Índice de Capítulo

    Depois que Samira saiu ele desferiu um soco violento contra a parede. Com a cabeça baixa, um sorriso maníaco começou a se formar em seus lábios. Era como se a raiva, a angústia e a dor fossem, ao mesmo tempo, um veneno e um alívio perverso. Aquilo o consumia e o satisfazia de forma assustadora.

    Cerca de uma hora depois…

    Bruno desceu as escadas do escritório e, com a voz firme, chamou a atenção de todos que estavam no mercado:

    — Escutem aqui, pessoal. Hoje vamos descansar e esfriar a cabeça, mas amanhã… amanhã a gente vai começar a planejar tudo. Porque o mundo que a gente conhecia acabou, e o que restou é só quem tá aqui agora. — Ele fez uma pausa, observando os olhares tensos ao seu redor, antes de continuar: — Vou ser franco com vocês: pelo que eu vi lá fora, acho que todos os adultos foram infectados e se transformaram naquelas coisas. Quem era menor e estava perto deles… bom, ou foi devorado ou mordido e infectado. Então, hoje vocês podem tirar o dia pra sofrer o luto que quiserem. Chorem, gritem, façam o que precisar. Mas amanhã cedo, a gente vai se organizar. Porque só assim vamos sobreviver.

    O silêncio tomou conta do ambiente. Daniel foi o único que ousou quebrá-lo:

    — Ô, Zé, não viaja, não. De onde você tirou essa ideia?

    Bruno o encarou de lado. Seu olhar era gélido, vazio, sem expressão. Com uma voz direta, respondeu:

    — Tirei isso da pilha de corpos que eu tive que fazer pra chegar até aqui.

    As palavras de Bruno caíram como um peso esmagador sobre o grupo. Ninguém mais ousou contestá-lo. Em vez disso, as pessoas se dispersaram pelo mercado, buscando algo para fazer, qualquer coisa que as distraísse da dor e da realidade que acabavam de ouvir. Alguns choraram em silêncio, outros não conseguiram conter o desespero e soluçaram alto. A noite foi longa, e muitos não conseguiram pregar os olhos.

    Bruno, por sua vez, isolou-se no escritório. Passou a noite inteira em frente a um espelho, encarando seu próprio reflexo com ódio. A raiva queimava dentro dele, alimentada pela culpa insuportável de ter sido o responsável pela morte de sua mãe e de sua irmã. Por horas, ele foi consumido pelo turbilhão de emoções sombrias, até que o amanhecer começou a despontar no horizonte.

    Quando o sol finalmente nasceu, Bruno estava completamente exausto. Era a segunda noite seguida sem dormir. Por volta das 7h30 da manhã, ele estava sentado em uma cadeira, imóvel, olhando para o vazio. Sua mente repetia, como um mantra torturante: Por que eu não consigo sentir mais nada? Parece que eu tô morto por dentro. Ele não conseguia sorrir, chorar, nem sequer demonstrar qualquer expressão. Seu rosto pálido parecia o de um cadáver.

    Enquanto isso, lá embaixo, o grupo começava a se levantar, conforme Bruno havia ordenado na noite anterior. Mas como ele não descia do escritório, Alonso levantou a questão:

    — Será que ele ainda tá dormindo lá em cima?

    Guilherme, já impaciente, respondeu:

    — Vou lá acordar ele. E, se ele estiver dormindo mesmo, vou jogar água na cara dele!

    Antes que pudesse agir, Samira interveio:

    — Se eu fosse você, não faria isso. Se ele estiver dormindo e você acordar ele desse jeito, ele vai bater em você.

    Guilherme, confiante e desdenhoso, rebateu:

    — Bravo é o caralho. Ele que mandou todo mundo levantar cedo. Agora que não desça pra você ver!

    Pedro entrou na conversa, concordando com Guilherme:

    — É isso aí, Gui. Bora acordar aquele Zé Ruela. Quero só ver ele falar alguma coisa. Se falar, eu quebro ele.

    Os dois subiram as escadas determinados. Mas, ao se aproximarem da porta do escritório, foram interrompidos por um som estranho. Era uma risada baixa, entrecortada, mas com um tom maníaco que fez um arrepio subir pela espinha de ambos.

