Uma multidão passava, bem como carros de diversos tamanhos. O céu cheio de nuvens cinzas era quente e úmido. Eu prendi a minha respiração e encarei o céu cinzento lá em cima. Em meio a um bombardeio de sons irritantes, lá estava eu, no beco, entre sacos de lixo jogados no concreto frio. Eu nunca conheci meus pais, ou sabia o que era ter um lar. Estou aqui fora desde que eu me lembro. Esta é a sétima vez que eu vejo essas nuvens densas tão baixas.

    Assim que eu percebi o que estava acontecendo ao meu redor, e embora eu fosse tão novinha, eu entendi o fato de que eu era de rua. Desde que entendi que era uma gata fraca, jovem e abandonada, não tinha nenhuma esperança ou aspiração. Eu simplesmente prendia a respiração e me escondia, olhando para a paisagem no meio dos sacos de lixo. Além do pouco de comida que a mulher gordinha e de meia-idade da peixaria me dava depois da hora do almoço, meu mundo era monótono e imutável.

    ─ Parece que vai chover ─ disse a mulher enquanto rasgava pedaços de peixe para me dar.

    Cautelosa e lentamente, coloquei minha cabeça para fora, antes de correr até o peixe que estava num prato fino de papel branco enquanto pensava sobre a chuva.

    Eu estava com muita, mas muita fome mesmo.

    Enquanto eu comia a minha refeição, pensei em como, das sete vezes que tinha estado tão nublado assim, duas resultaram numa chuva torrencial. Na escuridão, quando tudo ao redor tinha ficado tão quieto quanto a morte, a chuva caía incessantemente do céu negro.

    A chuva era uma tortura. Não só era fria, como encharcava a minha cama e eu não poderia fazer nada a não ser encolher meu corpo molhado e aguentar quietinha até passar.

    ─ Vou te dar um pouco mais quando eu fechar a loja.

    Antes que a mulher se abaixasse para pegar o prato vazio, eu me encolhi de volta no meio dos sacos de lixo. Sou cautelosa perto dos humanos. No primeiro dia nublado, quando eu não sabia de nada, eu fui inundada com insultos por muitos humanos e eles quase me bateram.

    Ao me ver escondida entre os sacos de lixo, a mulher faz uma cara de tristeza. Então, diz:

    — Vejo você depois.

    E se afasta, levando consigo o prato de papel. Depois de um tempo, o som da mulher anunciando em voz alta para os transeuntes ecoou até mim:

    ─ Que tal um peixe fresco?

    A maioria dos humanos eram homens adultos em ternos, e o som dos seus sapatos de couro batendo na calçada me irritava. Os humanos passavam, todos com o mesmo rosto, e os veículos frios e metálicos passavam a velocidades mortais.

    “Que mundo cruel”, pensei comigo mesma, olhando imóvel para o mundo cinzento à minha frente.

    Eu sabia tudo sobre ele. Mesmo que eu não lembrasse, tinha certeza de que fui trazido por um veículo de metal e jogado aqui. Isso é coisa que a gente entende, mesmo que ninguém diga. É só a minha consciência que apareceu depois disso, mas os meus instintos já floresceram no instante em que nasci de minha mãe, cujo rosto eu desconhecia.

    É por isso que eu sei. O que a experiência me ensinou foi o aviso contínuo de “não confie nos outros”, “não espere nada dos outros”, “eu só dependo de mim”. Mesmo que eu entendesse isso como verdade, não podia fazer nada, a não ser manter esse pessimismo.

    Por exemplo, se minha vida fosse acabar, depois de viver assim, não ia me incomodar se eu estivesse aqui ou em outro lugar. Eu comia e dormia para viver, e então, um dia, eu morreria.

    Agora eu sou nova e pequena, então não tenho escolha, a não ser aceitar a comida que a senhora me dá, mas assim que eu ficar maior, provavelmente serei capaz de caçar a minha própria comida. Por isso, a fim de crescer, preciso ficar aqui.

    Eu suporto e suporto, prendendo a respiração. Eu como apenas para me manter viva.

