desleixada.

    Embora seu olhar estivesse agora mais sereno, sua mente se encontrava processando inúmeros pensamentos desnecessários, causados pela ansiedade transparecendo em sua mão ainda trêmula. Além de tudo, a quietude da cidade de Dherry era quase perturbadora. O fato dela odiar esse silêncio apenas intensificava o seu estresse. 

    Mesmo após limpar as lágrimas com a manga de suas vestes, seus olhos continuaram extremamente úmidos. Ela não estava mais chorando, mas as lágrimas vazavam e escorriam pelo seu semblante apático.

    Em seu interior, a frustração era a emoção predominante. Ela falhou em descobrir em como o mago estava espalhando o efeito do feitiço, falhou em descobrir que feitiço era esse que continuava matando tanta gente, e quando conseguiu uma informação relativamente útil, não a levou a nada. Até agora pelo menos.

    O medo também não foi sucumbindo pela fumaça do cigarro. Imaginar um mal-olhar de Blanc era como sentir um frio na barriga ao amarrar uma corda em seu próprio pescoço. Ela sabia que precisava compensar seus erros, principalmente por ter pego a adaga, um presente de Blanc, e falhar em seguir os passos dela. Isto era um desrespeito tão grande quanto blasfemar no alto de um altar de um santuário. Porque segurar na empunhadura de uma lâmina, é como fazer uma promessa para a vontade dela. 

    Há anos atrás, Sally soube que teria que derramar sangue quando segurou nessa adaga pela primeira vez, por isso havia a aguardado no fundo de sua pochete.

    — Droga… — murmurou com o cigarro em sua boca ao se lembrar que deixou a adaga cair ao sair daquela casa.

    E depois de murmurar, guardou uma cartela de cigarro quase vazia no bolso interno de sua túnica. Ela havia pegado a cartela de sua pochete e fumado a metade dos cigarros no intervalo de tempo enquanto pensava consigo mesma.

    Levantou-se com muito esforço, deu dois passos à frente e contemplou com um suspiro o brilho morno do sol ofuscado por nuvens cinzentas. Dando uma última tragada, soltou a fumaça em direção ao céu antes de largar a bituca no chão

    Em enorme contraste com sua feição serena, mas ainda abatida, ela sussurrou com preguiça: 

    — Eu odeio o sol.

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