Ainda dentro da escola, Amanda e Letícia se encolhiam no mato alto e descuidado que há tempos não era capinado. As folhas ásperas roçavam suas peles, e o cheiro de terra úmida misturava-se ao suor frio que escorria por seus rostos. Tremiam. Choravam em silêncio, deitadas no meio daquela vegetação sufocante. O mato era sua única proteção, mas logo começaria a pinicar suas pernas e braços. Pequeno preço a pagar para permanecerem invisíveis.

    Do lado de fora, o som de passos descontrolados e gritos se afastava. Marlon corria como um louco, soluçando de desespero, seus berros ecoando na rua enquanto os infectados o perseguiam sem hesitação.

    Amanda esperou até os últimos gritos sumirem no horizonte antes de, com cautela, erguer a cabeça. O pátio agora parecia vazio, os corpos espalhados pelo chão formando um cenário grotesco de morte. O cheiro de sangue e vísceras impregnava o ar.

    — Le… acho que a escola tá vazia. A gente devia dar uma olhada. O que você acha? — murmurou Amanda, mantendo a voz baixa para que apenas Letícia a ouvisse.

    Letícia, ainda agachada, apertou os olhos, hesitando por um instante antes de balançar a cabeça em concordância. Seu coração martelava no peito, cada batida tão forte que ela jurava que poderia ser ouvida pelos mortos ao redor.

    Elas avançaram com passos leves, calculados. Cada movimento parecia uma sentença de morte em potencial. Se pisassem em um corpo errado, se um infectado ainda estivesse vivo… A tensão era insuportável.

    O refeitório estava escuro, sombras alongadas projetando-se contra as paredes. Amanda entrou primeiro, vasculhando gavetas e armários até encontrar algumas facas de cozinha. Pegou duas e entregou uma para Letícia. Não eram as melhores armas, mas eram algo. Melhor do que estar indefesas.

    Depois, as duas começaram a circular pela escola. Conferiram cada sala do térreo, movendo-se como fantasmas entre os corredores tingidos de sangue. No primeiro andar, Letícia olhou para cima e viu, pelo vidro de uma sala no segundo andar, os rostos de Vivian e Lídia. As duas estavam ali, imóveis, observando tudo em silêncio, mas Letícia não disse nada. Apenas seguiu Amanda, seu foco em verificar se ainda restava algum perigo.

    Quando finalmente confirmaram que não havia mais infectados no pátio ou no primeiro andar, Amanda tomou uma decisão.

    — A gente devia trancar o portão. Ficar aqui pode ser mais seguro do que sair correndo pela cidade.

    Sua casa ficava no bairro Paulo VI, e ela tinha visto com os próprios olhos o que estava acontecendo lá fora. Pessoas enlouquecendo. Matando umas às outras. O caos não era exclusividade da escola.

    Convencida de que estavam sozinhas, Amanda se aproximou do portão principal. Caminhou de forma mais relaxada, confiando no silêncio ao seu redor. Então, sem hesitar, colocou o rosto para fora.

    E foi nesse momento que tudo deu errado.

    Ela foi agarrada por um infectado que estava atrás do portão, do lado de fora. Ele se comportava de uma forma bem diferente dos demais, não estando na escola antes. Estava apenas passando pelo local, tentando seguir os gritos de Marlon, que estavam distantes, e logo perdeu a voz de tanto gritar e correr. O infectado agarrou Amanda pelo cabelo, acertando um soco poderoso em seu rosto, a ponto de quebrar um de seus dentes laterais. Amanda gritou, e o infectado a jogou no chão com bastante força. Ela bateu com a cabeça nas pedras da rua. Letícia, ao verificar o portão, não estava perto dela, então ouviu o grito de Amanda.