    Às vezes, alguém me nota escondido nas sombras e fazemos contato visual, mas eu só encaro com um olhar fugaz, agachada e imóvel. Eles só me olham por curiosidade. Eles não me dão nenhuma comida como a senhora faz, apenas se afogando no senso de superioridade que sentem ao ver uma existência lamentável, inferior a eles. Que bando de grosseiros.

    Depois de um pouco, as nuvens no céu abrem caminho para uma inundação carmesim.

    Ao ouvir vozes altas e irritantes, eu recuo ainda mais, suprimindo a minha presença e me escondendo no meio dos sacos de lixo. Fiquei mais vigilante que o normal. É mais ou menos nesse horário que as crianças humanas começam a passar. Crianças são mesmo assustadoras. Muitas delas me atacariam sem hesitar, só por diversão.

    Eles agarrariam e puxariam uma pequenina como eu, e no pior dos casos, me acertariam violentamente com armas. Mesmo que outra criança diga:

    ─ Pare com isso, coitadinho.

    Só diria isso casualmente, enquanto seus olhos brilhavam de prazer.

    Aah, é ridículo.

    Suspirei por dentro. Quem será que decidiu que, contanto que não fosse um humano, você poderia fazer o que quisesse. Embora eu não seja humano, eu também tenho o direito de viver. Eu não sou um brinquedo, eu estou dando o meu melhor para sobreviver.

    ─ Cara, será que vai ter um monte de dever de casa nas férias de novo?

    ─ Certeza. Afinal, teve um monte no ano passado.

    ─ A tarefa de pesquisa é uma droga, né?

    ─ Vai fazendo conforme você pesquisa.

    Enquanto elas riam, essas pessoas pequenas, usando suas mochilas de cores diferentes, passaram por mim. Depois de um tempo, pessoas um pouco maiores, usando o mesmo uniforme, também passaram por mim.

    Antes que eu me desse conta, as nuvens cinzentas se separaram e eu olhava um céu com toques de carmesim. Ao ver isso, percebi que já estava escurecendo. Os carros e as lojas já tinham aceso as luzes. E, se eu esperasse um pouco, a senhora de antes iria trazer a minha última refeição do dia.

    Na minha forma agachada, coloquei minha cabeça um pouco pra fora e esperei por ela. Eu ainda sou nova, mas não sou idiota. Ainda havia algumas crianças humanas passando, mas elas não viriam me atacar.

    ─ Peguei uma lata no mercadinho aqui do lado. Toma, coma.

    A senhora da hora do almoço veio e colocou uma lata aberta na minha frente. Cheirando algo que parecia ainda mais delicioso do que eu tive na hora na hora do almoço, me aproximei e dei uma mordida. Uma mordida foi o suficiente para me chocar. Era uma delícia. 

    Minha regra era comer quando pudesse. Era melhor enfiar tudo isso para dentro do meu estômago agora mesmo.

    Enquanto a senhora estava agachada, olhando na minha direção, eu devorei tudo incontrolavelmente, sem nem respirar. Muita comida se espalhou, mas eu nem me importei. Eu poderia limpar tudo depois, sem problemas.

    Foi quando o homem que passava na rua atrás da mulher parou de repente e olhou na nossa direção. Dando uma rápida olhada para ver quem era, vi um homem de óculos em pé, usando um terno engraçado que parecia não servir direito, como se ele não estivesse acostumado com ternos. A camisa branca por debaixo do terno estava amassada e saindo das calças. Ele não usava gravata e o primeiro botão estava desabotoado. Ele segurava um envelope marrom, e usava um par de sapatos largos de couro.

    Parei de comer e, imediatamente, encarei o homem como um aviso. Porém, entre mim e o homem estava a senhora. Pensando bem, enquanto aquela senhora estivesse ali, ninguém seria capaz de me machucar, então continuei a comer.

    — Olá.

    O homem chamou a senhora. Ela se virou, como se estivesse surpresa, mas imediatamente abriu um sorriso.

