Capítulo 22 – Expansão
Dia do caos — minutos antes do início do pânico geral
Escola Estadual Dr. Antero Chaves
Bairro Amaro Ribeiro, Conselheiro Lafaiete
O bairro Amaro Ribeiro faz divisa com o bairro Paulo VI, onde, futuramente, surgiria a comunidade da Cohab, fundada por Alonso Reidner e João Paulo. No entanto, no Amaro Ribeiro, as coisas tomaram um rumo diferente. Em vários lugares, grupos começaram a se formar, dando origem a comunidades territorialistas, que logo entrariam em guerra entre si pela disputa de recursos. Não era apenas uma luta por comida e abrigo, mas também por mão de obra escrava e poderio militar.
Os mantimentos que restavam tinham prazo de validade. Os enlatados resistiriam por algum tempo, mas os perecíveis logo apodreceriam. Não demoraria para que a sobrevivência dependesse unicamente do que a primeira geração de sobreviventes fosse capaz de produzir, e isso significava sangue, suor e morte.
Mas foi aqui que tudo começou a escalar de forma exponencial.
Na Escola Estadual Dr. Antero Chaves, a tarde transcorria sem grandes novidades. O pátio estava cheio, o palco montado para uma apresentação aberta ao público. Alunos passavam ansiosos pelos corredores, alguns animados, outros indiferentes.
Enquanto isso, em uma sala vazia nos fundos do prédio, Lídia e Lucas estavam aos beijos, as respirações aceleradas, os corpos colados. No cômodo ao lado, Marlon e Ana Luísa faziam o mesmo, aproveitando os minutos que tinham antes de precisarem voltar à normalidade.
Do lado de fora, Vinícius, Vivian e Geovane montavam guarda, vigiando a porta para evitar que algum professor pegasse os amigos no flagra. Riam baixinho, trocando piadas sujas sobre os casais escondidos.
Na quadra da escola, um cenário completamente diferente se desenrolava. Amanda Vitória e Letícia estavam sentadas nos degraus próximos ao alambrado. Letícia chorava, o rosto afundado nas mãos. Tinha terminado com Geovane naquela manhã, depois de descobrir que ele a traía. A traição não era um rumor vago — ela mesma tinha visto as mensagens no celular dele. E agora, tudo que restava era o gosto amargo da decepção.
Amanda, sem saber como consolar a amiga, passou a mão suavemente pelas costas dela e disse:
— Fica assim não, miga. Por que você não coloca na cabeça que foi melhor assim? Você sabe que ele não te merece, né? Ele é um puta vacilão!
Letícia ergueu o rosto, os olhos vermelhos e inchados.
— O problema é que eu amo ele, Amanda… Não tô acreditando que fez isso comigo. Eu fazia de tudo por aquele cara…
Amanda suspirou, sentindo um nó na garganta. Já não sabia mais o que dizer. Então, apenas a abraçou, tentando transmitir algum conforto.
— Eu sei que tá doendo, mas, mais cedo ou mais tarde, vai passar. Você ainda vai conhecer outra pessoa. Você ainda tá melhor que eu, que nunca nem namorei. Eu só me machuco antes mesmo de conseguir dar um beijinho, se quer. — Disse, forçando um sorriso, tentando aliviar o clima.
Letícia soltou um riso fraco, mas antes que pudesse responder, um grito cortou o ar.
Foi um único grito, estridente e desesperado, vindo do corredor principal.
Depois, outro.
E então vários, em uma sinfonia horrível de pânico e horror.
As duas se entreolharam, congeladas, antes que um estrondo ecoasse pelo pátio. O som de vidro se estilhaçando. Um impacto surdo contra o chão.
O grito de uma mulher se elevou acima de todos os outros, seguido por um rugido gutural, inumano.
O caos havia chegado.
No prédio da escola, alunos corriam em desespero, trombando uns nos outros, derrubando cadeiras e mochilas pelo caminho. O sangue começou a se espalhar rápido, pintando as paredes e o piso. Pessoas se transformavam em questão de segundos, lançando-se sobre qualquer um que estivesse por perto, como se a fome tivesse consumido tudo o que restava delas.
