Capítulo 33 - Dharma
Alguns segundos após mover seus passos em direção ao mestre ancião, Dharma olhou para trás pela última vez, como se ansiasse os momentos anteriores, quando estava beijando e agraciando Lenora, e Lenora, beijando e agraciando ele.
O monastério dos monges não ficava tão longe do campo de flores. Demorou cerca de 7 minutos para eles chegarem. E nesses 7 minutos, Dharma seguiu não só reprimindo suas emoções e sentimentos, mas refletindo sobre o que o Ancião queria com ele e os outros monges. Avisos eram somente dados individualmente, porque cada um tinha uma tarefa destinada. Portanto, o fato dele desejar reunir todos os monges para repassar algo, era, sim, motivo de preocupação.
Embora o sol estivesse morno e alegre, o monastério se encontrava num clima pesado. Todos os monges ajoelhados ao ar livre, sobre o enorme terreiro, permaneciam de cabeça baixa e com as mãos sobre as coxas. Eram mais de oitenta, agrupados e organizados, como um tabuleiro de xadrez de somente uma cor.
Dharma se juntou a eles sem dizer absolutamente nada, somente dobrou os joelhos, pôs as palmas das mãos sobre as coxas e abaixou a cabeça, afinal, ele era apenas mais um.
— Nesses últimos meses, a taxa de mortalidade aumentou significativamente — disse o Ancião em alto e bom som.
Ele estava sobre um enorme altar feito de pedras, acariciando sua barba velha e trançada que caía até a região do umbigo enquanto a mão livre segurava o cajado. Embora fosse cego, seus olhos cinzas como ao dos mortos, fitava em direção aos monges ajoelhados como se enxergasse e sentisse a presença de cada um deles.
— Como todos têm conhecimento, as bestas-feras vieram delas, as Bestas, as progenitoras do mal. Perderíamos a guerra, mas por talvez um milagre, ou sorte, ou obra divina, elas não possuíssem interesse em nós, ao contrário das bestas-feras!
— Estes parasitas invadem nossa carne ferida ou fraca. E isto vem aumentando a cada semana. Portanto, deixo a segurança de nosso festival anual nas mãos de todos vocês.
— E irei os lembrar de uma verdade dura agora: a Fundação não se preocupa conosco. O nosso continente, Lunaris, foi abandonado pela Fundação porque eles temiam, temiam, pois o solo em que pisamos já conheceu a desgraça de ser tocado pelas Bestas.
— Vocês têm uma semana para amenizarem o surto de bestas-feras, e assim garantir a segurança total do festival.
Com estas últimas palavras, todos os monges se levantaram e curvaram suas cabeças em promessa e compreensão ao Ancião. Depois, se retiraram. Eles não demonstravam determinação, medo, ansiedade ou qualquer outra emoção, apenas uma face séria que demonstrava desejar somente uma coisa; a de cumprir seu dever.
Em poucos segundos não havia mais ninguém ali, exceto Dharma, fitando inexpressivamente seu mestre que permaneceu no altar.
Foi neste exato momento que, com todas as palavras, Dharma renunciou à sua vida monástica, seguindo silenciosamente na direção oposta aos outros monges. Dharma acreditava em algo absoluto, portanto, o Ancião não ousou questioná-lo.
Não houve hesitação, medo e ansiedade. Nas semanas que se seguiram, ele dedicou todo seu tempo a cuidar de Lenora e de sua saúde.
Eles foram para o festival, e lá se divertiram, beijaram, e amaram-se.
Apreciaram dançarinos fantasiados, com seus rostos cobertos por máscaras demoníacas douradas e vermelhas, cintilando com saltos fantásticos como verdadeiros acrobatas loucos. Nas mãos deles, havia lanternas de papel, fazendo com que cada movimento iluminasse a noite com padrões vibrantes e fascinantes.
Sob fogos de artifícios, os lábios tremulando por necessidade, de Lenora e Dharma, encaixaram-se, enquanto seus dedos se entrelaçavam.
E nos meses que se seguiram, Dharma amou, e continuou amando e cuidando de Lenora, e do bebê em seu ventre. Não era surpresa que, nesse tempo, eles já haviam se casado. Entretanto, como nenhum material deste mundo poderia suportar tal promessa de amor, não houve aliança, mas o vínculo direto de suas almas.
No nono mês, dois dias antes de Lenora dar à luz, Dharma a levou para passear pelo bosque próximo à montanha onde os monges moravam. Ele continuava com as mesmas vestes alaranjadas, sempre lindas e perfumadas, mas seu cabelo estava maior, caindo até às orelhas.
Lenora também mudou — parecia mais velha e madura, mas nada que retirasse a delicadeza em cada um de seus gestos. Seus seios aumentaram de tamanho em consequência aos hormônios, principalmente o estrogênio. Seu coração batia mais rápido, sua respiração mais forte, portanto, o cansaço logo a alcançou.
