Capítulo 12 – Alfa de Sangue
No dia seguinte, após a discussão na cantina, Bruno já acumulava duas noites sem dormir. O corpo pesava, os olhos ardiam, e enquanto atravessava o pátio bocejando, uma fisgada latejante explodiu em sua cabeça. O mundo à sua volta tremeu, a visão turvou como se alguém tivesse puxado um pano diante de seus olhos, e lembranças que não eram dele invadiram sua mente como uma enxurrada de vidro quebrado.
De repente, ele estava dentro de uma loja de roupas abandonada. O ar ali era abafado e úmido, impregnado pelo cheiro metálico de sangue seco misturado ao mofo das peças largadas nos cabides, algumas ainda pingando em tons escuros. O silêncio era opressor, quebrado apenas pelo arrastar lento de garras contra o chão.
No meio do salão, um círculo de infectados mutantes de olhos vermelhos o encarava. Cada um deles era um pesadelo único — um tinha a pele esticada ao ponto de rasgar, outro possuía a coluna curvada com ossos saltando como lâminas das costas, e um terceiro respirava de forma ofegante por buracos no rosto, como se lhe faltasse carne para sustentar a forma.
No centro, o líder. Um homem de estatura normal, envolto em um sobretudo preto com capuz. Na mão esquerda, segurava um livro sujo de sangue, e da direita o sangue escorria como de uma torneira mal fechada, pingando no chão e marcando um ritmo mórbido.
Um mutante esquelético, de braços e pernas desproporcionais e garras que quase arrastavam no chão, puxava uma criança de uns nove anos. Os olhos dela estavam marejados, e o choro fino ecoava como uma faca atravessando o silêncio.
O líder agarrou a menina pelo cabelo, erguendo-a até ficar frente a frente com ele. Sem hesitar, mordeu seu pescoço e arrancou um pedaço de carne, sugando o sangue com um prazer monstruoso. O corpo da criança estremeceu, e então foi largado no chão como um boneco quebrado.
Mas ele não parou ali. Cortou o próprio pulso com uma calma quase ritualística e deixou que seu sangue escorresse, gota por gota, sobre a ferida aberta no pescoço dela. Os outros mutantes urraram em uníssono, num coro grave e sombrio, como se presenciassem um batismo profano.
Bruno quase caiu de joelhos na vida real, com as mãos trêmulas e o estômago revirado. O gosto do sangue queimava em sua boca mesmo sem tê-lo provado, e uma parte dele — a mais sombria — sussurrava que aquilo não era repulsa… era fome
A garotinha abriu os olhos. Vermelhos, intensos, iguais aos de Bruno… e aos daqueles monstros que a rodeavam. O brilho era tão familiar que parecia um espelho torto, refletindo o que ele mais temia ver em si mesmo.
Então, do nada, a criatura encapuzada levantou o rosto. Os olhos vermelhos se cravaram direto nele. Bruno congelou. Não era possível que pudesse vê-lo — ele não estava realmente ali. Mas aquele olhar o atravessou como uma lâmina, como se dissesse: “Eu sei quem você é. E sei o que você vai ser.”
Ele voltou a si com um pulo, arfando como se tivesse sido arrancado de um pesadelo sufocante. O coração disparava no peito, o suor frio escorria pela nuca e uma única certeza queimava em sua mente:
— Eu preciso me preparar… não posso continuar fraco assim!
Mas os dias seguintes o desmentiram. Três longos dias em que Bruno se afastou de todos, transformando-se em um fantasma dentro da própria escola. Não treinou, não buscou força, não fez nada do que havia jurado a si mesmo. O que o dominava não era disciplina, era fome.
Comia o que encontrava, mas nada saciava. Pelo contrário: quanto mais engolia, mais sentia a boca salivar, mais o cheiro de sangue queimava nas narinas, mais distante da humanidade ele ficava. E, no fundo, sabia o que seu corpo queria de verdade.
Seus olhos estavam fundos, escuros, com veias vermelhas pulsando em volta. As pálpebras pesavam, brigando para se fechar, mas cada vez que cedia, voltavam as visões — a garotinha, os monstros, o sangue. Ele já não sabia se ainda estava acordado ou se parte dele havia ficado presa lá.