    O infectado subiu em cima de Amanda e rasgou sua roupa pouco a pouco. Quanto mais ela reagia, mais ele a golpeava. Amanda não conseguia mais reagir, pois estava toda machucada e com o rosto ensanguentado. O infectado abriu suas pernas. Diferente de todos os infectados que apareceram até agora, ele começou a abusar dela de forma brutal e violenta. Enquanto forçava seu pênis contra a vagina virgem de Amanda, machucando-a bastante, ele também desferia golpes tão poderosos que fizeram com que Amanda desmaiasse. A faca de Amanda ficou jogada na frente do portão.

    Letícia chegou ao local e ficou horrorizada ao ver sua melhor amiga sendo violentamente atacada por um infectado. Ela entrou em estado de choque, e o infectado levou cerca de dois minutos para se satisfazer. Letícia se recompôs, e, quando a faca refletiu a luz do sol em seus olhos, ela a pegou e a cravou com força na nuca do infectado. A ponta da faca saiu pela boca dele, mas ele não parou ou se abalou até que Letícia o golpeasse novamente, desta vez no coração, o que fez com que o infectado caísse morto sobre Amanda. Ela tirou o infectado de cima de Amanda, que estava desmaiada no chão. Letícia a pegou pelo braço e a carregou para dentro da escola. Colocou-a sentada, encostada no muro e fechou o portão.

    Letícia, sem pensar duas vezes, corre até a beirada da janela de onde havia visto Lídia e os outros. Seus olhos, inchados de tanto chorar, brilham com uma mistura de raiva e desespero. Ela começa a gritar, a voz quebrada de tanto sofrimento.

    — Alguém, por favor! — ela grita, o som de sua voz ecoando pelos corredores vazios. “Ajudem, por favor!”

    O grito de Letícia reverbera na escola, chegando até os que ainda estão escondidos. Lucas, com os olhos fixos em Lídia, observa a amiga tentando juntar coragem para sair e ajudar. A tensão no ar é palpável.

    — Não dá pra saber quantos infectados tem lá embaixo… — Lucas fala, a voz vacilante, mas firme no aviso. — Se eu fosse você, não arriscava. Tô falando sério. Não sai daqui, Lídia.

    Lídia fica parada por um instante, hesitando. O medo parece paralisá-la por um momento, e o peso da decisão toma conta dela. Ela olha para Lucas, mas nenhum dos outros se move. Todos continuam ali, escondidos, respirando baixo como se a escola estivesse completamente vazia, como se o perigo tivesse ficado para trás.

    A porta da sala estremece quando Letícia chega lá, batendo com força, mais furiosa do que nunca. Sua respiração é ofegante, e seus punhos, apertados, tremem enquanto ela esmurra a porta.

    Saiam, seus covardes! — ela grita, a voz cravando o desespero em cada palavra. — Saiam daí, porra! Eu vi a Lídia olhando pela janela, caralho! A escola já tá vazia!

    Dentro da sala, Geovane se levanta, confiante na urgência das palavras de Letícia. Ele abre a porta, sem pensar, e leva um soco violento no nariz. A dor é imediata e aguda, mas ele não recua. O sangue começa a escorrer, mas ele não se importa.

    — Filhos da puta! Parem de se esconder, caralho! Eu preciso de ajuda lá embaixo!A Amanda foi atacada, violentada! — Letícia explode, a raiva misturada com o choro que sufoca sua voz, ela soluça entre as palavras.

    Lucas, com os olhos arregalados de preocupação, pergunta:

    — Mas… e os infectados? Lá embaixo… tem mais?

    Letícia, já quase sem forças, responde com a voz quebrada:

    — Não tem mais nenhum. Todos saíram pelo portão. Agora só sobraram os corpos espalhados pelo pátio.

    Vinícius, com o rosto tenso e a respiração pesada, se aproxima. Ele ergue a cabeça, como se estivesse se livrando de um peso, e sua voz sai firme, sem hesitação.

    — Vamos logo! Eu não sou covarde, não vou deixar minha amiga lá sozinha, nem com medo de descer lá pra ajudar ela!

    Ele começa a andar sem olhar para trás, e Letícia, sem pensar duas vezes, o segue. Geovane também vai, mas pega uma cadeira, carregando-a de forma quase instintiva, como se fosse sua única proteção.

