Capítulo 5 - Punho e vara de pesca
Os vários componentes do centro da cidade lamacenta recuaram pasmos a cada passo de Jax Bennett, que se retirava da taberna. Contudo, de repente, eles ergueram suas determinações, usando a raiva como combustível. E apontaram objetos potencialmente perigosos, como ancinhos, pás, enxadas e pequenas foices. Alguns ergueram os próprios punhos.
Os vendedores não ficaram para trás. Eles, puxando adagas enferrujadas e facas tortas, seguiam logo atrás dos camponeses.
Jax não se preocupou em esconder seu desprezo por essa gente. Permaneceu imóvel, com as mãos guardadas nos bolsos e de queixo erguido, sobre o terceiro e último degrau da pequena escada da taberna. Ele torceu o nariz; seus olhos enojados os fitavam como se fossem uma manada de porcos, atravessando a rua lamacenta em busca de comida.
“Animais.”
Jax agachou-se lentamente, fazendo os habitantes da vila hesitarem por um instante. Com um salto sobre-humano, alcançou o telhado de palha da taberna.
— Até mais, suas bestas!
Sua provocação causou um grito irado vindo da multidão e, mesmo após iniciarem uma perseguição, ele pulou de telhado em telhado com uma agilidade e velocidade surpreendentes, assim escapando em questão de segundos.
Enquanto Jax se retirava da vila com um sorriso zombeteiro, contente por perturbar aquela gente, Sally marchava contra a nevasca, seminua, pois Kenji vestia suas roupas. O tecido colado em seus músculos doloridos pelo frio poderia rasgar com qualquer movimento brusco, diferente da calça larga que se ajustou perfeitamente ao seu corpo.
A pele quente de Sally serviu como uma almofada para Kenji, que estava tão pálido quanto seu próprio cabelo, tremendo constantemente de frio e seguindo colado ao corpo e abraçando o braço direito dela.
Ambos caminharam por quase duas horas. Nesse tempo a nevasca havia se acalmado consideravelmente, e o sol deu espaço à lua.
As sombras das cordilheiras ainda pairavam sobre ambos. O frio matava os mais fracos, e a fome e a sede eram os menores dos problemas: olhos animalescos os espreitavam, inúmeros pares de pequenos pontos brancos vagando pela escuridão.
Deitado de lado sobre a neve, Kenji, com os olhos vermelhos devido a estarem inflamados e ressecados, viu, através das chamas crepitantes da fogueira, sua irmã e mãe, sentadas e recostadas no pinheiro à sua frente. Sua mãe não demonstrava remorso algum, na verdade, ela não demonstrava nada, seus olhos eram vazios. Ela parecia estar doente, pois era magra como se não comesse há dias. Já Yoki, sua irmã, parecia estar irritada, talvez por ele ido embora do Japão?
Apesar do contraste de suas reações, havia algo em comum. Elas fitavam o corpo pálido e trêmulo de Kenji, os dedos arroxeados, as olheiras profundas, e os seus lábios rachados que se moviam em tentativas vãs de formar palavras. Seus pulmões doíam toda vez que respirava, o impossibilitado de emitir som algum, além de gemidos tênues e roucos. Lentamente, seus olhos semiabertos se fecharam.
De pernas cruzadas como se estivesse meditando, recostada no pinheiro em frente aos olhos de Kenji, Sally examinava o corpo dele à medida que refletia, sem dar importância às feras que rodeavam onde a luz da fogueira não alcançava. Seu semblante carregando um mínimo de aborrecimento eram adornados pelos movimentos rítmicos da fogueira.
“A Senhora Blanc vai ficar furiosa se eu o deixar morrer… O que ela viu nele?”
Um focinho franzido surgiu da escuridão, pegadas lentas carregaram uma fera fedendo a cadáver, salivando como se tivesse fome. Entretanto, Sally a ignorou.
Este animal tinha um corpo grande como o de um urso e a sua estrutura era semelhante à de um lobo, mas o crânio pertencia ao de uma hiena com o focinho longo. E, rosnando de fome e raiva através dos dentes de javali, se preparava para dar um bote.
Ao soltar um último rosnado, a fera lançou-se em direção a Sally com um latido.
“Talvez… seja melhor tentar salvá-lo.”
Habilmente, ela se levantou, estendendo as mãos em direção à fera. Com precisão, velocidade e força, segurou o focinho e o maxilar, e os esmagou ao empurrar contra o crânio. Um estalo quebradiço e seco ecoou além das extremidades da luz da fogueira, causando um balanço imperceptível nas baixas folhas congeladas dos pinheiros próximos. As demais feras demonstraram certa inteligência, pois, ao verem o alfa da alcateia ser morto facilmente por uma criatura tão pequena, recuaram para as profundezas da escuridão.
Sally ajoelhou-se e levou as mãos até a barriga do cadáver da fera. Agarrou um punhado de carne, os pelos cinzentos e densos escapando entre seus dedos, antes de serem rasgados junto à carne. Os órgãos se derramaram com uma impressionante quantidade de sangue, afogando os joelhos de Sally e apagando a fogueira com um chiado alto, porém súbito, trazendo a escuridão à tona. O cheiro de ferro se misturou com o ar gelado.
Demorou aproximadamente vinte e nove minutos para Sally limpar todo o interior da fera com as próprias mãos, o deixando oco. Depois, rastejou até Kenji e o puxou pelo tornozelo. Com certo cuidado, ele foi colocado dentro do cadáver. Embora estivesse úmido de sangue e exalasse um mau-cheiro terrível, o interior dele era quente e confortável.