    ***

    Diante do espelho do banheiro que ficava no escritório, Bruno encarava seu reflexo com olhos que pareciam pertencer a outra pessoa. Ele fazia expressões demoníacas, testando os limites do que via, enquanto uma risada baixa e perturbadora escapava de seus lábios. Já que não sentia mais nada, ele queria ver até onde aquilo iria — até onde ele precisaria ir, até quantas vidas teria que tirar, para descobrir se ainda era capaz de sentir alguma coisa.

    O rosto refletido no espelho parecia o de um estranho. Ele se inclinou para mais perto, analisando cada detalhe, como se procurasse algo que pudesse confirmar quem ele era de verdade. Um sorriso frio e desprovido de emoção tomou conta de sua boca, e seu olhar vazio parecia engolir qualquer resquício de humanidade que ainda restasse.

    Era estranho, quase fascinante, o que estava acontecendo consigo mesmo. Ele não sabia dizer se estava quebrado ou se finalmente havia se libertado de tudo que o prendia. Mas, enquanto continuava a se encarar, um pensamento se formou e escapou em um sussurro dirigido ao reflexo:

    — Mas que fascinante… Por mais que eu repita as cenas de todas as pessoas que matei na minha cabeça, eu ainda assim não consigo sentir nada.

    Bruno sorriu de canto, como se tivesse descoberto uma piada que apenas ele entendia. O homem no espelho não era mais ele — era algo mais frio, mais cruel, mais livre.

    ***

    Guilherme subia as escadas do escritório onde Bruno estava, movendo-se com uma lentidão desleixada. Conforme se aproximava da porta, ele começou a ouvir risadas estranhas, cortadas por pausas abruptas, como se fossem uma mistura de desespero e loucura. Ele parou por um momento, a mão segurando o corrimão, e virou-se para Pedro com um sorriso torto. O efeito da Askov Blueberry, que ele vinha bebendo desde cedo, fazia suas palavras saírem mais arrastadas:
    — Vish, PH… o cara tá loucão, véi!

    Pedro deu uma tragada longa no baseado que ainda segurava entre os dedos, soltando a fumaça pelo nariz enquanto ria baixo. Ele também estava tentando fugir da realidade da noite anterior, mas a maconha era apenas um paliativo fraco contra as imagens que martelavam sua cabeça. Mesmo assim, ele lançou um olhar divertido para a porta do escritório e respondeu:
    — De rocha, ele tá rachando lá dentro. Aí, Gui… será que o zé tá com um beck doido lá dentro?

    Guilherme deu três batidas firmes na porta, chamando:
    — Aê, Bruno, cola aí, zé!

    Por um momento, o silêncio caiu, mas logo a porta se abriu devagar. Bruno estava do outro lado, os olhos vermelhos como brasas, o rosto pálido e marcado pela exaustão. Ele parecia estar em um lugar distante, além daquele mercado, além daquela realidade. Guilherme e Pedro pararam de rir por um instante, surpresos pelo estado dele, mas Pedro não se conteve por muito tempo. Ainda tentando mascarar seu desconforto com humor, ele perguntou com um sorriso meio nervoso:
    — Carai, viado… o que cê fumou, zé?

    Bruno não respondeu de imediato. Apenas encarou Pedro com um olhar vazio, mas que carregava algo sombrio, algo que fazia os risos anteriores parecerem ridículos. Sua voz, quando finalmente saiu, soava baixa e carregada de um peso que nenhum dos dois irmãos esperava:
    — Nada…

    O tom de Bruno era tão direto e gélido que fez o sorriso de Pedro desaparecer instantaneamente. Guilherme coçou a nuca, desconfortável, mas não disse nada.

    Sentindo uma enorme desconexão com a realidade, mesmo com Pedro e Guilherme bem na sua frente, Bruno mal processou o que os primos haviam dito. Intrigado com a sensação de vazio que o envolvia, ele murmurou para si mesmo, em voz baixa:
    — Tá com a peste… que porra é essa?

    Mas Pedro e Guilherme, no auge de sua zombaria, não perceberam o que se passava com Bruno. Para eles, o primo parecia completamente chapado, talvez por ter fumado maconha a noite inteira. Ignorando a ausência de qualquer cheiro de erva ou álcool vindo dele, Pedro riu e comentou com o irmão:
    — Alá, Gui, o cara tá no grau!

    Guilherme, segurando o riso, respondeu com sarcasmo:
    — De rocha, véi! Ei, Bruno, cê tem que dividir essa erva da boa aí com nóis também, carai!