    Os outros permanecem na sala, paralisados, o medo cortando o ar. O silêncio deles é pesado, as dúvidas os corroendo. Eles não sabem se devem ir ou ficar.

    Quando chegam até Amanda, desacordada e com o rosto irreconhecível, Vinícius e Geovane param por um segundo. O choque é visível em suas expressões, os olhos arregalados, o estômago revirando com o que veem. Amanda, a amiga deles, está quase irreconhecível, o estrago no rosto dela é terrível. Vinícius engole em seco, mas não hesita. Ele se abaixa, com os braços firmes, e começa a levantar Amanda, tentando manter a calma, embora seu corpo traia a tensão.

    — Me ajuda aqui, Juninho! — ele diz, a voz rouca, tentando esconder a agonia.

    Geovane se aproxima, a respiração pesada, e começa a ajudar. Eles a carregam, com o peso do momento pressionando cada passo, até a secretaria. Letícia os segue, sem soltar Amanda, suas mãos tremendo, mas firmes.

    Dentro da secretaria, Letícia vai até um armário no canto da sala e puxa dois colchonetes, colocando-os cuidadosamente no chão. Ela os ajeita com delicadeza, deitando Amanda sobre eles, sua expressão um misto de dor e desespero. Ela não para de olhar para a amiga, como se pudesse acordá-la apenas com o olhar.

    Geovane, com o cenho franzido, se aproxima, ainda preocupado.

    — Letícia… você fechou o portão? Mas, você conseguiu trancar com a chave? — pergunta, a ansiedade transparecendo em sua voz.

    Letícia acena com a cabeça, sem dizer uma palavra. Ela apenas continua ali, ao lado de Amanda, com as lágrimas escorrendo pelo osto. O som de seu choro se mistura com o silêncio pesado que paira na sala.

    Geovane, ainda desconfiado, olha para Vinícius.

    — Cara, vou lá trancar o portão. E você, o que vai fazer?

    Vinícius, com a expressão mais determinada, responde, já se virando para buscar algo no armário:

    — Vou dar uma olhada nas roupas dos achados e perdidos para a Amanda se trocar quando acordar.

    Letícia, com os olhos ainda cheios de lágrimas, olha para ele, a dor visível em cada centímetro de seu rosto. Ela respira fundo, tentando se acalmar.

    — Traz as roupas que eu mesma limpo e troco ela. — Ela diz, com um fio de voz, ainda soluçando.

    Os dois a encaram por um momento, os olhos se cruzam, mas ninguém diz mais nada. Em silêncio, eles saem pela porta, deixando Letícia ali, sozinha, com a amiga inconsciente.

    Seis dias depois…

    Durante esses seis dias, Letícia e Geovane se tornaram os pilares da liderança na escola. Geovane organizou um grupo de busca, encarregado de trazer os recursos essenciais para a sobrevivência, enquanto Letícia, ao lado das meninas, assumiu a responsabilidade de manter a organização dentro da escola, coordenando os esforços e garantindo que todos tivessem o que precisavam para seguir em frente.

    Quando a explosão aconteceu, a distância entre os locais foi grande o suficiente para que o impacto fosse mais sentido como um leve tremor no solo. No entanto, para aqueles que estavam sobrevivendo na escola estadual Dr. Antero Chaves, a onda de choque foi mais direta. Houve apenas uma rajada de vento forte, que fez as janelas tremerem, mas, por sorte, não causou danos sérios ou complicações na estrutura do prédio. Nem mesmo o colégio Paulo VI sofreu grandes prejuízos; os maiores danos foram concentrados no centro da cidade e nos bairros mais próximos de Ouro Branco.

    Após o impacto da explosão, o céu começou a mudar rapidamente. As nuvens se amontoaram no horizonte, e a calmaria foi substituída por um presságio de tempestade. Não demorou muito até que a chuva forte começasse a cair, batendo contra as paredes da escola, como se o clima quisesse refletir a tensão crescente dentro de cada um dos sobreviventes.

