Capítulo 294: Outra Criança Espiritual

A cortina da noite cinza-escura caiu e as montanhas e florestas perto da base do Departamento de Feitiços foram agitadas pelo vento frio do início do outono, as folhas caídas rodopiavam em plena solitude.

Meia hora atrás, Gu Jun recebeu a notícia do Ancião Tong que a Criança Espiritual foi escoltada da Divisão do Estado Oriental por uma unidade da Força Móvel Especial. Após sua chegada à base, a Criança Espiritual foi imediatamente conduzida a uma sala de interrogatório no Departamento de Revisão, onde estava sendo monitorada. Por conta da atual situação, a Criança Espiritual estava sujeita a uma supervisão ainda mais rigorosa.

Atualmente, membros da Força Móvel Especial e do Departamento de Feitiços patrulhavam o corredor fora da sala de interrogatório rigorosamente, como se estivessem protegendo os próprios portões do abismo.

Com um rangido, Gu Jun abriu a porta de ferro da sala de interrogatório, entrou e a fechou.

Ele já havia lido as informações sobre a Criança Espiritual que a Phecda havia obtido, que confirmaram a previsão da Yu de mente suja. Ela era uma mulher, tinha 21 anos e se chamava Deng Ximei.

A sala de interrogatório não tinha a disposição típica de uma sala de interrogatório comum. Era relativamente espaçosa, com mesas e cadeiras que lembravam um ambiente doméstico, embora também não tivesse janelas.

Assim que entrou na sala, ele viu uma jovem mulher em pé ao lado da mesa e cadeiras. Quando a porta se abriu, ela se virou e olhou na direção dele.

A mulher estava vestida de forma simples e elegante. Tinha uma figura alta e esguia, com um rosto oval delicado e cabelos longos e negros, amarrados de forma despretensiosa com uma fita de cabelo. Sua expressão era calma, quase melancólica, dando a impressão de estar olhando para uma paisagem desolada.

Gu Jun encarou seus profundos olhos negros e sentiu algo agitar-se em seu coração, uma sensação especial…

Seria uma memória reprimida sendo instigada?  

Ou talvez seja porque finalmente estava vendo alguém com as mesmas experiências de vida, como alguém se afogando vendo outra pessoa se afogando enquanto grita por socorro na superfície da água.

Apesar de não ter sido resgatado e o problema não ter sido resolvido, ainda existia uma certa sensação de tranquilidade.

Não sendo mais o único nessa situação, o peso de enfrentar o vasto oceano sozinho tornava-se mais leve. 

“Srta. Deng, prazer em conhecê-la,” começou Gu Jun.

“O prazer é meu.” Deng Ximei do outro lado assentiu a cabeça levemente. “Você era uma Criança Espiritual, certo?”

Gu Jun sentiu um sobressalto repentino em seu coração, mas permaneceu impassível exteriormente, sem deixar transparecer qualquer microexpressão. “Por que você diz isso?” 

Ao ser transferida do Estado Oriental para cá, em momento algum informaram a Deng Ximei o motivo da transferência, nem mesmo onde exatamente estavam. Após as severas consequências causadas por suas informações fornecidas anteriormente, ela passou mais de um ano em estado de confinamento, sem acesso a nenhuma notícia e totalmente alheia ao que acontecia além das quatro paredes que a abrigava.

“Nós somos diferentes”, disse Deng Ximei, “muito diferentes.” 

Suas palavras eram escassas e sua voz era como a brisa de uma noite sem nuvens, que nada movia, mas dava a sensação de tudo mover, ressoando como o trautear da natureza.

“Diferentes como?” Gu Jun perguntou sem demonstrar emoção, embora ele provavelmente já entendesse o que ela queria dizer. Era um tipo de impressão mental…

Essa impressão não era tão intensa a ponto de induzir uma ilusão e não era tão distintiva quanto a sinestesia da Yu de mente suja. Em sua aparente melancolia, Gu Jun viu seu antigo eu… o eu que carregava consigo um sentimento de falta de pertencimento.

No ano passado, no início da Doença da Banyan Malformativa, foi Deng Ximei quem procurou a Divisão da Phecda do Estado Oriental em busca de proteção. 

A versão que ela contou à Phecda foi que seus pais eram ex-funcionários da Companhia Laisheng e, por causa disso, ela fazia parte do Projeto Criança Prodígio da Companhia Laisheng. No entanto, quando seus pais perceberam a influência negativa do projeto sobre ela, eles retiraram Deng Ximei do projeto e saíram da empresa quando ela tinha sete anos.

