Capítulo 28 – Povo Maldito
Aghata e seu grupo finalmente chegaram ao bairro Santa Matilde após uma longa caminhada. O sol já se punha no horizonte, tingindo o céu de tons alaranjados e roxos. O cansaço era evidente nos rostos de alguns, mas ainda faltava cumprir a última exigência de Ivana. Suas palavras ecoavam na mente de todos:
“Vocês não têm uma data limite para voltar. Na mochila de vocês, tem suprimentos para sobreviver por alguns dias. Quero que tragam a situação atualizada das rotas e bairros em que passaram. Mas o principal que quero é mão de obra. A única desculpa que irei aceitar é que acharam uma comunidade que vale a pena dominar. Vocês estão saindo em um grande grupo, então não vou aceitar que voltem de mãos vazias!”
Não havia escolha. Eles precisavam de prisioneiros.
O grupo analisou a área. As ruas estavam tomadas pelo silêncio, quebrado apenas pelo assobio do vento entre os prédios deteriorados e o tilintar de latas vazias rolando pelo asfalto. Carcaças de carros enferrujados formavam barreiras naturais, e postes tombados pareciam lápides espalhadas pelo bairro morto. O cheiro de podridão persistia no ar, uma mistura nauseante de carne apodrecida e lixo acumulado.
Aghata, experiente o suficiente para saber que a noite traria perigos ainda maiores, tomou a dianteira. Ela observou o entorno e, após alguns segundos de análise, apontou para um prédio na frente da Praça Santa Matilde.
— Vamos ficar ali essa noite. Se entrarmos no escuro, podemos cair direto na boca de um bando de infectados. Prefiro garantir que o local está seguro antes de qualquer coisa.
Carlos Wigner, um jovem de 18 anos, deu um passo à frente. Ele não carregava armas de fogo, apenas uma faca curta, mas sua confiança era absurda. Para ele, aquilo não passava de uma missão comum.
Carlos não via a hora de finalmente ter suas próprias escravas. Ele se imaginava como o braço direito de Aghata, mesmo que essa posição nunca tivesse sido oficialmente reconhecida. Se apresentava e se colocava como o segundo no comando daquela missão sempre que possível, tentando ganhar influência sobre os demais.
Sem esperar ordens, ele reuniu alguns homens armados com facas e tomou a iniciativa.
— Vamos verificar o prédio. Não quero surpresas de madrugada.
O grupo avançou pelas sombras, seus passos cuidadosos ecoando nos corredores escuros do edifício. O cheiro de mofo e urina impregnava o ar, e o ambiente estava carregado de um silêncio desconfortável. Algumas portas estavam entreabertas, rangendo com o vento. Se houvesse infectados ali, logo descobririam.
Enquanto Carlos lidava com a varredura, Aghata cuidava de outra tarefa essencial. Ela reuniu dois rapazes com habilidade em grafite e apontou para os muros mais visíveis da praça.
— Quero a nossa marca aqui. E quero grande.
Os rapazes assentiram e retiraram os sprays de tinta. As mãos sujas de fuligem e poeira começaram a traçar o que em breve se tornaria um símbolo de medo para qualquer um que cruzasse aquele bairro: o emblema do JK.
O desenho era simples e direto. Uma adaga de lâmina dupla, virada para baixo, cravada no concreto como um aviso mortal. Ela simbolizava que atacar o JK era suicídio. No meio da lâmina, ocupando um grande espaço, estava a sigla “JK”, em traços grossos e agressivos.
A pintura se destacava na parede desgastada, como um aviso sombrio de que aquele território agora pertencia a eles.
E quando amanhecesse, Aghata e seu grupo partiriam em busca do que realmente importava: pessoas para capturar.
A noite estava apenas começando.
Após vasculharem o prédio, Carlos e seu grupo acabaram sendo atacados por alguns infectados que estavam escondidos nos andares superiores. A luta foi rápida e brutal, mas custou a vida de um dos homens do grupo. Forçados a recuar, eles retornaram ao térreo, onde Aghata os aguardava com impaciência.
Ao vê-los voltando desfalcados, ela cruzou os braços e lançou um olhar gelado para Carlos.
— Está faltando gente. Conseguiram verificar o prédio?
Carlos, visivelmente frustrado, respirou fundo antes de responder:
— Perdemos um. Não sabíamos que ainda tinha infectados no terceiro andar. Mas agora limpamos a área. O prédio é seguro.
Aghata caminhou até ele devagar, seu olhar fixo no rosto do rapaz. Então, sem aviso, ergueu a mão e deu um tapa forte no rosto de Carlos, fazendo seu pescoço virar com o impacto. O barulho seco ecoou pelo salão.
