Capítulo 78 - Interlúdio [2]
“Magia de verdade?” Scarlett zombou. “Outro nome pretensioso para minha coleção, então. Por que você não sai? Falar desse jeito é cansativo.”
“E meus professores? Você não tem medo deles se intrometerem?”
“Não. Agora mesmo os espelhos de vigilância deles só mostram você dormindo. Requer um pouco de esforço, mas eu posso mexer com eles por um tempo.”
Lith engoliu um pedaço de saliva. O monstro não estava mentindo, ele já poderia tê-lo matado dez vezes. Mas isso só tornou a situação ainda mais assustadora.
“Como eu saio sem acordar os outros?” Um Passo de Dobra apareceu na frente dele, levando-o na frente do Scorpicore. Lutando arduamente para evitar que seus joelhos tremessem, Lith começou a tecer todos os seus feitiços mais fortes, preparando-se para o pior.
Scarlett o encarou com um olhar inquisitivo. Apesar de estar tão perto, era difícil perceber qualquer traço de corrupção, e isso já era um bom sinal.
— O que você quer de mim? — Lith perguntou com um feitiço pronto para cada um dos dedos.
— Eu já te disse, eu só quero seu objeto amaldiçoado. Depois disso, eu vou sair do seu pé.
— Meu parceiro não é um objeto amaldiçoado ou algo assim. É apenas um artefato, você está claramente enganado.
— Você ao menos sabe o que é um objeto amaldiçoado?
— Não. — Admitiu Lith.
— Veja bem, não importa o quão poderoso um artefato seja, ele não tem vida. É apenas um objeto.
Scarlett entregou-lhe seu pince-nez.
— Isto é um artefato, acredite em mim. Agora, use sua magia verdadeira e me diga, isso parece vivo para você?
Lith usou Revigoração e Visão da Vida, percebendo muitas e poderosas magias dentro dele, mas nenhuma vida. Ele tinha fluxo de mana, mas nenhum núcleo de mana ou força vital.
“Solus, e seu senso de mana?”
“Ele realmente tem mais poder do que muitos de seus professores, mas não tem núcleo de mana.”
— Aquele castelo enorme é um artefato enorme e poderoso, mas ele está vivo? — Scarlett apontou para o Grifo Branco com uma de suas garras.
Mais uma vez, tanto a Visão da Vida quanto o Senso de Mana relataram um enorme fluxo de mana, mas nenhum núcleo de mana.
— Não. — Lith disse relutantemente.
— E agora, e seu anel?
Lith usou Revigoração pela primeira vez em Solus. Assim como no passado ele usou Visão da Vida para ver o fluxo de mana e a força vital dela, Revigoração revelou um pequeno núcleo de mana amarelo.
“Por que você nunca me disse que tinha um núcleo tão fraco?” Lith perguntou, surpreso pelo fato de ela ser tão fraca, apesar de todos os anos que passaram juntos.
“Bem, você nunca perguntou. Além disso, o que você esperava? Depois de quase morrer de fome, fiquei com apenas um vermelho. Ainda preciso de tempo para me recuperar.”
— Ele tem um núcleo de mana amarelo. — Admitiu Lith.
Scarlett teve que engolir uma grande risada.
“Isso confirma minhas preocupações. Essa coisa está brincando com ele como se fosse um brinquedo. Não tem como um artefato vivo ter apenas um núcleo de mana amarelo. Deve estar usando algum truque para nublar seus sentidos.” Scarlett assentiu e prosseguiu com sua explicação.
— A vida não pode ser criada por capricho, do nada. Existem apenas duas maneiras de dar vida a um objeto inanimado, e ambas exigem um preço terrível. O primeiro método requer um mago ou criatura muito poderosa e muito insana.
— Um objeto amaldiçoado é quando alguém tira uma grande parte de si mesmo e a vincula a um artefato poderoso. O filactério de um Lich é o exemplo mais comum, mas não é o pior tipo. Algumas criaturas têm um profundo rancor ou uma ambição insana, mas não têm vontade de viver para sempre.