Ao longo dos anos seguintes, ela acompanhou seus pais, mudando-se regularmente para áreas remotas nas montanhas, sem nunca ter frequentado a escola, recebendo toda sua educação diretamente de seus pais. 

Olhando para trás, ela percebeu que essas medidas eram para evitar a detecção pela Companhia Laisheng. Mas no ano passado, quando o mundo virou de cabeça para baixo, seus pais a mandaram buscar refúgio com a Phecda em troca de informações. Seus pais partiram porque “tinham alguns assuntos para resolver”. Mais tarde, o departamento de investigação seguiu as pistas que ela forneceu e descobriu que seus pais estavam mortos há vários dias nas montanhas, enforcados em uma árvore. 

A parte inicial da história de Deng Ximei era semelhante à visão que Gu Jun tinha de seus pais, levando-o embora para protegê-lo…

Mas talvez seja justamente por esse motivo que Gu Jun achou difícil acreditar em sua história.

“Apenas diferentes.” Deng Ximei não elaborou mais, virando a cabeça para o lado.

“Nesse caso, você sabe quem sou eu?”, Gu Jun perguntou novamente. “Você sabe meu nome?”

Quando perguntada, ela admitiu que não compreendia o idioma estrangeiro e que não havia nenhuma experiência de rituais de evocação divina em sua memória. 

Em relação à localização do esconderijo da Companhia Laisheng, a Phecda conseguiu retirar isso de sua mente através de uma evocação de memória através da hipnose, e então aconteceram os eventos subsequentes.

Ao ouvi-lo, Deng Ximei virou-se novamente para ele, olhando-o mais uma vez, seus olhos pareciam carregar uma sutil lembrança. “Não consigo reconhecê-lo, embora eu acredite que deveria conhecer você…”

Gu Jun também a observou atentamente, mas apenas ficou mais certo de que não era capaz de ver através dessa pessoa.

Em momentos como esse, ele realmente apreciava a personalidade direta de Lou Xiaoning, que não conseguia esconder seus próprios pensamentos. Ao contrário desta jovem magra diante dele, imersa em sua complexa história. Ela parecia fechada, como se estivesse cercada por um muro obscuro. Por conta disso, mesmo após mais de um ano de observação e avaliação no Estado Oriental, ainda não conseguiam determinar se ela era boa ou má.

O relatório de avaliação pessoal emitido pelo departamento de revisão dizia que ela era uma pessoa com espiritualidade elevada, introvertida, um pouco tímida, mas também com uma determinação de ferro.

Isso também se refletiu em seu estilo de vida ao longo do último ano. Apesar de estar em confinamento, ela não demonstrou o mesmo esforço árduo para provar a si mesma como Wang Ruoxiang, nem o desinteresse de Wu Siyu, que tira proveito da situação para comer e não fazer nada o dia todo. Ela simplesmente cuidava de suas plantas, lia livros, escrevia alguns contos curtos e em seu diário, vivendo de forma bem tranquila.

Essas pessoas eram como rochas, firmes e inabaláveis, desafiando qualquer tentativa de contorná-las.

Gu Jun tinha dificuldade em entender o que ela queria dizer com “somos diferentes”. Era apenas o sentido literal ou queria dizer “somos diferentes das pessoas comuns, somos superiores a elas”? Ela já havia tocado a pedra de purificação do selo ancião antes e não apresentou nenhum problema, mas a pedra não podia ler pensamentos.

“Srta. Deng, muitas coisas aconteceram lá fora no último ano”, ele disse, observando ainda mais atentamente. “Muitas pessoas inocentes morreram, e a Companhia Laisheng está envolvida nisso. Eu li seu arquivo e você acredita que as pessoas da Companhia Laisheng mataram seus pais. Se isso for verdade, eu gostaria de saber se você deseja destruir essa organização?”

Ao ouvir isso, a expressão de Deng Ximei congelou ligeiramente…”

“Meu nome é Gu Jun”, disse Gu Jun com seriedade. “Eu estou determinado a destruir essa organização a todo custo.”

“Gu Jun?” A expressão de Deng Ximei mudou um pouco mais. “Gu Jun, Gu Jun… Então é você.” 

Gu Jun piscou os olhos. Será que essa garota realmente o conhecia ou estava apenas fingindo? De qualquer forma, ele não tinha memória dela. Então perguntou: “Nós nos conhecemos?”

“Você pode não se lembrar, mas eu me lembro.” Deng Ximei voltou a ter uma expressão impassível, mas com um leve tom de decepção. “Nunca imaginei que nos reencontraríamos assim.”

“Oh?” Gu Jun a encarou e concentrou sua mente, sentindo uma agitação em seu coração. Rostos inocentes de crianças espirituais pareciam passar diante de seus olhos…