Capítulo 60 - Busca Gélida
O céu parecia um escudo de nuvens cinzentas, sem deixar qualquer fenda da luz do sol passar por ela. A neve estava caindo em flocos lentamente, deixando a carroça pesada a cada instante que continuavam ali. A floresta estava quieta, pacifica, sem qualquer vestígio de animais ou sapiens. E o grande rastro começava a ser engolida pela neve aos poucos.
— Ainda bem que essa trilha é bem larga e aparente. Se não fosse por isso, acho que iriamos nos perder. — comentou Evellyn enquanto segurava as rédeas da carroça.
O branco estava tão intenso que a egua fantasma de Evellyn parecia ficar invisível no meio da neve. Niko mal conseguia ver ela. Até pensou em comentar isso com Evellyn, fazendo uma piada que esse era um ambiente perfeito para o animal se camuflar, mas acabou que essa ideia não saiu do pensamento.
O silêncio era ensurdecedor, o tipo de silêncio que fazia até os próprios pensamentos parecerem altos demais. Niko estava na parte de trás da carroça, enrolado em um cobertor grosso até o pescoço. Além disso, já tinha lido todos os livros que havia trazido. Não sobrou nada fora o tédio.
O garoto suspirou. Olhou para a capa do último livro lido e então deixou ele de lado. Se arrastou para frente da carroça, saindo do conforto do cobertor e se juntando a Evellyn no assento.
O frio ali parecia ainda mais forte, mas pelo menos havia alguém para dividir o espaço. Mesmo assim, ele não falou nada. Tentou pensar em algo que quebrasse o clima, algo que eles poderiam conversar durante horas, mas nenhuma ideia parecia boa o suficiente. E no fim, foi Evellyn quem falou primeiro.
— O tempo tá fechando mais ainda… — disse ela, olhando para o céu. — Parece que a nevada vai ficar mais intensa.
Niko acompanhou o olhar dela. O céu estava bem escuro, como se a qualquer momento o mundo fosse cair sob suas cabeças.
— Isso é ruim para gente. A carroça pode atolar e a gente ter que parar as buscar… Que saco
— Você não pode usar sua Alma para despistar a neve ou algo assim? — perguntou Niko.
— Minha Alma só consegue criar gelo e neve, não manipular o que já existe. Então, infelizmente não.
— Entendi…
O silêncio voltou a reinar por alguns segundos, só sendo quebrado pelo som das rodas do veículo rangendo contra a neve acumulada no chão. Evellyn deu um suspiro, ficando com uma expressão preocupada em seu rosto.
— Já se passaram dois dias… Será que a gente vai mesmo encontrar ela?
Niko ficou quieto por um momento, olhando para frente, onde o rastro de destruição ainda se mantinha, mesmo coberto parcialmente pela neve. Ele queria acreditar. Precisava acreditar. Mas com aquela nevasca e tudo ficando cada vez mais branco, era difícil manter certeza de qualquer coisa.
E mesmo que encontrassem Brigitte, ainda não teria como saber do seu estado. Ela poderia estar viva e bem, mas também poderia estar machucada ou até mesmo morta. Só de pensar nessa possibilidade, Niko ficava com medo e ansiedade. Brigitte foi uma ótima companheira até agora e definitivamente Niko não queria que ela morresse.
Mas ele não podia jogar as esperanças no lixo, ele precisava acreditar que Brigitte estaria bem e que eles iriam encontrar ela.
— Vamos. — respondeu ele. — A gente tem que encontrar ela.
Evellyn permaneceu quieta por alguns segundos. O som do vento passava entre os galhos secos e o veículo e Aguro mantinha sua caminha normalmente, emitindo o som de seus passos e fazendo a carroça avançar sem pressa.
— Eu devia ter vencido ele. — disse a elfa de repente, olhando para o chão. — Aquele maldito ghoul… Desgraçado.
A voz dela não tinha raiva. Tinha amargura. Tinha um peso na garganta, como se fosse uma corda que estava sufocando ela, onde cada palavra estivesse fazendo Evellyn engasgar e ele tivesse se recusado a tossir, pelo menos até agora.