    Bruno levantou os olhos, sem esconder sua insatisfação. O olhar que lançou para os dois foi frio e carregado de um desprezo que deixou Pedro desconfortável por um momento. Ainda assim, Guilherme tentou amenizar a situação:
    — Ô, zé… é zueira, carai. Bora lá, o pessoal já tá te esperando faz é tempo!

    Sem sair pela porta, Bruno lançou um olhar rápido para o grupo reunido lá embaixo e, com um tom seco, respondeu:
    — É… vamos lá, né.

    Quando desceu as escadas, cada passo parecia mais pesado. Ao se aproximar do restante do grupo, os olhares se voltaram para ele. As olheiras profundas, quase negras, entregavam as duas noites em claro. Seu tom de voz estava baixo, rouco, e o olhar distante e vazio carregava algo que ninguém conseguia descrever.

    Mas ninguém comentou nada. Eles também estavam dilacerados pelas perdas recentes, e aquele silêncio era uma tentativa desesperada de não trazer à tona uma dor ainda maior.

    Reidner, com os braços cruzados, quebrou o gelo, aproximando-se de Bruno. Ele olhou diretamente para os olhos cansados do amigo, que mal se mantinham abertos, e perguntou com uma mistura de preocupação e ironia:
    — E aí, Las Vegas? Qual vai ser o rolê de hoje, meu mano? E só pra garantir… cê tem certeza de que tá em condições de tentar alguma coisa hoje?

    Antes que Bruno pudesse responder, Alicia, que estava encostada num dos carrinhos de compras, ergueu uma sobrancelha. Ela não conseguiu segurar a curiosidade e interrompeu, com um tom intrigado:
    — Reidner, por que cê tá chamando ele de “Las Vegas”? Que apelido estranho, hein…

    Alonso, que estava do outro lado, soltou uma risada abafada, como quem já conhecia a história e achava graça no absurdo dela. Ele cruzou os braços e provocou:
    — Vai lá, Reidner… explica pra gente.

    Enquanto isso, Bruno manteve-se imóvel, encarando Reidner. Seu olhar era o mesmo de antes: frio, vazio, como se a mente dele estivesse a quilômetros dali, perdida em algum lugar que ninguém mais podia alcançar. Naquele momento, Bruno parecia não fazer parte daquela conversa, nem daquele lugar. Era como se ele já estivesse em outro mundo, separado dos outros pelo peso que carregava.

    Reidner não percebeu o peso da situação. Assim como os outros, ele ainda não tinha notado o quanto as coisas estavam prestes a piorar e quão profunda era a mudança que estava acontecendo com Bruno. Achando graça no momento e aproveitando que o clima parecia mais leve, ele decidiu ignorar o comportamento estranho do amigo e começou a contar a história:
    — Nó, Zé, essa é braba demais! O lance é que, quando ele era mais novo, ficava andando num skate de duas rodas… Na terra, véi! O cara queria andar de skate na terra, mano. E, porra, a única referência que eu tinha pra zoar ele era de um maluco de uma série que eu assistia. O cara tinha o apelido de Las Vegas… Ele era muito louco, zuado mesmo, vivia viajando na maionese. Ah, e eu não sei se o Alonso lembra disso, mas uma vez, lá em casa, o Bruno comentou que não tinha apelido e ainda me desafiou a inventar um pra ele…

    A maioria ali começou a rir, enquanto Bruno, imóvel, assistia a tudo sem expressar emoção alguma. Mas, em resposta à história, ele soltou, com a voz fria:
    — Nó, Reidner, ocê é um arrombado, véi…

    Guilherme, ainda fora de si pelo álcool, ria tanto que chegou a empurrar o braço de Bruno, dizendo:
    — Nó, que braba, Zé!

    Mas, naquele instante, algo dentro de Bruno se quebrou. Uma fúria avassaladora tomou conta dele, desproporcional ao momento. Seu rosto se contorceu, as veias do pescoço pulsaram, e, de repente, ele explodiu:
    — Ô, caralho, vai tomar no meio do olho do seu cu, desgraça! Porra, vão se foder, carai! Mas que merda! É pra ter foco aqui no bagulho, vê se para com essas merdas de risadinhas pra lá e pra cá! Escutem o que eu tenho pra dizer, filhos da puta!

    O impacto de suas palavras caiu como um soco no ar. Todos pararam. Alonso, que segurava o riso por respeito, forçou um tom sério e disse:
    — Fala aí, Bruno.

