Observando com mais atenção, ele realmente lembrava muito meu pai. Os cabelos eram de um preto profundo, contrastando com os olhos de um azul intenso, e a feição de seu rosto trazia traços familiares. Seu corpo, embora não tão musculoso quanto o do velhote, exibia um porte imponente. Ainda assim, a dúvida persistia: por que meu pai nunca mencionou que tinha um irmão? 

    Ele se levantou, ainda despido, com um semblante carregado de irritação. Seus passos foram firmes e deliberados enquanto se aproximava, até que seus olhos encontraram os meus num silêncio denso e prolongado. 

    — Ulrich, já falei pra não vir mais aqui. 

    — Você não ouviu? Esse é o filho de Elion. 

    — Não ouse falar o nome desse cara na minha frente! — Eldrin voltou-se para Ulrich com o semblante carregado de irritação. 

    — Mesmo depois de todos esses anos, ainda está assim? Afundado no álcool… Há quanto tempo não segura sua espada? — Ulrich chutou uma garrafa que estava próxima dele. 

    — Minha vida não é da sua conta. 

    Ulrich caminhou até um canto escuro da sala, afastou com desprezo alguns panos empoeirados e garrafas vazias, e retirou de sob eles uma espada envolta em uma bainha de couro rachado, marcada pelo tempo e com costuras se desfazendo nas bordas. 

    — Olha só, uma espada lendária jogada como se fosse lixo… Não dá pra acreditar. Como aquele que carrega o nome Falconer, e que já foi considerado o maior caçador de todos, pôde chegar a esse estado? Não sei como ainda não a vendeu pra comprar bebida. Pelo menos, ainda lhe resta um fiapo de honra. 

    — O que tá acontecendo aqui? — perguntei, já impaciente. 

    — Saito, seu pai nunca mencionou Eldrin? 

    — Não. 

    — Você ao menos conhece a história dos Falconer, não é? 

    — Também, não. 

    — Pff! — Eldrin soltou um sorriso torto, carregado de ironia. 

    — Você viu aquela estátua no centro da praça? 

    — Sim. 

    — Aquele é Einar Falconer, o fundador da guilda Vigilantes do Céu. Dá pra dizer que esta cidade se tornou um local de caçadores graças a ele. 

    — Acho que já posso me virar. — Assim que Clarice se virou, deu de cara com Ulrich ainda despido, soltou um grito e se virou de volta, completamente vermelha. 

    — Vista sua roupa, venha, Saito, sente-se. Vou lhe contar a história dos Falconer. 

    — O quê? Na minha casa? Façam isso em outro lugar. 

    Ulrich apenas deu de ombros. Com gestos despreocupados, limpou três cadeiras cobertas de poeira antes de nos sentarmos à mesa. Eldrin, agora vestido, pegou uma garrafa de bebida como se fosse parte de um ritual antigo e acomodou-se em uma cadeira junto à janela, onde a luz filtrava pelas frestas das tábuas. 

    — O que você sabe sobre esta cidade? — perguntou Ulrich. 

    — Sei que, depois que os anões caíram e um novo governante humano assumiu, essa cidade virou o maior ponto de encontro dos caçadores, por causa da quantidade e variedade de criaturas por aqui. 

    — É mais ou menos isso, mas no começo não era nada fácil. Muitos perderam a vida tentando caçar na superfície, e chegou um momento em que todos tinham medo de subir. 

    — E como isso mudou? 

    — Foi graças a Einar. Ele começou a explorar a superfície sozinho e sempre voltava sem um arranhão. Depois que o rei percebeu suas habilidades, firmou alguns acordos e montou um grupo pra ajudar a mapear a região. 

    — Então foi ele quem criou aquele mapa que está na guilda? 

    — Sim. Em pouco tempo, ele fundou a guilda e, com o apoio do rei, se transformou em um centro de comércio dos produtos obtidos das criaturas. As habilidades dele com a espada eram impressionantes, e a velocidade nos combates fez com que ganhasse o título de Falcão da Caça. Foi assim que surgiram os Falconer, uma família conhecida pela maestria na esgrima. 

    — Saito, sua família deve ser muito rica. A gente podia pedir um pouco de dinheiro pra eles… Onde eles estão, aliás?  

    Neste momento, um silêncio pesado pairou sobre a sala, como se até o ar tivesse parado para ouvir. 

    — Nesta cidade, o único Falconer que restou foi o Eldrin. 

    — Porquê? Você não disse que eles eram famosos? 

    Eldrin começou a apertar a garrafa que segurava com força, os músculos da mão retesados, enquanto sua expressão se fechava e ele encarava o vazio à frente. De repente, o vidro estourou em estilhaços entre seus dedos, fazendo Clarice se sobressaltar com um grito contido. 

    — Tudo por causa daquele maldito… Ele destruiu tudo — rosnou Eldrin, a raiva fervendo em sua voz. 