Sally permaneceu ajoelhada. Seus braços, pernas, barriga, quadris, e até a sua bochecha direita, estavam manchados de sangue congelado. Ela fechou os olhos e arqueou as costas, erguendo a cabeça em direção ao céu noturno à medida que inspirava o ar pelo nariz, o soltando em um grande suspiro deliberado pelos lábios ressecados. Abriu as pálpebras e pensou consigo: “Não tenho mais energia para continuar resistindo ao frio…”
Relutantemente, entrou no cadáver. Seu braço passou em volta do pescoço de Kenji, inconsciente, para que seu corpo pudesse se espremer totalmente ao dele e se ajustasse no espaço limitado e quente.
A nevasca voltou a cair sobre o vale, a lua pálida continuou sendo encoberta pelas nuvens densas e negras. O vento uivou durante todo o tempo que a noite se manteve no céu. Somente quando a luz precoce da manhã nasceu, a ventania e a neve se cessaram.
Sem ao menos espreguiçar o corpo, Sally abriu as pálpebras e empurrou Kenji pelos ombros, o utilizando de apoio para se colocar para fora do cadáver. Levantou e deu um rápido bocejo, quase como um suspiro.
O vento frio soprava suavemente sob o brilho do dia, a neve que cobria os pinheiros derretida sem pressa, e as nuvens brancas voavam em direção ao norte.
Sally jogou seu calcanhar para trás, preparando-se para desferir um forte chute. O cadáver da fera balançou como uma geleia de morango com o impacto.
— Acorde, idiota. Eu quero o meu terno de volta.
Após alguns segundos o cadáver se agitou. Os dedos de Kenji se puseram para fora e abriram a barriga da fera. Preguiçosamente, rastejou até os resquícios da fogueira e os restos congelados e encobertos de neve do interior da animal.
— Que nojo… O que aconteceu? — murmurou ao notar que estava completamente sujo de sangue.
Depois, olhou para Sally que o encarava com uma carranca.
— O que aconteceu!? E por que você está somente de… — De repente, notou que estava vestindo as roupas dela.
Suas bochechas ganharam um leve tom rosado de vergonha. Ele coçou a nuca sem jeito e sorriu sem graça.
— Me devolva o meu terno — Sally ordenou.
Kenji retirou a calça larga sem grandes dificuldades, mas no momento em que começou a retirar o terno, um pequeno rasgou se abriu na região do ombro. Imediatamente, uma veia pulsou na têmpora de Sally. Sua carranca se intensificou, e ela arrancou suas roupas das mãos dele.
Kenji a observou vestir o terno e a calça enquanto marchava nervosamente. Ele estava se sentindo mal por ter estragado o terno dela — mesmo já estando estragado por estar completamente manchado de sangue.
Conforme atravessavam em silêncio o ambiente gélido, a neve se tornava menos densa e os pinheiros ficavam cada vez mais escassos, dando espaço às árvores vibrantes e à grama. Ele caminhava apenas a alguns passos atrás dela, querendo manter uma certa distância para não causá-la nenhum incômodo. Entretanto, decidiu quebrar o silêncio.
— Ei, Senhora Dakis…
— Não me chame de “senhora” e nem pelo sobrenome. Sally está ótimo — ela o advertiu rapidamente, causando um leve e rápido espanto nele.
— Uh! Sally, você é alguma bruxa ou algo do tipo? Ninguém sobreviveria àquela nevasca! E ainda estamos na Terra, não é?
— Sim, ainda estamos na Terra. Em uma grande ilha chamada Véu Negro. Quando chegarmos em Garhata eu te explico algumas coisas importantes. Não fale mais comigo.
— Garhata?
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Jax Bennett acordou instantaneamente com um forte impacto em sua cabeça.
— Ai!
Ainda com a visão meio turva devido ao sono interrompido abruptamente, se levantou e cambaleou com os impactos estridentes como chicotes, persistindo nas costas e em suas mãos que protegiam sua nuca, o obrigando a se deitar de bruços no solo duro.
— Ai! Ai! Pare com isso, velho idiota!
O senhor de idade que o açoitava com uma vara de pesca não o deu ouvidos, e continuou até que a fadiga viesse!
— Não durma em cima dos meus fenos, vagabundo! — exclamou ofegante.
Jax, sem um pingo de paciência, apoiou ambas as mãos no chão e deu um salto, erguendo-se em um instante. Para o espanto do idoso, a vara de pesca foi agarrada com um aperto firme. A mesma foi puxada de repente, trazendo o idoso, que ainda a segurava, em direção ao punho de Jax, que mirava em seu rosto enrugado.
O idoso perdeu a consciência assim que o soco o atingiu. Seu corpo voou e caiu sobre o monte de feno.
— Velho estúpido!
De sobrancelhas franzidas e nariz enrugado, ele deu meia-volta e caminhou em direção a uma enorme plantação de soja. Entretanto, essa não era a única. Próximo ao monte de feno, havia uma pequena casa de pedras e, ao redor dela, várias plantações de aveia e trigo, se estendendo até próximo ao horizonte.
Havia também caminhos pelas divisões dessas plantações que ainda não passavam de simples brotos. No entanto, Jax optou por passar por cima dos trigos, os pisoteando com suas botas pesadas.
— Hehe…
E, ao fixar sua visão no horizonte, avistou a silhueta de uma enorme estrutura sobre um monte.
— Que maravilha! Então aquele é o castelo de Garhata!?
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