— Então, eles passam essa obsessão deles para o objeto ao qual mais se apegam, dando-lhe vida. Mas cuidado, apesar de ter mente própria e imensos poderes, um objeto amaldiçoado é, na maioria das vezes, apenas uma sombra das piores partes de seu criador.
— Ele atrai seu novo mestre com promessas de poder e glória, mas toda vez que são usadas, a fronteira entre mestre e servo fica mais tênue. O elo mental que eles compartilham permite que o objeto interfira com a mente do dono, mudando-a pouco a pouco.
— Até que ele se torne uma cópia do criador do objeto, esforçando-se para completar suas pontas soltas. E quando o usuário morre, eles apenas procuram por um substituto.
— E o segundo método? — Lith estava ganhando tempo, esperando que alguém viesse em seu socorro.
— Bem, isso é ainda pior. A ponto de fazer parte da chamada magia proibida.
— Proibida? — Lith nunca tinha ouvido falar que qualquer tipo de magia fosse proibida, nem mesmo necromancia.
— Sim. Magia proibida é a coisa mais horrível que uma criatura mágica pode fazer. Usar a vida de outros para fortalecer suas criações. Tal magia pode dar origem a milagres, mas o preço é muito alto, os riscos são imensos.
— É um processo não natural, quase impossível de equilibrar. Um pequeno erro pode transformar o milagre em um pesadelo. O caso mais comum de magia proibida é quando o mago fica tão obcecado por alguém que recorre à magia para prendê-lo a um objeto.
— A vítima se torna condenada a uma eternidade de escravidão, e após a morte de seu captor, a única coisa que a aguarda é a loucura. Ainda um prisioneiro, incapaz de livre arbítrio, condenado a obedecer a quem quer que tenha o foco da magia.
— Não sou um herói, nem um autoproclamado aliado da justiça, mas destruir tais abominações é um ato de misericórdia para com as vítimas desse tipo pervertido da magia.
— Obrigado pela lição, mas meu parceiro não é nenhuma das duas coisas. — Lith cerrou os punhos, não querendo se submeter.
— Não há como provar que você está errado? — Ele perguntou como último recurso, na esperança de evitar uma terceira morte.
— Claro que há. — A cauda de Scarlett parou de balançar, assumindo um formato de ponto de interrogação. Sendo a cauda de um escorpião, em vez de um gato, o gesto acabou sendo ameaçador.
Lith deu vários passos para trás, seu corpo inteiro ardendo pela mana que ele estava prestes a liberar.
(NOTA: a cauda em formato de interrogação significa que o gato está feliz, o abanar da cauda significa nervosismo.)
— Droga de cauda. Desculpe, hábitos são difíceis de morrer. — Scarlett colocou a cauda sob o corpo dele, em sinal de paz.
— Eu só preciso tocar em você. — O Scorpicore disse levantando sua enorme pata. — Se eu estiver errado, o que considero altamente improvável, vou deixar vocês dois em paz. Vocês têm minha palavra.
Fazia sentido, até Lith precisava de contato físico para usar Revigoração. Se o Scorpicore tivesse uma técnica similar, ela certamente funcionaria da mesma forma.
Lith assentiu, e Scarlett pressionou dois “dedos” em sua testa. Sendo muito mais velho e experiente que Lith, sua técnica de Aura não só tinha todas as propriedades da Revigoração, mas também permitia que Scarlett tivesse um vislumbre da verdadeira natureza do sujeito.
Sob os efeitos da Aura, nenhum engano era possível, tanto o corpo quanto a mente não podiam mentir.
O que Scarlett viu the causou arrepios na espinha. O corpo estava bem, assim como a mente e o núcleo de mana, além de um pequeno desequilíbrio causado por muito refinamento. Era algo que se consertaria sozinho, com o tempo.