***
Na entrada de Ouro Branco, a imensa usina metalúrgica dominava a paisagem, operando dia e noite com seus fornos incandescentes e tanques de gás em constante reposição. Mas quando o vírus começou a se espalhar pelo ar, não houve tempo para evacuação. Em poucas horas, todos os trabalhadores foram contaminados, transformando o coração industrial da cidade em um cemitério de aço e corpos cambaleantes.
Sem operadores para monitorar os sistemas, as pressões internas dos tanques aumentaram perigosamente. O gás acumulado nos dutos, sem controle, gerou uma sobrecarga devastadora. Cada setor crítico da usina se tornou uma bomba-relógio, prestes a detonar. No quinto dia desde o início da pandemia, a tragédia atingiu seu ápice.
A explosão foi avassaladora. O impacto foi sentido a dezenas de quilômetros, um rugido ensurdecedor que se espalhou como um trovão furioso. Ouro Branco foi quase varrida do mapa—prédios desmoronaram como castelos de cartas, ruas se tornaram crateras em chamas, e os poucos sobreviventes foram lançados para um inferno de destroços e fogo. O céu escureceu com a fuligem e os destroços da usina, enquanto a terra tremia sob a força da detonação.
Conselheiro Lafaiete, a cidade vizinha, não escapou do desastre. A onda de choque varreu bairros inteiros, destruindo quase metade da cidade. O ar se encheu com o cheiro de metal queimado, concreto partido e carne carbonizada. Casas foram reduzidas a escombros, veículos retorcidos forravam as ruas como esqueletos de um mundo que se despedaçava.
Milhares de pessoas — infectadas e não infectadas — foram aniquiladas em segundos. O que restou da usina era apenas um colosso retorcido de aço derretido e fumaça negra. Ouro Branco e boa parte de Conselheiro Lafaiete haviam se tornado um marco do apocalipse, um lembrete de que o próprio mundo estava ruindo junto com a civilização.
***
No início de tudo, um pequeno número de pessoas conseguiu sobreviver aos ataques dos infectados. Esses sobreviventes, desesperados para se manter vivos, fizeram de tudo para garantir sua própria sobrevivência. No meio do caos e da paranoia crescente, começaram a se encontrar, formando grupos que, com o tempo, se expandiram até se tornarem pequenas sociedades independentes.
Essas sociedades passaram a territorializar os bairros de origem como se fossem seus próprios domínios, garantindo o controle sobre os recursos de fácil acesso. Em meio ao colapso das leis e da ordem, a cidade de Conselheiro Lafaiete se fragmentou em diversos grupos rivais, com cada bairro estabelecendo suas próprias regras. O passado de brigas e disputas entre certas regiões ressurgiu com força, mas dessa vez, sem qualquer limite imposto por um governo. Sem nenhum aviso prévio ou regra geral, algumas dessas comunidades passaram a escravizar forasteiros, transformando a sobrevivência em um jogo brutal de domínio e submissão.
Ainda assim, algumas antigas alianças entre bairros resistiram ao apocalipse. O Bairro Amaro Ribeiro e o Paulo VI, por exemplo, eram conhecidos como bairros-irmãos. O Paulo VI, cenário principal dessa nova era de caos, já carregava uma fama sombria antes da pandemia—era um dos bairros mais temidos da cidade, um território onde poucos ousavam pisar. Seu maior rival sempre foi o JK, que, no quinto dia após o início da crise, sofreu fortemente com a gigantesca explosão vinda de Congonhas e Ouro Branco.
Quatro dias antes dessa explosão catastrófica, o JK já havia consolidado seu poder. Diferente de outros bairros que se fragmentaram por conflitos internos, no JK todos eram unidos o suficiente para se organizarem rapidamente. Foi assim que Leonardo e Donizetti se tornaram as figuras centrais do lugar. Comandavam de forma unânime, sem contestação. Nos primeiros três dias do caos, eles tinham um único objetivo: reunir o máximo de sobreviventes possível para se estabelecerem como a resistência mais poderosa da cidade. E conseguiram. Em pouco tempo, cerca de 100 pessoas já estavam sob sua liderança.
Os rádios comunicadores foram fundamentais para a expansão do JK. Através deles, conseguiram mapear rapidamente o território e planejar rotas seguras para locomoção. Suas principais armas eram facões—fáceis de encontrar, letais a curta distância e silenciosos o suficiente para evitar chamar mais infectados. Mas nem todos confiavam nessa escolha.