    — Maldito? — repeti, confuso, franzindo a testa. 

    — Ele está falando de Rainald, o seu avô. 

    — O que tem ele? 

    — Como todo Falconer, ele era um caçador muito respeitado por aqui. Mas, um dia, descobriu que sua esposa o traía. Foi então que decidiu partir e quis levar Eldrin e Elion com ele. No entanto, Eldrin escolheu ficar com a mãe. Pouco tempo depois, porém, ela foi assassinada. 

    — Que tragédia… — murmurou Clarice, com o olhar perdido e a voz embargada. 

    — Antigamente, Eldrin tentou continuar o legado dos Falconer, mas já não era mais como nos tempos de glória, e o nome da família começou a se perder com o tempo. Um dia, Elion apareceu por aqui. Eldrin tentou de tudo pra convencer Elion a ficar e ajudar a recuperar o prestígio dos Falconer, mas ele recusou. Depois disso, Eldrin se afundou na bebida e acabou virando o que é hoje. 

    Eldrin esboçou um sorriso amargo de canto, como quem carrega mais dores do que palavras podem dizer, e desviou o olhar para o outro lado, tentando esconder a sombra que lhe tomava os olhos. 

    — O que meu pai tava fazendo aqui? 

    — Não sei ao certo. Ele tava bem apressado, parecia tá procurando dessedentes das raças antigas. 

    Será que ele estava atrás das pedras do portal? Como eu suspeitava, ele sabia de tudo… Mas então, por que deixou Yuri tão vulnerável? Uma fúria silenciosa começou a borbulhar dentro de mim. 

    — Se for só isso, então estou indo — disse, já me levantando. 

    — Se está precisando de dinheiro, por que não se junta ao meu grupo? 

    — Não precisa. 

    — Se é assim, vamos até a guilda. Lá eu te explico melhor sobre o mapa. 

    Saímos juntos da casa de Eldrin. Clarice insistia para que eu me aproximasse mais dele, afinal era da minha família. Mas, sinceramente, eu não ligava, havia coisas bem mais urgentes a resolver do que desperdiçar palavras com um bêbado afundado no passado. 

    Ao entrarmos na guilda, ainda estava lotada de caçadores. Seguimos até o mapa, era enorme, ricamente detalhado, uma verdadeira obra impressionante. 

    Com a ajuda de Ulrich, consegui entender bem como funcionava. O mapa era dividido em zonas, cada uma delimitando territórios com níveis variados de perigo, determinados pelo tipo de criatura que ali vivia. As mais poderosas eram ferozmente territoriais e dominavam áreas amplas. Tudo começava no sul, onde habitavam as criaturas mais fracas, mas conforme se avançava rumo ao norte, o ambiente se tornava cada vez mais hostil e mortal. 

    Após uma análise cuidadosa, concluí que o Lobo Dorsal era o alvo mais viável. Seu couro era bastante valorizado e, à primeira vista, não parecia ser uma ameaça tão grande. O verdadeiro desafio estava em sua velocidade, eram ágeis como o vento. Ainda assim, o risco parecia aceitável. Já as criaturas do extremo norte ofereciam recompensas valiosas, verdadeiras fortunas… mas enfrentá-las exigiria um grupo grande, dias de preparo e, mesmo assim, a chance de voltar vivo seria mínima. 

    Ulrich me entregou um mapa menor, com marcações detalhadas das áreas e das criaturas que ali viviam. Explicou que, bem ao sul, quase um dia inteiro de viagem, havia um acampamento onde os caçadores se reuniam, servindo como um refúgio seguro. A melhor opção era seguir até lá, fazer um reconhecimento cuidadoso da área e traçar uma estratégia sólida antes de iniciar a caçada. 

    Assim, Clarice e eu deixamos a guilda. Ulrich sugeriu que eu deixasse o burro e a carroça com um amigo dele até a hora da partida. Como já estávamos abastecidos com suprimentos, não havia razão para esperar. Seguimos por um dos túneis que levava à superfície. Atravessamos o caminho entre outros caçadores, até que, após alguns minutos, uma tênue luz surgiu à frente, marcando o fim da escuridão. 

    Ao emergirmos, a vastidão dos campos se desdobrou diante de nós como um mar verde e ondulante. O vento soprava firme, fazendo as copas das árvores dançarem num ritmo ancestral, e o ar carregava o perfume fresco da vegetação. A paisagem, viva e diversa, revelava um ecossistema muito mais complexo do que qualquer coisa que havíamos visto antes. Era o cenário perfeito e implacável, para marcar o início do nosso primeiro dia como caçadores.

    Uma obra de: Matheus Andrade.

    Mapa do Mundo.

    Abra este link se quiser dar zoom: https://ibb.co/1fdX60sM

    A escala não é exata, já que fui eu quem fez e não sou bom nisso kkk. É apenas para termos uma ideia de onde estamos. Ele vai se revelando ao decorrer da história.

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