— Eu dei tudo de mim naquela luta. Tudo mesmo. Tudo que fiz na minha vida com os que lutei funcionou, mas com ele não foi assim… — ela apertou mais forte as rédeas. — Mesmo eu fazendo tudo o que eu podia, ele arrancou minha prótese sem nenhum esforço e disse que só me deixou viva porque disse que tinha nojo de mim. Nojo por um motivo idiota e psicopata… — Evellyn voltou a segurar as cordas com menos força. — Eu preferia ter morrido ao invés dele ter feito isso comigo…
A garota voltou a ficar em silêncio agora que havia dito o que estava sentindo a Niko, mesmo que não tivesse pedido o consentimento dele. Niko foi falar com a amiga, mas foi interrompido antes que pudesse pensar em algo:
— AHH, QUE ÓDIO! — gritou ela, abaixando a cabeça e colocando as mãos sobre a testa.
A carroça balançou levemente quando ela deixou as rédeas um pouco frouxas, mas ela não pareceu se importar muito, diferente de Niko que suas iris se contraíram por conta disso.
— Eu devia ter sido mais rápida… devia ter pensado melhor… eu devia… — ela não terminou a frase, apenas soltou o ar pela boca com força, como se tentasse soprar a frustração para longe.
Niko olhou para ela em silêncio por alguns segundos. Era estranho ver Evellyn daquele jeito. Mesmo depois de tudo que passaram juntos, raramente ela se mostrava tão irritada assim. Era alguém que sabia fingir bem. Que mascarava qualquer dor com sarcasmo ou humor. Mas agora não. Agora ela estava colocando tudo o que sentia para fora.
Niko não suportava ver ela assim. Ver a mulher que deu tudo de si para ajudar um completo desconhecido a procurar pelo seu passado tão frustrada e confusa deixava-o triste. E mesmo que ele não fosse bom em consolar ninguém, Niko sabia que precisava dizer algo. Porque, se ele estivesse no lugar dela, o que gostaria de ouvir. Um consolo.
— Não deixa essa raiva te dominar. — disse ele, não sabendo como continuar, somente que precisava falar algo. — Eu sei que você pode não aceitar agora, mas você é forte, Evellyn. Derrotou a Clementine, a Hyandra e também tenho certeza que passou por inimigos muito fortes antes da gente se conhecer. A questão é que você só não estava preparada para esse último. Só isso… E não fala que preferiria morrer do que ele ter vencido de você. Eu não queria que você me deixasse.
Evellyn baixou os olhos e ficou em silêncio por alguns segundos. Niko não estava olhando diretamente para ela, com a visão ainda fixa na estrada, como se suas palavras tivessem escapado sem querer e agora ele não soubesse onde esconder o rosto. A elfa soltou um suspiro, cansado e mais calmo. Então, deu um pequeno sorriso de canto, sincero e íntimo.
— …É. Eu falei besteira mesmo. — murmurou. — Eu não queria que aquilo tivesse acontecido mesmo. Só estava irritada com tudo o que aconteceu. Desculpa por ter jogado tudo isso no seu colo.
— Tudo bem…
Os dois voltaram a olhar para frente, deixando com que o silêncio cobrisse novamente o que restava da conversa.
— E… obrigada, Niko. Por ter me acalmado. — terminou ela dando um grande sorriso em sua direção.
Niko apenas assentiu devagar, com um leve sorriso que Evellyn talvez nem tivesse notado. O silêncio retornou entre eles, mas dessa vez não parecia pesado. Não era mais o tipo que sufocava, era um silêncio leve, como a paz depois de uma tempestade.
Mas, por dentro, Niko estava inquieto. No fundo de sua mente estava pensando nas palavras de Väinö, sobre o convite para voltar à Skarshyn. Esta pensando em quem ele era antes de acordar naquela floresta e no que poderia descobrir caso dissesse sim. Será que ele devia fazer isso mesmo? Isso é egoísta, mas também pode ser a única chance dele saber quem realmente é.
O garoto não falou nada até agora com Evellyn sobre o assunto, sobre a proposto. É claro que não havia falado isso para ela. Como ele poderia contar isso para Evellyn? Como poderia olhar nos olhos dela, depois do que ela passou, e dizer que talvez estivesse considerando escutar os inimigos? Não. Aquilo não era o momento. Talvez nunca fosse. Sim, nunca deveria falar isso com ela nem com ninguém.
Enquanto Niko estava flutuando em seus pensamentos, a força da neve começava ficar mais intensa. Os flocos agora pareciam punhados de farinha sendo lançados do céu em rajadas finas que gelavam a pele como agulhas frias. A nevada era tão forte que Aguro bufou baixinho, diminuindo o ritmo do trote. A carroça começou a balançar com mais intensidade, com suas rodas afundando cada vez mais na neve a cada metro percorrido
— O rastro está sumindo. — comentou Evellyn, olhando para o chão já parcialmente coberto pela neve. — Se a gente demorasse mais um dia, ele teria desaparecido de vez.