    Ainda assim, Bruno parecia à beira de um colapso. Ele sentiu uma tontura súbita, intensa, como se suas forças estivessem sendo drenadas. Mas ele se recusava a demonstrar qualquer sinal de fraqueza. Firmou-se, cerrando os punhos e mantendo uma postura rígida.

    Depois de alguns segundos de silêncio absoluto, Bruno finalmente começou:
    — Beleza, o lance é o seguinte: precisamos nos organizar. E, pra isso, precisamos de um líder.

    Os olhares, antes descontraídos, agora estavam fixos nele, atentos.

    — O ideal é termos um grupo de busca. Quem estiver nesse grupo vai ser obrigado a se especializar em sobreviver lá fora. Vai ter que aprender técnicas de resgate caso precise salvar alguém. E antes que perguntem, a hora de fazer isso é agora, enquanto ainda temos luz e internet funcionando, entenderam?

    Ele respirou fundo, lutando contra a exaustão, mas sua voz não vacilou.

    — Outra coisa: precisamos de gente pra cuidar dos mantimentos. E mais alguém pra fazer a fiscalização do local onde estamos. Rondas diárias, sem falha. Todo dia, precisamos ter certeza de que esse lugar ainda é seguro. Isso aqui não é brincadeira, moro?

    Os rostos ao redor se fecharam, processando o peso das palavras de Bruno. O clima leve e as piadas desapareceram completamente.

    Camille cruzou os braços, observando Bruno com olhos analíticos. Por fora, parecia uma jovem normal, mas sua mente estava a mil. Gostou da ideia de organização, mas o comportamento instável e o olhar vazio de Bruno a preocupavam. Ele era inteligente e, apesar da aparência desgastada, ainda conseguia ter a atenção de todos. E isso o tornava perigoso.

    “Se ele assumir a liderança, não vai demorar até que comece a abusar disso”, pensou.

    Ela sabia que o grupo provavelmente aceitaria Bruno como líder sem questionar, afinal, ele tinha feito muito para mantê-los vivos até ali. Mas isso era exatamente o que a inquietava. Camille decidiu que precisava agir antes que fosse tarde demais.

    Seu plano começou a se formar em sua mente: usar o próprio ego de Bruno contra ele. Era evidente que ele odiava obrigar alguém a seguir suas ordens sem um motivo convincente, mas sua vaidade? Essa era uma fraqueza que ela podia explorar.

    Com um sorriso quase despretensioso, ela lançou a isca:
    — Deixa eu adivinhar… e o líder seria você, né? O melhor de todos aqui, certo?

    A provocação fez Bruno erguer o queixo, como se já esperasse essa pergunta. Ele acreditava firmemente que ninguém ali tinha feito mais por eles do que ele próprio. Sua vaidade, sempre à espreita, inflamou-se diante da chance de reafirmar sua importância. Com um tom de voz seguro, quase arrogante, ele respondeu:
    — Mas é claro! Porque se estamos todos seguros aqui, é com toda a certeza do mundo que eu falo: é porque eu sou foda!

    Ele deu um passo à frente, olhando diretamente para Camille, como se desafiasse qualquer um a contestar suas palavras.
    — De forma direta ou indireta, EU GUIEI A TODOS ATÉ CHEGAR AQUI! Então, lógico que eu sou o melhor de todos para essa função.

    Camille manteve o sorriso, mas por dentro sentiu uma pontada de triunfo. Ele havia mordido a isca, exatamente como ela planejou. Sua reação exagerada seria a primeira faísca para plantar dúvidas nos outros.

    Ela disfarçou seu desdém e respondeu com calma, medindo cada palavra:
    — Ah, claro… Com certeza. Só espero que todos concordem com isso tão facilmente quanto você acredita. Afinal, confiança e liderança precisam ser conquistadas, não só declaradas, né?

    Bruno estreitou os olhos, sentindo algo nas palavras dela que ele não conseguia identificar de imediato. Mas, em vez de reagir, se manteve calado. Camille havia jogado sua peça no tabuleiro. Agora era questão de tempo até que os outros começassem a questionar o papel de Bruno e, com sorte, impedir que ele consolidasse o poder de forma absoluta.

     Camille sorriu de canto, satisfeita ao ver que sua provocação havia surtido efeito. Ela percebeu rapidamente pelas expressões ao redor que Bruno acabara de comprometer suas chances de liderança. Cada risada, cada olhar de deboche, era mais uma vitória para o plano que ela vinha articulando.