— Me dê um minuto… — Ela sentou-se numa pedra e soltou um longo suspiro.
— Eu disse que caminhar não era uma boa ideia. — Dharma ajustou gentilmente a fina alça do vestido pálido dela.
— Cala boca… — resmungou, fazendo biquinho. — Me leve para casa.
Com um sorriso morno e gentil, ele a pegou e a carregou em seus braços.
Dois dias depois, no fim da tarde, na súbita hora do parto, num quarto de uma casa que se assemelhava a uma cabana, estava Lenora, deitada sobre um cobertor de lã, e de pernas abertas, roendo o lençol cumprindo o papel de mordaça. A luz das velas sobre as cômodas, postas ao lado da cama, refletiam o suor agonizante escorrendo pela sua testa fervente.
Suas mãos não se agarravam nas de outras mulheres, mas em lençóis. Pois ali, estava somente quem ela confiou sua vida e a de sua filha; a é claro, a quem ela mais amava — o seu marido.
Por entre choros e gritos, instigando ecos doloridos por toda a casa, Dharma realizou o parto com frieza, pois ele sabia o que estava fazendo. Entretanto, isso não significava que tudo ocorreu bem. A criança estava sentada no útero, e ele sabia que deveria realizar uma manobra para deitá-la para que a cabeça saísse primeiro.
Foram horas de lamúrias, lágrimas, contorções e agonia de Lenora. A ansiedade e o medo também corriam pelas veias dela, como um verme rancoroso que a compelia pensamentos pessimistas.
Mas, graças à fé e habilidade de Dharma, tudo ocorreu bem. Os gritos e gemidos se reduziram a suspiros trêmulos e exaustos. Com um sorriso aliviado e terno, ele segurou em seus braços, a sua filha ensanguentada, enrolada por um pano branco e macio, e chorando com enorme vitalidade. Ela foi entregue aos braços de Lenora.
Com uma faca, Dharma cortou o cordão umbilical, depois, plantou um beijo na testa suada de sua esposa.
— Ela… — Lenora disse, sua voz fraca e trêmula. Seus olhos fadigados fitavam a sua filha. —… Ela será tão forte quanto o pai.
— Ela será, ela será… — sussurrou, acariciando o cabelo de Lenora.
Depois que o choro da recém-nascida se acalmou e ela adormeceu, Dharma a ergueu com cuidado e a colocou no pequeno berço cercado por almofadas de cetim vinho, e enfeitado com delicados bonecos de pelúcia feitos à mão em crochê.
Em seguida, ajudou a sua esposa a se levantar para ir ao banheiro. Ele a despiu e a deitou na banheira.
Com os minutos que se seguiram, Dharma expulsou o sangue do corpo dela com delicadeza e atenção, como se fosse uma pétala de rosa congelada. A água espumada escorria pela bucha e descia por sua pele pálida. Seus olhos, tomados pelo cansaço, mal conseguiam se manter abertos.
Assim que ela se entregou para a exaustão e adormeceu, Dharma a pegou no colo e a levou para a cama. Deitou seu corpo nu e o cobriu com três lençóis.
Enquanto enxugava os cabelos de Lenora com uma toalha fina, ouviu um som seco e curto vindo do quarto da criança. Um estalo forte. Uma faísca de medo atravessou seu corpo. Impossível. Uma recém-nascida não pode sair sozinha do berço, pensou. Portanto, havia mais alguém ali.
Sem drama e enrolações, se dirigiu rapidamente ao local do parto. As tábuas rangendo com os passos apressados à medida que um som estranho e crepitante vindo do quarto se intensificava. O peito de Dharma foi tomado por um vácuo de ansiedade e medo.
Abriu a porta com rispidez. Sua respiração falhou. A garganta trancou e a pele empalideceu.
Seus olhos viram tamanha desgraça, que a agonia grotesca torceu seu coração, não metaforicamente. Sua filha, que sequer ainda havia sido batizada, parasitada por uma besta-fera.
No presente… à medida que Dharma descia os degraus da mansão, as memórias ainda persistiram e culminaram em tristeza, frustração, dor, estresse e angústia.
A dor de rasgar as vísceras de sua própria filha torceu uma veia de seu coração, literalmente. Dharma, por conta desta brutalidade; da malevolência da tristeza; frustração, dor; estresse e angústia; foi compelido em sua alma o Dom, que, diante da sua visão perturbadora, de suas mãos manchadas de sangue, do ato horrendo e da falta de controle, era, de fato, com todas as palavras, uma Maldição.
Depois que abriu a enorme porta dupla da mansão, ele contemplou o sol frio da tarde. Sua mão direita ainda segurava a pequena muda de acácia.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.