Katriel terminou de revistá-los e não notou nada que pudesse comprometê-los. Para ele, estavam apenas sujos. Com isso, Letícia os convidou a entrar de vez no colégio, mostrando como haviam estruturado o lugar. Também ofereceu algumas mudas de roupa para que pudessem tomar banho e se livrar do sangue impregnado.

    Algum tempo depois, já trocados, Bruno e Letícia estavam sentados na cantina. O silêncio parecia sufocar, como se as paredes estreitas e a luz fraca do ambiente aumentassem o peso do que estava por vir.

    — Pô, Letícia… muita coisa aconteceu — a voz de Bruno saiu densa, arrastada, carregada de dor. Ele desviou o olhar, como se temesse encarar de frente o próprio fardo. — Eu perdi todo mundo… minhas irmãs, meus primos, meus amigos… — fechou os punhos, trincando os dentes. — Todos foram estilhaçados. Eu mesmo tive que matar a minha própria mãe… e a Haissa…

    Ele respirou fundo, o ar pesado atravessando a garganta como se fosse um nó.

    — Eu não vou mentir pra você, minha amiga. Particularmente, eu não tenho a menor intenção de continuar vivendo. Algo se intensificou em mim… pra onde eu olho, só vejo morte. Quando eu olho pra você… ou pra qualquer um aqui… — sua voz baixou, quase um rosnado — sinto uma estranha vontade… de rasgar os corpos de vocês, de arrancar membro por membro. Minha mente… parece fragmentada. É como se houvesse outro eu dentro de mim, faminto, enlouquecido por sangue.

    O silêncio caiu como uma sentença. Letícia ficou imóvel, mas seus olhos o analisavam com atenção, como se tentassem decifrar cada palavra. Por dentro, um calafrio percorreu sua espinha. Ela ajeitou o corpo na cadeira, instintivamente se afastando alguns centímetros, sem querer demonstrar fraqueza.

    — Bruno… — ela disse num tom baixo, cauteloso, quase medindo cada sílaba — você sabe que tá me dizendo algo… que talvez eu não devesse ouvir, né?

    O olhar dela não era de medo puro, mas de alerta. Não era só amiga escutando o desabafo, era a sobrevivente avaliando se o garoto à sua frente ainda era confiável… ou se já era mais um perigo prestes a explodir.

    — Por que tá me dizendo isso? Eu não tô entendendo. — Letícia franziu a testa, confusa, sem saber aonde ele queria chegar.

    Bruno encarou os olhos dela como se buscasse uma âncora.
    — Se eu dormir essa noite… algo ruim pode acontecer comigo. E com vocês também. Esse outro eu é sádico, Letícia… e, aos poucos, sinto que ele tá retomando o controle. — a respiração dele tremeu, carregada de medo. — A última vez que eu fechei os olhos, ele me torturou com lembranças do passado… da época em que eu sofria bullying. Esse outro eu… odeia todos. E acredita ter criado algo muito pior há alguns dias. Ele deixou bem claro: vamos voltar a ser um só… quer eu queira ou não.

    Letícia piscou, como se tentasse processar, mas a descrença escorregava pelo rosto dela.
    — Cara… o que tu fumou? — soltou com um riso nervoso, sem conseguir levar aquilo a sério. — Olha, eu vou ali, tenho que cuidar da Amanda. Você tá cansado, Bruno. Passou por muita coisa… então, por hora, só descansa, tá bom? — disse tentando encerrar o assunto, a voz firme mas desconfortável. — E, sério, você tá precisando mesmo. Seus olhos tão fundos, como se não dormisse há dias.

    Ela se levantou da cadeira, ajeitando a roupa, já de costas para ele.

    — A-Amanda tá aqui?! — Bruno disparou, subitamente empolgado. — Fala da Amanda Victória?!

    O tom desesperado na voz dele fez Letícia parar por um instante. Ela respirou fundo antes de responder, ainda sem encará-lo.
    — Tá sim… mas você não vai poder ver ela. — disse fria, virando o rosto.

    A resposta caiu como uma lâmina no peito de Bruno. Aquela falta de explicação o incomodou, trazendo junto uma sensação ruim, quase instintiva… como se houvesse algo errado, escondido por trás das palavras dela.

    — O que aconteceu? Ela tá bem? — o rosto de Bruno endureceu, sério, a voz carregada de decisão. Ele queria uma resposta e não aceitaria rodeios.

    Hesitante, Letícia apenas murmurou: — Siga-me. — Sem dar mais explicações, virou-se e começou a andar. Bruno a seguiu em silêncio, os passos pesados ecoando pelos corredores.

    Íris, que os observava de longe, correu até eles, a respiração acelerada. — Aonde vocês tão indo? — perguntou, acompanhando a pressa deles até a antiga secretaria da escola.

    Quando chegaram à porta da sala da antiga diretora, Bruno parou e falou, firme, com um olhar sombrio:
    — Vim ver minha amiga. Quero saber se ela está bem.

    Letícia respirou fundo, como se carregasse um peso, e abriu a porta.

    O que revelaram lá dentro foi um choque. Íris reconheceu de imediato aqueles cabelos pretos, ondulados, quase cacheados. Os olhos dela se arregalaram.
    — Amanda! — exclamou, entrando como se fosse alguém insubstituível para ela.

    Mas a cena que encontraram era perturbadora. Amanda estava de pé, encarando o céu através do vidro da janela, mas sua boca entreaberta deixava escorrer baba como a de uma criança indefesa. Seu corpo parecia ali, mas a mente… não. Vegetativa, ausente, quebrada.

    Bruno entrou lentamente, os ombros tensos, o olhar mergulhando naquela visão com uma sombra cada vez mais densa.
    — Como você conhece ela? — perguntou, a voz baixa, quase arrastada, enquanto se aproximava.

    — Ela é minha prima… — Íris respondeu, mas a frase saiu entrecortada, como se algo a sufocasse.

    De repente, o ar na sala ficou pesado, denso, carregado com um cheiro salgado e metálico que lembrava sangue. Íris virou o rosto para Bruno — e seu coração disparou. Os olhos dele estavam mudando de cor, um brilho sombrio tomando conta, reflexo da fúria que transbordava. O ódio era quase palpável, e parecia que aquele “outro ele” que ele tanto temia estava prestes a se libertar.

    — Ela foi violentada, estuprada e espancada por um infectado logo no início… quando as coisas começaram a acontecer. — Letícia, do lado de fora da sala, falou sem rodeios, encarando as costas de Bruno.

    No momento em que aquelas palavras entraram em seus ouvidos, Bruno travou. Os músculos do corpo ficaram duros como pedra, os punhos cerrados tremiam. Pequenas veias negras começaram a surgir em volta de seus olhos, espalhando-se como raízes que corriam pela pele. O vermelho de sua íris queimava, latejando como brasas prestes a explodir.

    Íris viu aquilo se formando e sentiu o coração gelar. Ela tentou sinalizar discretamente, os olhos implorando para que ele se acalmasse. Mas Bruno parecia prestes a despencar para dentro de um abismo sem volta.

    Amanda, até então mergulhada no vazio, ergueu o olhar catatônico para ele. Bastou um segundo, um único reflexo do vermelho em seus olhos, para o instinto dela despertar em pânico. Os gritos irromperam violentos, atravessando a sala. Ela se encolheu contra a parede, se debatendo como um animal acuado, o rosto coberto de terror, a saliva escorrendo enquanto a garganta dela rasgava em desespero.

    — Sempre que ela vê um homem, acontece isso… — Letícia murmurou com pesar, a voz embargada. — Ela começa a gritar, como se qualquer um fosse atacá-la de novo. Isso a destruiu por dentro… — respirou fundo, prendendo as lágrimas, e então olhou firme para Bruno. — Já chega. Você precisa sair daqui. Eu vou ter que acalmar ela.

    Íris, com lágrimas brilhando nos olhos, se aproximou devagar. Encostou a cabeça contra o peito de Bruno e, num sussurro baixo, só para ele:
    — Fecha os olhos… abaixa a cabeça… e vem comigo. Sem chamar atenção.

    Os dois saíram da sala em silêncio, Bruno sem questionar nada, apenas obedecendo ao pedido de Íris. Ela passou o braço pelo pescoço dele, forçando-o a manter a cabeça baixa para que Letícia não visse os olhos vermelhos.
    Mas Letícia estava tão distraída, tão distante, presa ao sofrimento da amiga Amanda, que nem percebeu o esforço dos dois para esconder aquilo. Ficou ali, imóvel, como se tivesse sido engolida pelo peso da cena.

    Eles atravessaram o corredor sem levantar suspeitas até encontrarem uma sala vazia, onde puderam ficar sozinhos.