— Mas ainda dá para seguir. E mesmo que desaparecesse a gente iria saber para onde ir do mesmo jeito, né?
Evellyn riu, mas não respondeu. Apenas concordou com um aceno cansado. A garota olhou para baixo, ainda não satisfeita com o silêncio.
— Sabe… — disse Evellyn, quebrando o vazio. — Eu fico pensando… se a gente tivesse se conhecido em outra situação, talvez na escola… ou no trabalho, seja como mercenários ou outra coisa, será que ainda seríamos amigos?
Niko pensou por um momento, não desviando o olhar da estrada. O garoto acreditava que não era de Franell, que era de outro país pelo fato de albocernos viverem ao norte e não ao sul do continente, diferente de Evellyn que era nascida e crescida aqui. Só por essa falta de informações já seria difícil eles se encontrarem e mesmo se encontrando uma vez a diferença de personalidade dos dois também seria um problema.
— Eu queria dizer que sim, mas eu honestamente acredito que não.
— Ah, eu entendo. — disse Evellyn olhando para o chão.
— Foi uma situação muito específica que nós dois nos encontramos. Se você não tivesse pegado aquele contrato, se eu tivesse andando para outra direção quando acordei ou até mesmo se fosse outro dia, nada do que vivemos até agora teria acontecido. Isso me faz perguntar se isso foi obra de um anjo ou algo assim…
Evellyn já esperava essa resposta, para ser sincera. Ela sempre foi realista, e sabia que encontros como o deles era algo que se acontecia uma vez em um milhão de vidas. Ainda assim, ouvir Niko admitir aquilo em voz alta doeu mais do que imaginava.
— Mas…
— Uhm?
— Em toda a oportunidade que eu tivesse de te conhecer eu gostaria de vivá-la. Mesmo que fosse improvável. — terminou o garoto dando um sorriso na direção da amiga.
Evellyn sorriu para ele com uma expressão que misturava leveza e gratidão, mas antes que pudesse dizer qualquer coisa, seus olhos se estreitaram ao encarar a estrada à frente.
— Espera… Tem… alguém andando ali?
Niko virou os olhos no mesmo instante. À frente, contra o branco da neve, uma figura estava caminhando devagar, com os pés afundando na trilha com dificuldade. A silhueta era inconfundível, cabelos escuros e cacheados, uma jaqueta que chegava até os joelhos e a lança presa torta nas costas. Aquela pessoa era definitivamente Brigitte, e o mais importante, ela estava viva.
— É ela! — disse Niko, já se levantando no banco da carroça.
Evellyn largou as cordas que segurava sem pensar duas vezes. Niko pulou da carroça e disparou contra a garota, com a elfa vindo logo atrás.
A silhueta à frente pareceu ouvi-los, pois parou por um instante e tentou levantar o rosto, conseguindo com dificuldade. A pele escura e os olhos roxos, antes cheios de força, agora estavam sem brilho, como se ela estivesse caminhando sem nem ter mais energias. Os lábios rachados esboçaram um sorriso involuntário ao reconhecer aquelas duas figuras correndo em sua direção.
— Por que… demoraram… tanto…? — murmurou, quase sem voz.
Niko chegou primeiro, completamente surpreso e um pouco preocupado ao ver o estado da garota. Ele estendeu os braços por reflexo, mas antes que pudesse segurá-la, Brigitte cambaleou.
Evellyn correu para o lado dela, mas já era tarde. Os joelhos da garota cederam e seu corpo caiu para frente. Antes que pudesse cair no chão, Niko conseguiu pegá-la pelos ombros. O rosto dela encostou no peito dele, completamente apagada pelo cansaço. Sua respiração era fraca, mas estável.
Evellyn ajoelhou ao lado dos dois, puxando os cabelos da garota para trás com cuidado. Analisando ela.
— Tirando os curativos e ataduras, ela parece estar bem, só um pouco cansada… Eu não acredito que ela está viva… Pensei que aquilo… — disse a elfa, com a voz presa entre alívio e angústia.
Niko apenas assentiu, olhando para o rosto de Brigitte. O peso de tudo que haviam passado nos últimos dias parecia ter desabado naquele instante. Pela primeira vez desde que Brigitte havia sumido de seus olhos, Niko sentiu um alívio quente e silencioso em seu peito, o tipo de paz que só se sente quando algo perdido, mesmo por um instante, é recuperado.
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