— Seguro? — Ela riu, mas seus olhos estavam sombrios. — Você me diz que é seguro depois de perder um homem? Isso aqui não é brincadeira, Carlos. Se você quer ser o meu braço direito, vai ter que fazer melhor que isso.
Carlos respirou fundo, tentando ignorar a ardência no rosto.
— A área está limpa agora. O que vamos fazer?
Aghata o encarou por alguns segundos, então soltou um sorriso enviesado.
— Vamos dormir aqui. Mas antes, eu quero garantir que todo mundo saiba quem está no comando.
Aghata chamou Carlos até o quarto dela.
Ele entrou sem hesitar, fechando a porta atrás de si, mas logo seus olhos se arregalaram. Aghata estava ali, nua, estirada sobre a cama como uma deusa selvagem. As pernas abertas, a pele à mostra refletindo a pouca luz do ambiente, e aquele olhar afiado e faminto, carregado de luxúria e algo mais profundo… algo predatório.
Carlos sentiu o próprio corpo enrijecer. Ele esperava uma bronca, talvez um castigo por sua falha mais cedo. Mas aquilo? Aquilo o pegou desprevenido.
Aghata sorriu, um sorriso lento e dominador, como quem já sabia o desfecho daquela noite antes mesmo de começar.
— Tire essa roupa. — Sua voz cortou o silêncio, firme e autoritária, como se estivesse apenas enunciando um fato incontestável.
Carlos hesitou.
— O quê?
Aghata inclinou a cabeça, analisando-o com olhos calculistas, como um caçador avalia sua presa antes do bote.
— Você me ouviu. Você é bonito, Carlos. E eu quero usar você esta noite. — Ela se ergueu da cama com a leveza de um felino e caminhou até ele, completamente nua, o olhar fixo no dele. Quando se aproximou o suficiente para que ele sentisse seu cheiro, puxou uma faca da lateral da cama e encostou a lâmina fria contra seu pescoço.
Carlos prendeu a respiração.
— Então, cala a boca, tira essa roupa e deita nessa cama… ou eu corto o seu pau antes de te matar.
O gelo da faca contrastava com o calor que subia por sua pele. O olhar dela era um abismo de dominação e sadismo, como se estivesse pronta para despedaçá-lo a qualquer momento.
E aquilo… aquilo fez algo dentro dele despertar.
Um arrepio subiu por sua espinha, mas não era medo. Era excitação pura, avassaladora. O perigo. A ameaça. A promessa de ser consumido por ela.
Aghata viu o brilho masoquista nos olhos dele e sorriu ainda mais.
Carlos abriu um sorriso, ofegante, como um animal pronto para ser domado.
Sem questionar, ele obedeceu.
***
Praça Santa Matilde, 22:30 da noite, galpão da praça.
Ingrid estava em pé no centro do galpão, a luz fraca de uma lâmpada pendurada lançava sombras profundas em seu rosto. O ambiente estava silencioso, exceto pelo som distante do vento que passava pelas rachaduras nas paredes. Ela respirou fundo antes de começar, com uma leve hesitação, mas uma força que transparecia em sua voz.
— Oi, meu nome é Ingrid, sou uma das sobreviventes da CWD.
Ela deu um passo à frente, seus olhos se fixando na câmera enquanto falava, como se buscasse entender a reação de quem a ouvia.
— Quando tudo começou, eu estava andando pelas ruas de Santa Matilde com a minha tia Vânia. Eu me lembro claramente de como ela estava bem em um momento e, no outro, já tentando me atacar. Eu tive que me defender, e isso, bem… pesa na minha cabeça até hoje, porque éramos muito próximas. Não sei como, mas a dor de ter feito aquilo ainda vive comigo.
Ingrid fez uma pausa, fechando os olhos por um instante, o silêncio preenchendo o espaço enquanto ela se recomponha.
— Eu acho que depois disso, só me restava sobreviver. Passei mais ou menos uma semana sozinha nas ruas, tentando me manter viva… até que, por sorte, encontrei um grupo de resgate na saída de Santa Matilde. Eles se chamam A Mão de Deus.
Ela sorriu levemente, quase como se tivesse lembranças boas daquelas pessoas, um contraste com a dureza do momento.
— É um grupo religioso. Eu não sou exatamente uma pessoa religiosa, mas eles… eles me acolheram, sem questionar nada. Não importa de onde você vem ou quem você é. Se você está com eles, é parte da família.