Após reunirem um grande número de sobreviventes, Leonardo e Donizetti lideraram a migração do grupo para o condomínio Granja das Hortênsias. A promessa era de um refúgio seguro, um lugar mais isolado onde poderiam se estabelecer sem a ameaça constante dos infectados. Mas conquistar esse território custaria caro.
O condomínio estava infestado. A batalha para limpá-lo foi brutal, uma carnificina sem trégua. Os infectados avançavam em ondas, e cada metro conquistado vinha com um preço alto. Facões se cravavam em crânios, corpos eram despedaçados, mas a horda parecia interminável. A luta se estendeu por horas, talvez dias, em um cenário onde a exaustão e o desespero pesavam tanto quanto o sangue que empapava o chão.
Dos 100 sobreviventes que partiram, apenas 30 resistiram à carnificina. O Granja das Hortênsias agora era deles, mas ao custo de amigos, aliados e qualquer ilusão de que aquilo seria fácil.
***
Quando o caos começou, Amanda e Letícia mal tiveram tempo de entender o que estava acontecendo. O barulho ensurdecedor dos gritos e dos golpes ecoava pela quadra. Assustadas, elas se levantaram num impulso e saíram correndo. Ao chegarem ao pátio, congelaram diante da cena aterradora que se desenrolava ali.
Era um massacre.
Alunos, professores, funcionários—ninguém parecia a salvo. Pessoas se matavam como animais selvagens, os corpos se acumulando no chão enquanto o cheiro de sangue fresco impregnava o ar. O terror tomou conta das duas, que correram em desespero, buscando qualquer canto onde pudessem se esconder daquele pesadelo vivo.
Um dos portões da escola estava escancarado, deixado assim por causa de um evento que acontecia mais cedo. Isso facilitou a fuga dos alunos que ainda não haviam sido infectados, mas também permitiu que o massacre se espalhasse para as ruas. O horror já não estava mais contido.
No andar de cima, Vinícius fazia guarda em uma das portas quando os primeiros gritos chegaram até ele. Curioso, abriu a porta e olhou para dentro da sala, onde alguns alunos estavam se pegando às escondidas.
— É treta, é treta lá embaixo! — gritou, empolgado com a ideia de ver uma briga.
Kézia, que estava perto, arregalou os olhos, animada. Os gritos de desespero não lhe pareceram nada além de mais um tumulto típico de escola.
— Sério? — perguntou, quase rindo, ansiosa para ver a confusão.
Marlon foi o primeiro a sair da sala e olhar para baixo. Mas, ao invés de uma briga, o que ele viu fez seu estômago revirar.
O pátio estava banhado em sangue. Pessoas se matavam como se tivessem enlouquecido de uma hora para outra, rasgando, mordendo e dilacerando qualquer um que estivesse por perto. O chão era um tapete de corpos, e os menores eram os que mais caíam. Crianças que não tinham nem 10 anos eram despedaçadas sem piedade, seus gritos logo silenciados pela brutalidade dos ataques.
Marlon ficou imóvel por um segundo, o horror estampado em seu rosto. Mas então um pensamento tomou conta dele: Lelék!
Ele girou nos calcanhares e disparou escada abaixo, desesperado para encontrar seu irmão mais novo. Os outros demoraram a reagir, mas quando olharam para baixo, entenderam que aquilo não era uma simples briga. Era algo muito pior. A empolgação sumiu dos rostos. O que restou foi pânico.
Tomados pelo choque, correram atrás de Marlon, descendo apressados. Quando chegaram ao térreo, perceberam que a escola já não estava tão cheia. Muitos haviam fugido pelo portão, levando consigo a carnificina para além dos muros da escola. O silêncio era quase absoluto agora, quebrado apenas pelo som do sangue escorrendo e do farfalhar dos corpos empilhados pelo chão.
E então perceberam.
Ali, cercados por cadáveres, eles eram os únicos ainda vivos.
O pátio da escola parecia um campo de guerra. O sangue formava poças espessas no chão, misturando-se à poeira e aos cacos de vidro das janelas quebradas. Corpos pequenos estavam espalhados por toda parte, alguns retorcidos em ângulos impossíveis, outros irreconhecíveis depois de serem pisoteados por uma multidão em desespero. A maioria havia sido rasgada, mastigada até os ossos, mas muitos morreram sem nem ao menos serem tocados pelos infectados, esmagados sob os pés daqueles que só queriam escapar.