    Todos ali já haviam aceitado, de forma silenciosa e resignada, que a escola era agora o seu novo lar. Era um lar, sim, mas não um lar confortável. Havia a necessidade constante de manter aquele espaço limpo, seguro e minimamente funcional. Todos sabiam que a sobrevivência dependia da colaboração mútua, e a aceitação das responsabilidades individuais se tornava uma forma de manter a ordem em meio ao caos.

    Logo ao amanhecer, Geovane partiu em busca de suprimentos. Ele sabia que a situação estava ficando cada vez mais difícil, e a prioridade era garantir que houvesse roupas, colchões mais confortáveis e cobertores para todos. Com sua postura firme e determinado olhar, ele partiu sozinho, com a esperança de conseguir trazer o que fosse necessário para melhorar as condições da escola. Seus passos rápidos ecoavam pelos corredores vazios enquanto ele se afastava, sabendo que o risco lá fora não era nada comparado ao que ele enfrentava dentro de si, liderando aquele pequeno grupo de sobreviventes.

    Mas, quando Amanda acordou no dia seguinte, ela estava irreconhecível. O que antes era uma garota cheia de energia agora se transformara em alguém que parecia estar presa em um estado vegetativo. Seus olhos, sem vida, estavam vazios, como se algo dentro dela tivesse se quebrado irreparavelmente. Ela não falava uma palavra com ninguém. Seu rosto estava imóvel, sem um sorriso, sem um suspiro. Nem mesmo as lágrimas pareciam alcançar seus olhos, que estavam fixos em algum ponto distante, como se ela estivesse em algum lugar onde ninguém mais poderia chegar. Cada vez que um dos meninos se aproximava, ela se encolhia, um tremor incontrolável percorrendo seu corpo. Seu peito arfava com a respiração rápida, e um pânico visível tomava conta dela, como se a simples presença deles fosse algo insuportável.

    Por isso, os meninos se afastaram dela, evitando qualquer tipo de contato. Era uma situação delicada, e ninguém sabia como lidar com o trauma que ela carregava. Apenas Letícia e Ana se aproximavam, com um cuidado quase maternal, tratando-a com uma paciência que parecia não ter fim. As meninas a mantinham o tempo todo sob seus cuidados, alimentando-a à força, sem conseguir extrair uma palavra, um gesto, qualquer reação. Amanda parecia ser uma sombra de si mesma, alguém que, de alguma forma, havia se perdido para sempre. Letícia e Ana, com o coração apertado, se revezavam dia e noite, oferecendo comida com as mãos trêmulas, falando com ela como se fosse um bebê indefeso, tentando, sem sucesso, alcançar algo em seu interior que pudesse ser salvo.

    As meninas, então, assumiram as responsabilidades dentro da escola. Elas eram as guardiãs da ordem, as que mantinham tudo o mais organizado possível. Organizar os suprimentos, cuidar da horta que começava a florescer timidamente no pátio da escola, lavar as roupas, e manter o lugar limpo para garantir que a saúde de todos se mantivesse minimamente estável. Elas trabalhavam em silêncio, muitas vezes, com a mente vagando enquanto as mãos continuavam seu trabalho, como uma forma de se afastar do peso da situação.

    Enquanto isso, os garotos assumiram as tarefas mais duras e perigosas. Eram eles que enfrentavam o lado de fora, com todos os riscos e desafios que o mundo apocalíptico oferecia. Trabalhando no que restava da cidade, enfrentando o perigo constante e buscando formas de garantir a sobrevivência do grupo. Embora as tarefas fossem pesadas, havia algo quase instintivo naquele comportamento deles. Eles estavam ali para proteger, para fazer o trabalho sujo, sem hesitar, mesmo que o medo estivesse constantemente ao seu lado.

    Havia uma compreensão silenciosa entre eles, um pacto não dito sobre como sobreviver. Mas, por trás de cada tarefa cumprida, de cada sorriso que não surgiu, havia a consciência de que nada voltaria a ser como antes.

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