Ingrid olhou para a câmera, seu olhar agora mais firme.
— Então, se você está sozinho, se não tem pra onde ir… saiba que aqui você será bem-vindo. Estamos no galpão da Farid, aqui na Praça Santa Matilde. E vou repetir, a Mão de Deus acolhe todos. Não importa o seu passado.
Ela deu um último sorriso, mais suave agora, antes de terminar.
— Meu nome é Ingrid, e este é o meu recado. Fique bem.
Com um último olhar ao redor, ela desligou a gravação, as palavras ecoando no vazio do galpão.
Sarah, uma das meninas do grupo, estava sentada em frente ao notebook, seus dedos rápidos sobre o teclado enquanto ela convertia o vídeo de Ingrid em um áudio. Com a tarefa finalizada, ela pegou o pendrive e o entregou diretamente nas mãos de Ingrid.
— Está pronto, certo? Será que dessa vez vamos conseguir encontrar mais sobreviventes? — Ingrid perguntou, a insegurança visível na suavidade de sua voz, enquanto olhava para Sarah com uma expressão de leve apreensão.
Sarah, percebendo a delicadeza de Ingrid, deu-lhe um abraço gentil, tentando transmitir um pouco de conforto.
— Sim, está tudo certo. É só colocar no som do carro e seguir com a nossa intenção. Mas você tem certeza de que quer voltar para Cristiano Otoni? Você sabe que é bem provável que… bem, todos lá já estejam mortos, né? — perguntou Sarah, sua voz carregada de uma preocupação sincera.
Ingrid respirou fundo, ainda com um sorriso nos lábios, mas com a determinação de quem estava em busca de algo que só ela poderia entender.
— Eu não quero acreditar na morte da minha prima sem ver com meus próprios olhos. Não vou perder a esperança sem lutar por isso. Mas pode ficar tranquila, o Davi vai me acompanhar até a cidade. Eu sei que há sobreviventes, e vou continuar reproduzindo a mensagem da noite até o amanhecer. — Ela falou com uma confiança que parecia ter se renovado, um brilho de esperança ainda tão forte no fundo de seu olhar.
Rafaela e Lucas, que estavam ao fundo, se aproximaram, e Lucas foi o primeiro a falar.
— Muito obrigado por nos dizer que é seguro fazer barulho e andar à noite. Sem você, a gente nunca ia saber que essas coisas não se movem nem atacam durante a noite. — disse ele, entregando uma mochila com alguns suprimentos para a viagem, um gesto de agradecimento genuíno.
Davi, que estava ao lado de Ingrid, olhou para Rafaela e, com um sorriso malicioso, falou.
— Aê, Rafinha, será que não rola um beijinho para abençoar a viagem? — provocou, um sorriso travesso nos lábios.
Rafaela balançou a cabeça, rindo, mas rapidamente retrucou.
— Um abraço sim, mas beijo não. — ela respondeu com um tom brincalhão.
— Chata. — Davi disse, sorrindo, e deu-lhe um abraço apertado, ignorando a brincadeira.
Com despedidas rápidas e gestos de carinho, Ingrid e Davi se dirigiram ao carro. Davi ligou o motor, e Ingrid, com um gesto cuidadoso, colocou o pendrive no som do carro. O áudio de sua mensagem de esperança começou a tocar enquanto eles começavam a partir.
Lucas, que já estava no banco de trás, se virou para Davi e deu uma última instrução.
— Só para deixar claro, antes de saírem da cidade, deem uma volta por esse bairro, reproduzindo o áudio da Ingrid. Depois sigam pela BR-040 direto para Cristiano, ok?
Davi olhou para ele e fez um sinal de confirmação.
— Ok. — Respondeu Davi, enquanto o carro ganhava vida, os faróis iluminando a estrada à frente.
Ingrid olhou para a frente, sentindo uma mistura de apreensão e esperança enquanto o som de sua própria voz ecoava pela noite. Sabia que a jornada à frente não seria fácil, mas a chama da esperança era a única coisa que a mantinha firme.
E assim, eles partiram, na busca incansável por sobreviventes, atravessando a escuridão, carregando um recado de esperança e uma vontade imensa de reverter o que o mundo havia se tornado.
Durante a noite, o som da mensagem de Ingrid ecoava nas ruas, com o carro passando a toda velocidade e o áudio sendo reproduzido em volume bem alto. No galpão da praça, onde Aghata dormia junto de Carlos, o som parecia cortar a quietude da noite, interrompendo o silêncio que envolvia o lugar.
Aghata acordou com o som alto, os olhos ainda pesados de sono. