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    Sentada no banco do carro, com o olhar perdido pela janela, Ingrid ainda sentia o peso da despedida dos amigos na Santa Matilde. Depois de tantos dias longe, não sabia exatamente o que esperar ao voltar para casa — mas seu peito parecia encolher a cada quilômetro rodado, como se algo ruim estivesse à espera na chegada.

    Conforme avançavam pela BR-040, Davi dirigia em silêncio, observando os inúmeros acidentes espalhados pela rodovia. Carros amassados, corpos estirados, infectados vivos presos nos bancos. O mundo tinha virado um inferno a céu aberto.

    — Ingrid… olha isso. Me diz se essa merda toda não tá igualzinho The Walking Dead — disse ele, com os olhos na estrada, tentando quebrar o clima pesado.

    — Verdade… — respondeu ela, pegando uma garrafa de água. — Mas me diz: por que você não ficou em Lafaiete com a Rafaela? Você tá na dela e nem tenta esconder.

    — O lance é que, depois que você encontrar sua prima e tudo estiver bem, eu volto. Não vai ser o fim do mundo que vai me impedir de conquistar aquela mulher — falou com aquele sorrisinho metido de sempre, como se nem o apocalipse pudesse abalar seu ego.

    Eles se aproximavam do pedágio, onde vários carros estavam espalhados e infectados andavam entre eles. Assim que ouviram o barulho do motor, os zumbis começaram a gritar e correr na direção do carro onde Ingrid e Davi estavam.

    — ESSA NÃO… VAMOS SAIR FORA, ANDA, RÁPIDO, DAVI! — gritou Ingrid, desesperada ao ver a horda vindo em direção a eles.

    — Droga… droga… droga! — repetia Davi, os olhos arregalados, enquanto girava o volante com força. O carro derrapou na pista e ele acelerou de volta em direção a Lafaiete, fugindo da massa de corpos que avançava enlouquecida.

    Quando finalmente desapareceram do campo de visão dos infectados, os dois respiraram fundo, quase ao mesmo tempo.

    Ingrid quebrou o silêncio:

    — Podemos evitar o pedágio passando pela roça. Entra na estrada de terra à esquerda, ali perto do radar. Assim a gente evita os infectados e chega com mais segurança em Cristiano Otoni.

    — Ok — respondeu Davi, fazendo uma curva acentuada à esquerda, confiando no conselho dela.

    Seguindo pela estrada de terra, o cenário mudou completamente. Quase tudo que haviam vivido até ali parecia irreal diante daquela paz inesperada. O céu limpo, o som do motor se misturando com o canto dos pássaros, os pastos verdes, as plantações bem cuidadas… como se a natureza ainda estivesse de pé, indiferente ao colapso do mundo dos homens. Por um momento, Davi se pegou pensando em conversar com os colegas da Santa Matilde sobre se mudarem pra ali. Talvez fosse mais seguro cuidar das plantações, viver em meio à roça, longe do risco de morrer a cada esquina.

    — Do jeito que as coisas estão acontecendo rápido demais… eu não sei se vou conseguir me adaptar. Ou sobreviver por muito tempo… — murmurou Ingrid, melancólica, olhando a paisagem pela janela. — Espero que você esteja bem, Vivi… porque se eu te perder também, não vai sobrar mais nada.

    — Não fica assim… vai ficar tudo bem. — disse Davi, tentando confortá-la, embora também estivesse engolindo o próprio medo, consciente de que aquele mundo novo estava ruindo num ritmo cada vez mais acelerado.

    Pouco tempo depois, eles chegaram à entrada da cidade. Tudo parecia morto — não havia viva alma por ali. E por mais que fosse uma cidade pequena, sempre se via alguém andando pela rua, algum barulho, um carro, um cachorro. Mas agora… o silêncio era tão profundo que doía nos ouvidos. O que mais incomodava não era nem a ausência de pessoas, mas os rastros: marcas de sangue secas nas paredes, nas portas das casas e das lojas, respingos escuros como se a cidade tivesse sido esfaqueada e deixada ali pra morrer.

    — Não confia nesse silêncio, Davi… Parece deserto, né? Mas é aí que eles aparecem. Do nada. Do jeito que tá, acho melhor não ficarmos rodando por aqui com o carro fazendo esse barulhão — disse Ingrid, olhando em volta com atenção. Sua voz era baixa, quase um sussurro, mas carregava tensão.

    Davi assentiu em silêncio e desligou o carro. Ingrid pegou a mochila e um pedaço fino de moerão que ela havia separado em Lafaiete — seria sua arma, caso precisasse se defender. Davi já segurava um facão velho, enferrujado, a lâmina gasta tremendo levemente em sua mão suada.