Lucas sempre gostou de se manter informado. Assim como Bruno e Íris, ele passava horas consumindo notícias, investigando cada nova teoria sobre aquele surto bizarro que já vinha aterrorizando o mundo virtual. Agora, vendo a cena diante de si, sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Os olhos frenéticos escanearam os rostos retorcidos dos infectados, comparando mentalmente com as imagens que já circulavam nas redes sociais semanas antes. A pele amarelada, as feridas necrosadas, os olhos opacos e sem alma… Tudo se encaixava.
Lucas sentiu a boca secar enquanto murmurava:
— Merda… com essa aparência horrorosa, tenho quase certeza de que isso é o CWD…
Ana Maria, que estava ao seu lado, franziu a testa. O pânico estampado em seu rosto mostrava que não fazia ideia do que ele estava falando.
— CW o quê?
Mas Lucas não respondeu. O terror tomou conta dele, e, num rompante, ele se virou para os outros e berrou com toda a força de seus pulmões:
— Fodeu, galera, todo mundo se escondendo agora!
Ele não esperou para ver quem o seguiria. Seus pés já estavam se movendo antes que qualquer um pudesse reagir. Subiu as escadas em disparada, os sapatos resvalando nos degraus cobertos de sangue. Ao encontrar uma sala vazia, escancarou a porta, entrou de uma vez e a trancou atrás de si. Ana Maria veio logo atrás, arfando de medo, os olhos arregalados.
No andar de baixo, os outros ainda estavam tentando entender o que estava acontecendo. Alguns olhavam para os lados sem saber para onde correr, enquanto outros tentavam puxar Marlon para um canto seguro. Mas ele não se moveu.
Seus olhos estavam fixos no portão da escola.
Do lado de fora, no meio da confusão, Lelék.
O irmão mais novo de Marlon estava cercado por dois infectados. O garoto não devia ter mais que nove anos. Suas pernas finas tremiam, os braços se debatiam inutilmente contra as criaturas que o atacavam. Um deles já havia cravado os dentes em seu ombro, o sangue escorrendo quente pelo uniforme da escola. O outro avançava, as mãos sujas tentando agarrá-lo.
Marlon sentiu algo quebrar dentro dele.
— Lelék!
O grito saiu de sua garganta rasgado, desesperado. Sem pensar em nada além de salvar o irmão, ele disparou na direção do portão. Seu corpo agiu por puro instinto. O primeiro infectado tombou para trás com um chute violento na cabeça, caindo sobre os corpos empilhados no chão. O segundo tentou agarrá-lo, mas Marlon conseguiu desviar, sentindo a mão fria da criatura roçar de leve sua camisa.
Os segundos pareciam se arrastar. Seu peito subia e descia em respirações pesadas. Seus olhos se voltaram para Lelék, e foi nesse instante que tudo desmoronou.
O menino já não se debatia mais.
Seus olhos estavam vidrados, sem vida. A boca entreaberta não soltava mais nenhum som. O sangue continuava a escorrer, formando um rastro escuro no chão.
Marlon ficou parado, imóvel. O mundo ao seu redor pareceu se distorcer, as vozes, os gritos e os sons ficando abafados, distantes. Era como se estivesse afundando em uma bolha de silêncio sufocante.
Um barulho atrás dele o trouxe de volta à realidade.
Os infectados haviam escutado seu grito. E agora estavam vindo para cima dele.
Marlon recuou um passo, o corpo inteiro tremendo. O desespero se transformou em puro terror quando percebeu que não tinha tempo para lamentar. Se ficasse ali mais um segundo, acabaria do mesmo jeito que Lelék.
Virou-se e correu.
Descendo o morro da escola a toda velocidade, seus pés mal tocavam o chão. O vento cortava seu rosto, misturando-se às lágrimas que escorriam sem controle. O peito doía, não só pelo esforço da corrida, mas pelo buraco que parecia ter se aberto dentro dele.
Os infectados vinham atrás. Ele ouvia os grunhidos, os gemidos guturais, os passos arrastados se aproximando.
Mas ele não olhou para trás.
Porque sabia que não havia mais nada para ver.
Tudo o que restava agora era fugir. Fugir e carregar o peso da culpa para sempre.
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