Mas onde o verdadeiro eu de Lith deveria estar, havia apenas um vazio sem fundo, feito de raiva, tristeza e ódio.
Olhando para aquele abismo, o Scorpicore podia ver o abismo olhando de volta, tentando contaminar sua mente com lógica distorcida e fúria desenfreada. Circulando o vazio, havia várias luzes, mantendo o vazio sob controle e impedindo que ele devorasse tudo.
Chegando mais perto das luzes, Scarlett conseguiu ver que cada uma delas tinha um rosto e um nome. Carl, Eliza, Lark, e assim por diante. Apenas uma luz tinha um nome, mas nenhum rosto. Solus.
“Ordem e caos, o que diabos é esse filhote? É exatamente isso que eu esperaria encontrar em um objeto amaldiçoado, não em um ser vivo. Se a corrupção se espalhou tão rápido, significa que é muito pior do que eu pensava. Provavelmente serei forçado a matar os dois.”
Para confirmar suas suspeitas, Scarlett tocou no anel, mas mais uma vez ficou completamente perplexo.
Não só o núcleo de mana era amarelo, tornando-o o pior artefato vivo de todos os tempos, mas não havia nenhum traço de loucura, dor ou má vontade. Havia apenas uma luz, como a que o Scorpicore costumava ver em filhotes e bebês. O ser no anel era muito ingênuo para ser perturbador.
Os pontos pretos que envolviam a luz tinham todos o mesmo nome e rosto. Lith. Estar tão perto do abismo por tanto tempo, parecia ter afetado o artefato vivo, tornando-o menos confiável e cínico.
“Pela Grande Mãe!” A cabeça de Scarlett estava girando. “O humano está corrompendo essa coisa? Não o contrário? Que loucura é essa?!”
Por causa do choque, o Scorpicore deu um passo para trás, tentando reorganizar seus pensamentos caóticos.
— Seja lá o que você for, você não é uma criança. Você é um monstro. — Scarlett rosnou.
— Bem, você também não é tão bonito assim, pelo menos de acordo com os padrões humanos. — Lith se encheu até a borda com mana usando Revigoração. O tom e o olhar da besta já tinham dito tudo o que ele precisava saber.
— Filhote insolente! Quem se importa com a aparência? Não é sobre o que você faz…
— É por causa do que eu sou. — Lith completou a frase, lembrando-se das palavras do Protetor.
“Sinto muito, Solus. Foi ótimo conhecer você. Parece que você vai ter que encontrar outro parceiro. Por favor, esqueça de mim e viva o máximo que puder.”
A disparidade entre Lith e seu oponente não era algo que pudesse ser superado com truques sujos ou engenhosidade. Lith estava se preparando para morrer, sua única esperança era dar a Solus tempo suficiente para fugir da besta louca.
“De jeito nenhum! A culpa é só minha. Se não fosse por mim, essa coisa teria te deixado em paz. Eu não vou te deixar. Não tenho chances sozinha, prefiro muito mais cair lutando do que fugindo.”
Solus apertou seu anel com força, impedindo Lith de tirá-lo.
Graças à sua técnica de Aura, Scarlett ainda era capaz de ver ambos os núcleos de mana, a habilidade tinha efeitos duradouros.
Por um breve momento, os núcleos começaram a pulsar em uníssono. O amarelo pegou o excesso de energia do ciano, ficando verde e permitindo que ele se estabilizasse para o próximo nível.
A ressonância dos dois núcleos permitiu que o poder mágico de Lith fosse muito além de seus limites, a ponto de o anel crescer e se expandir, cobrindo a mão direita na forma de uma luva sem dedos.
Ainda não era nada comparado à força do Scorpicore, e ainda assim a criatura olhava com espanto. Nada naquela noite fazia sentido, sua paciência tinha acabado.
— Eu me rendo. — Scarlett disse, deixando Lith e Solus tão chocados quanto o próprio Scorpicore.
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