    — Aonde vamos primeiro? — ele perguntou, mantendo o tom baixo, enquanto sentia o suor frio escorrendo pelas costas apesar do sol quente que batia forte.

    — Vamos pra casa da minha prima, ver se a gente encontra ela por lá — respondeu Ingrid, dando o primeiro passo. Os dois se afastaram com cuidado do carro que ficou parado bem no meio da rua, como uma isca.

    Pra não serem pegos de surpresa e terem tempo de reagir a qualquer ataque, decidiram andar sempre pelo meio da rua — longe das calçadas e das portas.

    Rua após rua, crescia aquela sensação ruim de que a cidade tinha morrido. O sangue espalhado pelas esquinas, as janelas fechadas, os portões abertos… e o silêncio. Nem um latido. Nem o miado de um gato. Nem o ronco de uma moto ao longe. Antes era comum ver cachorros andando de um lado pro outro por ali, mas agora… nada.

    Era como se até os animais tivessem abandonado aquele lugar.

    Para Davi, aquilo tudo era como ser um pequeno animal indefeso caminhando em território de onças-pintadas, cercado de predadores à espreita, só esperando o momento certo pra atacar. Cada som, cada sombra, parecia um aviso silencioso. E mesmo assim, ele seguia adiante, bancando o corajoso, como um ator fingindo diante de uma plateia invisível — só que, lá no fundo, sabia que podia morrer ali mesmo. Mas jamais diria algo para Ingrid. Ele queria ser o homem ali, aquele em quem ela pudesse confiar caso desse merda. Ainda mais sendo o mais velho entre os dois. Não aceitava a ideia de parecer um covarde medroso — então engolia seco toda aquela angústia que borbulhava por dentro.

    O cheiro azedo de lixo podre misturava-se ao odor metálico do sangue ressecado, espalhado pelo asfalto quente. O ar estava denso, abafado, quase irrespirável, enquanto um som cortava o silêncio ensurdecedor do lugar. Veio da parte de trás de uma grande lixeira, em frente a um lote vago. Era como se algo estivesse revirando o lixo.

    Os dois congelaram. A tensão era tanta que seguravam suas armas com toda a força que tinham, os corpos rígidos, pesados. Respirar já parecia um desafio.

    Davi fez um sinal com a mão para que Ingrid ficasse onde estava. Ele mesmo se aproximaria da lixeira com o máximo de cuidado, cada passo mais silencioso que o anterior. Quando chegou perto, espiou por cima: algumas sacolas de lixo estavam rasgadas, e, por entre elas, viu apenas ratos fuçando.

    Aliviado, encostou a mão na lixeira e soltou o ar com força. Um sorriso até apareceu no rosto, quase bobo de tão aliviado.

    — Tá tranquilo… são só ratos mexendo no lixo — disse ele, ainda com um riso nervoso na voz.

    Mas o alívio durou pouco.

    Um grito horripilante rasgou o ar, vindo de uma esquina do outro lado da rua. O som foi tão alto e brutal que parecia fazer o chão tremer. No mesmo instante em que Davi virou o rosto, assustado com o barulho, um infectado saltou como um bicho enjaulado faminto, os olhos injetados, a pele rasgada nas bochechas. Antes que ele pudesse reagir, os dentes da criatura se cravaram como ganchos no pescoço dele, e o som do rasgo de carne foi tão real que Ingrid achou que fosse o próprio peito dela sendo dilacerado.

    Ela gritou, mas o som morreu antes de sair direito. Os olhos dela estavam arregalados, fixos, sem piscar. O mundo ao redor virou um zumbido abafado, como se estivesse dentro de um aquário. Quis gritar de novo, mas a voz simplesmente não saiu. As pernas? Nem sabia se ainda se moviam.

    E como se o inferno tivesse sido despertado, infectados começaram a surgir de todos os lados, correndo em sua direção.

    Ela estava presa, paralisada pela morte.

    Até que, de repente, uma mão firme como ferro quente agarrou a dela. Uma mulher — surgida do nada como um raio em céu nublado. Sem dizer uma palavra, puxou Ingrid pela mão e saiu correndo, os passos firmes, determinados, como alguém que já tinha fugido da morte muitas vezes.

    Ingrid só teve tempo de olhar para as costas da mulher que a salvava. O coque improvisado no cabelo, os braços fortes, ágeis… E, claro, a certeza de que era a primeira adulta viva que ela via desde o colapso viral.

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