    — Pois é, né… — comentou Camille com ironia afiada. — Perto de você, a humildade passa longe, hein?

    Edvaldo não perdeu a oportunidade e soltou uma risada alta, seguido de uma piada que atingiu Bruno em cheio:
    — Ocê é doido, zé! Eu não quero como líder um cara que anda de skate na terra! — Ele gargalhou, e os outros começaram a rir junto, o som ecoando no ambiente e deixando claro que Bruno não tinha a aprovação do grupo.

    A cada risada, a expressão de Bruno se tornava mais fechada. Seus punhos se apertaram, o maxilar travou, e ele parecia prestes a explodir.

    Camille aproveitou a deixa, rindo junto com os outros. Entre risadas, ela disparou:
    — Só faz discurso de ego e ódio… Como é mesmo que você diz? Ah, sim. Falta humildade, meu querido. Talvez também um pouquinho de amor pelas pessoas ao seu redor… e, claro, uma boa dose de parafusos nessa sua cabecinha oca.

    O golpe foi certeiro. Bruno ergueu o olhar, os olhos carregados de fúria. Mas ele não perdeu a oportunidade de rebater. Com um sorriso ácido, ele provocou:
    — Beleza, neguinha, se você quer tanto assim o meu amor, é só ajoelhar ou ficar de quatro que eu te encho do meu melhor. O mais puro e belo amor branco.

    O tom, cheio de sarcasmo e veneno, fez todos prenderem a respiração por um momento. Gabriel Francisco, com os olhos arregalados e sem conseguir segurar o riso, foi o primeiro a quebrar o silêncio:
    — Caraaaí, véi! Ô loco, bicho! Tá bravo mesmo, hein? — Ele ria tanto que quase perdia o fôlego.

    Camille, no entanto, não se intimidou. Com a mesma confiança de antes, ela rebateu:
    — Cê nem tem, Bruno. Vai fazer o quê com algo inexistente?

    A sala explodiu em gargalhadas. Guilherme, sempre disposto a jogar lenha na fogueira, riu alto enquanto tirava mais sarro:
    — Cole, ô pinto inexistente! Hahaha!

    Bruno perdeu o controle. A raiva fervilhava como lava prestes a explodir. Ele gritou, a voz rouca e carregada de fúria:
    — É, seus baitolas! Vocês tão é com o Patati Patatá enfiado no meio do olho do cu, né?

    O silêncio momentâneo que se seguiu foi interrompido pelo som pesado de sua respiração. Ele os encarou, um por um, antes de soltar em tom definitivo:
    — Beleza, façam como quiserem. Mas lembrem-se disso quando tudo der errado. Vai todo mundo se foder nessa porra! Vão tomar no cu!

    Daniel, com o sorriso de quem só quer ver o circo pegar fogo, soltou:
    — Alá, ele ficou bravinho… Só porque não tem pinto! Olha só, galera!

    Bruno, vermelho de raiva, sentia o sangue fervendo por ter perdido a chance de liderar o grupo. Antes de sair, parou no meio da roda, com um olhar que parecia atravessar cada um ali. Com a mão no meio das pernas, ele provocou:
    — Bravinho, né? Arrombado do caralho. Querem comprovar essa teoria? Então pega no meu saco, seus otários. Assim, vocês terão certeza! Só não se assustem com a minha imensa anaconda.

    O grupo prendeu a respiração por um momento, mas Camille, como sempre, não deixou barato. Com a voz carregada de ironia, respondeu:
    — É assim que eu te derroto, Bruno. Mostrando pra todo mundo que você não serve pra ser líder. Beijinhos, otário.

    Bruno riu com escárnio, dando um passo à frente:
    — Cuidado, Camille. Não vai se assustar pra não mijar na roupa, hein?

    A frase foi um golpe certeiro. Camille cerrou os dentes e tentou manter a compostura, mas uma veia pulsante surgiu em sua testa, denunciando a raiva que ela sentia. Enquanto isso, Daniel e Edvaldo, sempre prontos para tumultuar, começaram a pesar ainda mais na cabeça dela com comentários baixos e risadas.

    Alicia, que observava de longe, viu Bruno subindo as escadas rumo ao escritório, sua fúria claramente estampada em cada movimento brusco. Reidner, percebendo a oportunidade, tentou apaziguar a situação, mas com um objetivo claro de tomar o controle do grupo. Usando seu carisma, ele falou:
    — Ó, gente, beleza que estamos zoando e tal… mas a questão é que o que ele falou faz sentido. Agora, como vamos resolver isso?