    — Me deixa ver seus olhos! — Íris pediu, segurando firme o queixo dele e erguendo sua cabeça.

    Bruno se deixou levar, sentando-se numa cadeira próxima à porta. Quando abriu os olhos, ainda estavam vermelhos, queimando de raiva contida.

    — Respira fundo e se acalma, ok? — Íris disse, num tom suave mas firme. — O que aconteceu com ela foi horrível, mas agora a gente pode protegê-la. Só me diz… por que você se importa tanto assim com a minha prima?

    Bruno abaixou a cabeça, o olhar distante, como se cavasse fundo dentro de si antes de falar:

    — Teve uma época em que ninguém chegava perto de mim. Faziam bullying… me empurravam nos corredores, riam quando eu caía, cuspiram em mim mais de uma vez. Falavam que eu fedia, que minha mãe era drogada, que eu tinha piolho e vivia sempre sujo. Ninguém queria sentar perto de mim. Eu era aquele cara que todo mundo apontava e ria, mas ninguém estendia a mão.
    Nessa época, a única coisa que me restava era ficar quieto num canto, invisível, rabiscando meus desenhos como se fosse a única forma de existir. Eu não tinha nada… e nem vontade de ter. Porque, mesmo que eu lutasse pra conquistar alguma coisa, eu sabia que não ia durar. Minha mãe sempre ia vender tudo por droga.
    Poucos me trataram como gente… e, entre esses poucos, estava a sua prima. Ela não foi só uma amiga, Íris. Ela foi como uma irmã. Assim como a Letícia, o Marlon, o Isac, o Giovanne, a Katriel e a Kezia. Eu tenho carinho e respeito por esses infelizes… e eu juro, sem pensar duas vezes: eu mataria qualquer um que tentasse ferir eles.

    — Mas que infância ruim… eu não faço ideia de como seria pra mim ter que passar por isso. — Íris falou, o olhar cuidadoso cheio de preocupação. — Mas ainda assim você precisa se acalmar, ou eles vão perceber a cor dos seus olhos e daí vai dar merda pra gente, entende?

    Bruno levou a mão à cabeça, apertando a têmpora como se quisesse esmagar o próprio cérebro. A dor latejava, cortante, como se martelassem dentro de seu crânio. O dia começava a escurecer, e o barulho de sobreviventes chegando à escola só aumentava o nó em seu estômago.

    Enquanto caminhava, flashes surgiam em sua mente — lembranças da infância sendo esmigalhadas, risadas cruéis, tapas e empurrões, cada insulto soando como uma lâmina em seu ouvido. Entre esses fragmentos, a voz dele, outra e sádica, sussurrava com ódio: “Você não é nada… vai ceder, vai perder o controle…”

    Íris percebeu seu corpo tremer e seus olhos se arregalarem, tentando sinalizar para que ele se acalmasse, mas cada passo parecia uma luta contra si mesmo. Ele colocou a cabeça para fora da sala, e a dor explodiu.

    Reconheceu imediatamente algumas pessoas da sua infância. O mundo parecia girar, cada rosto desencadeando memórias de humilhações e injustiças.

    — Lid…ya! — Gritou o nome antes que pudesse se conter, a dor aumentando, obrigando-o a se agachar, cobrindo os olhos com o braço. Os flashes vinham rápido demais, a voz do outro eu gritando junto, misturando ódio e sangue, como se quisesse tomar o comando de seu corpo e de sua mente.

    — Mas que merda é essa? — murmurou, tentando, sem sucesso, não deixar o grito escapar, enquanto a raiva e o caos interno se misturavam à dor que latejava em suas têmporas.

    — Deixa eu ver seus olhos — disse Íris, colocando a mão no rosto dele e afastando a mão que ele usava para se proteger.

    O que ela viu fez seu peito gelar. Os olhos dele não estavam apenas vermelhos; lágrimas de sangue escorriam pelos cantos, e veias negras emergiam como raízes retorcidas, espalhando-se pelo rosto dele, como se o próprio ódio e dor tivessem ganhado forma física. Antes que pudesse reagir, Bruno agarrou o braço de Íris com força quase sobrenatural. Seus músculos estavam tensos, a respiração pesada e irregular. Em um impulso desesperado, como se não conseguisse mais controlar o monstro dentro de si, ele a mordeu — com tanta força que o som do impacto ecoou pela sala.

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