    ─ Oh, Itou-san. Foi na editora hoje?

    ─ Sim, meu manuscrito, sabe.

    O homem chamado Itou respondeu assim e sorriu alegremente. Para um humano macho, ele tinha uma voz um tanto quanto aguda. Enterrei minha cara na lata para alcançar a comida no fundo e mandar pra dentro.

    ─ Que gato preto fofo.

    O homem disse e eu senti o olhar da senhora se voltar para mim.

    ─ Concordo, mas parece que ninguém está vindo para buscá-lo.

    ─ Um gatinho abandonado, hein…? — perguntou o homem com um suspiro.

    Eu lambi o que restava no fundo da lata.

     ─ Já faz duas semanas que ele está aqui. No começo, tinha cinco, mas os outros foram sendo levados, sabe? Parece que todos foram adotados, menos esse pretinho… Tenho certeza que a mãe pariu, mas a pessoa que cuidava da gata não podia criar todos, então os abandonou. É o que eu acho, mas… Que coisa horrível de se fazer.

    ─ Falando nisso, o tio do mercadinho disse que adotou um gato.

    ─ Sim, o Yamada-san vive numa casa, então ele pode criá-lo. Também moro numa casa, mas eu tenho um cachorro, então…

    Ouvindo os humanos, pude entender que meus irmãos também foram abandonados, assim como eu fui. Contudo, parece que eles encontraram um lar quentinho e seguro. Ao ouvir sobre a felicidade dos irmãos que nunca conheci, aqueles nascidos da mesma mãe, encontram, era tanto estranho quanto reconfortante. Foi o que eu pensei enquanto eu lambia diligentemente o interior da lata.

    Parece que mesmo alguém tão indiferente quanto eu ainda tenho esse tipo de sentimento.

    ‘Ahh, ainda bem que eu não fui pega’, pensei.

    Levantei minha cabeça da lata e lambi os restos de comida do meu rosto usando minhas patinhas e língua. A senhora deu uns tapinhas de leve na minha cabeça. Eu não gostava de ser tocada, mas acho que estava tudo bem, como um agradecimento pela comida, então não resisti.

    ─ Gatinho, estava bom?

    Já que a senhora perguntou com uma voz tão calma, eu respondi sinceramente: 

    — Estava delicioso.

     Tenho certeza de que tudo que ela ouviu foi um “miau” indiferente. É uma pena, mas eu não sou exatamente charmosa.

    ─ Parece que ele já passou da idade do leite, hein.

    ─ Sim, é o que parece. Ouvi da mulher do Yamada-san que ela tentou dar leite ao gato deles. Veja bem, é meio complicado quando eles ainda precisam de leite, né?

    ─ Ahh, é porque você precisa alimentá-los com uma mamadeira especial para gatos.

    ─ Puxa, Itou-san, você já criou gatos?

    ─ Antes de casar, teve uma vez que minha irmãzinha pegou um gato, e no final, tive que cuidar dele durante as longas férias da faculdade.

    ─ É mesmo?

    A senhora tinha os olhos arregalados, como se estivesse surpresa, e então disse:

    ─ Lá vamos nós. ─ Ao mesmo tempo em que levantava.

    Eu me escondi de volta nos sacos de lixos e me abaixei enquanto observava os dois humanos. A senhora disse algumas despedidas para o homem chamado Itou e saiu, enquanto o homem se curvou levemente, vendo a senhora partir.

    Inesperadamente, o homem se virou para me olhar. Como precaução, apaguei a minha presença e fiz uma careta para o homem. Os olhos gentis do homem, escondidos atrás dos óculos, pareciam se estreitar de tristeza:

    ─ Até mais.

    — Até mais o que, humano — respondi sem rodeios, enquanto eu me enfio ainda mais fundo nos sacos de lixo e me enrolo numa bola.

    Odeio os humanos acima de tudo.

    ‘Sinto muito, mas não tenho a intenção de me tornar um brinquedo só para satisfazer seu senso de superioridade’, pensei comigo enquanto fechava os olhos.

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