    Daniel olhou para os outros, levantando as mãos como quem se exime da responsabilidade:
    — Eu não sei vocês, mas eu não tenho cabeça pra liderar ninguém.

    Reidner então virou-se para João, que estava isolado em um canto, quieto demais para não ser notado. Ele perguntou:
    — E você, Jão? Tá aí todo deprê. O que acha?

    João Paulo levantou os olhos, mas não disse nada. Apenas se virou e saiu andando em silêncio. Sua mente estava presa em um ciclo de tormento, incapaz de escapar das lembranças do que havia feito com a irmã. Ele não conseguia parar de se perguntar se no momento em que ele certou a faca nela, ela já estaria infectada ou não.

    Em passos lentos, João foi até a área onde havia uma geladeira cheia de bebidas. Abriu a porta com uma força desnecessária e pegou uma Skol Beats e uma Askov limão. Sem dizer uma palavra, ele subiu até o escritório, onde sabia que encontraria Bruno. João sentia uma necessidade desesperada de desabafar, e sabia que só conseguiria colocar tudo para fora se bebesse na companhia do amigo.

    ***

    Entrando no escritório, Bruno desabou no chão, as duas mãos pressionando a cabeça como se quisesse conter uma explosão interna. Lágrimas escorriam, mas ao enxugá-las com o dorso da mão, ele congelou ao ver o líquido rubro. Sangue. Não era suor, não era choro comum, era sangue quente que manchava seu rosto e pingava no chão.

    Uma dor insuportável queimava em sua mente, uma chama pulsante que parecia querer rasgar seu crânio de dentro para fora. Ele queria gritar, mas o som simplesmente não saía. No auge do tormento, algo dentro dele quebrou. Sentiu algo na boca e, ao cuspir, pedaços sólidos bateram no chão com um som seco. Dentes?

    O pânico tomou conta. Ele se levantou num salto e correu para o banheiro, as pernas trôpegas, quase tropeçando em si mesmo.

    Diante do espelho, abriu a boca com uma mistura de medo e urgência. Seus dentes estavam todos lá, cada um ensanguentado, como se tivessem sido mergulhados em carne crua. O alívio inicial por estarem inteiros foi esmagado ao perceber que algo estava errado. Alguns deles estavam maiores, pontiagudos, como presas afiadas prestes a rasgar carne.

    — Que porra é essa…? — murmurou, a voz tremendo tanto quanto suas mãos.

    Voltou ao escritório, tentando se convencer de que estava alucinando. Mas o chão estava lá, salpicado de sangue e com pedaços que ainda pareciam dentes espalhados. Bruno engoliu em seco, a boca amarga de medo. Voltou ao espelho, como se precisasse confirmar algo, e foi então que o golpe final o atingiu.

    O reflexo no espelho era ele. Mas não era.

    O corpo era o mesmo, mas os olhos que o encaravam não eram seus. Íris vermelhas como brasas brilhavam com uma intensidade animalesca, carregando algo obscuro, um ódio palpável que parecia atravessar o vidro e se enroscar em sua alma. Era como se o espelho mostrasse uma versão de si mesmo que ele não conhecia — ou talvez que sempre esteve lá, esperando para sair.

    Ele se inclinou mais, analisando os detalhes. A figura suja e o cabelo, antes cacheado, seco e endurecido pelo sangue, agora estava molhado e perfeitamente penteado para trás, com um brilho sobrenatural e a pele limpa como se tivesse acabado de sair do banho. Essa versão dele era… impecável, poderosa, quase magnética.

    Bruno riu nervoso, um som quebrado e irregular. Seus olhos brilhavam, ora de medo, ora de fascinação, enquanto encarava aquela figura que parecia irradiar tudo o que ele queria ser.

    — Filho da puta… Olha esses olhos. Esse cabelo. Você é tudo que eu queria ser… Um cara que mete medo só de olhar. Porra, tô me cagando só de te encarar, tesudo…

    A risada escapou de novo, agora mais controlada, como se estivesse tentando mascarar o pavor crescente. Ele encostou a mão no espelho, os olhos fixos naquele reflexo que não era apenas um reflexo, mas uma promessa, um aviso, uma sombra do que estava por vir.

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