Íris observava tudo de longe. O Bruno que ela conhecia estava sumindo dia após dia, se enterrando no próprio silêncio, empurrando todos para longe. Tentou se aproximar discretamente, arriscar algumas palavras, mas ele rejeitava qualquer contato. Três dias sem abrir brecha, três dias em que ele era apenas uma sombra que respirava.
— Bruno! — a voz melosa de Lidya cortou o ar. Ela se jogou no colo de Cristian, rebolando como se estivesse num palco e cravando os olhos nele. — Olha bem… isso aqui é o que você nunca vai ter. — E, sem pudor, beijou Cristian na frente dele, lenta e provocativa.
Bruno apenas levantou-se da cadeira. O sorriso que abriu era torto, quase insano, carregado de um desprezo que queimava mais que raiva.
— Que nojo… ainda bem que não. Tu deve tá com mo bafo de pica… sua puta do caralho. — E saiu dali com aquele riso psicótico que deixou o ambiente inteiro gelado.
Na sala ao lado, pegou o violão como quem se agarra a um pedaço de si mesmo que ainda restava. Passou os dedos pelas cordas sem tocar nada, só sentindo o silêncio. Foi quando Íris entrou.
— Posso tocar pra você? — ela estendeu a mão. O olhar dela não tinha julgamento, só cuidado.
Bruno hesitou, mas entregou o violão, recostando-se na cadeira.
— Vou tocar, mas quero pedir uma única coisa em troca… — disse ela, afinando as cordas com calma, como se cada nota fosse uma forma de aliviar o peso dele.
Ele a encarou desconfiado, cruzando os braços. — O que você quer?
— Quero que, enquanto eu tocar, você feche os olhos e relaxe. Só isso. — o tom dela era firme, mas cheio de ternura. — Você precisa dormir, Bruno. Dá pra ver que tá no limite… Me diz, por que tem tanto medo de dormir?
Ele respirou fundo, como se aquilo lhe custasse um esforço físico, mas respondeu:
— Sempre que fecho os olhos sou torturado por mim mesmo. Tudo o que tive que fazer de ruim volta pra me assombrar… e esse outro disse que eu não vou poder voltar mais.
— Vai dar tudo certo. Minha música vai te acalmar, e nada vai te atrapalhar de descansar, acredita. — Íris pousou a mão no ombro dele, carinhosa e firme.
Ele não disse nada. Deu uma chance — por ela sempre ter cuidado dele, por estar ali nos piores momentos.
Íris começou a tocar. Cantou com uma voz suave, quase um sussurro, aquela música que os dois conheciam e amavam: Carry On Wayward Son, do Kansas — a versão que ouvia sempre na série Supernatural. A afinação dela era limpa, a voz tão macia que uma lágrima escapou dos olhos de Bruno, pouco antes do sono finalmente vencê-lo.
— Finalmente… — murmurou ela, aliviada, apoiando o violão na parede. — Eu já não tava mais aguentando ver ele daquele jeito.
No mesmo instante, Lidya e Cristian reapareceram na sala. — Gente, a gente precisa sair pra buscar umas coisas. — falaram.
— Vamos só nós, tá? — Íris respondeu baixinho, virando-se pra eles com cuidado. — O Bruno acabou de dormir.
Lidya aproximou-se dele, com aquele sorriso debochado.
— Não importa. — e, sem hesitar, acertou-lhe um tapa estalado na cara.
O som ecoou pelo lugar, mas antes que ela pudesse se gabar, um estouro seco reverberou do outro lado: a mão de Íris atravessou o ar e acertou Lidya com força, virando-lhe o rosto.
— Eu te falei pra não encostar nele! — gritou Íris, enfiando o dedo na cara dela, os olhos faiscando. — Tenta de novo e eu juro que limpo o chão com a sua cara, sua filha da puta!
O clima pesou como chumbo. Cristian, parado atrás, nem respirava. Era como se uma tempestade estivesse prestes a cair ali dentro.
Bruno, no entanto, não disse uma palavra. Só ergueu o rosto lentamente. Seus olhos, vermelhos de ódio, queimavam como brasas. O silêncio dele era mais ameaçador que qualquer grito.
— Vamos logo, então. — murmurou, a voz baixa e grave, levantando-se da cadeira.
Os quatro saíram juntos. O caminho seguiu em silêncio absoluto, uma hora de passos arrastados, cada um carregando o peso de não suportar o outro. O vento assobiava entre as ruas desertas, e nem os pássaros ousavam quebrar o silêncio.
De repente, o estampido.
Bruno se sobressaltou, o coração disparando, e quando virou o rosto, viu Íris desmoronando ao lado dele. Um buraco aberto na cabeça dela cuspia sangue quente pelo asfalto. Os olhos dela, que antes o encaravam cheios de força, agora estavam vazios, quebrados para sempre.
Ele mal conseguiu respirar. Quando ergueu o olhar, viu Cristian com um revólver fumegante apontado direto para ele.
— Você… — Bruno sussurrou, mas não terminou.
Um impacto o atingiu por trás. A dor explodiu na sua cabeça e o mundo escureceu. Lidya, com um martelo ainda erguido, sorria satisfeita.
Quando Bruno voltou a si, estava amarrado a uma cadeira, o corpo pesado e dolorido. O ambiente era sufocante, uma casa mergulhada em escuridão, iluminada apenas por velas. Na sua frente, um grupo de estranhos o observava em silêncio.
Uma mulher avançou, com olhos duros e um sorriso que parecia conhecer todos os seus segredos.
— Meu nome é Ivana… — ela se inclinou, aproximando os lábios do ouvido dele — e finalmente encontrei meu Alfa de Sangue. Ou, como alguns já sussurram por aí… o Olhos Vermelhos.
Bruno mal ouvia as vozes ao redor. Tudo que existia em sua mente era Íris caída no chão, o sangue espalhando-se pelo chão frio como se cada gota queimasse sua visão. Seu coração martelava, cada batida ecoando no peito como se fosse um tambor de guerra, e suas mãos tremiam, suadas, crispadas contra as cordas que o prendiam.
— Quem diria que era você o tempo todo… — cortou uma voz gelada.
Do meio da sala, surgiu um rapaz albino, cabelos brancos caindo sobre o rosto pálido, olhos brancos opacos como vidro quebrado. Um sorriso torto se abriu em seus lábios, calculado e frio. — Foi fácil demais te derrubar daquela outra vez. — Ele deu um passo, os dedos coçando levemente o ar, como se brincasse com o perigo. — Na verdade, acho que devo agradecer… foi graças ao seu sangue, misturado ao daquela ruiva, que consegui voltar parcialmente à forma humana.
Bruno engoliu em seco. Reconheceu imediatamente o mutante que os havia caçado antes, e um arrepio percorreu sua espinha, fazendo cada músculo se tensionar como se já antecipasse a luta.
Antes que pudesse reagir, Ivana se aproximou. O chão rangeu sob os passos dela, cada eco cortando a tensão da sala. Sem aviso, sentou-se no colo dele, mãos frias agarrando seu rosto, cravando os dedos como garras enquanto erguia suas pálpebras, forçando-o a encarar o mundo.
Os olhos de Bruno brilharam em vermelho intenso, a pupila dilatada refletindo o sangue espalhado pelo chão, e pequenas veias negras surgiram em seu rosto como raízes sombrias. A raiva e o medo se misturavam, um coquetel brutal que ameaçava fazê-lo perder completamente o controle.
— Finalmente… — sussurrou Ivana, o sorriso se estendendo demais, quase animal, enquanto inclinava a cabeça para observá-lo. — É você que eu quero!
O riso dela ecoou, alto e macabro, vibrando pela sala, misturando-se com o som do coração de Bruno, que pulsava cada vez mais rápido. Ele queria gritar, queria se soltar, mas sabia que qualquer movimento errado poderia significar morte. Cada fibra do seu corpo gritava por ação, mas o cérebro lhe dizia para esperar, observar e controlar a sede de sangue que ameaçava explodir.
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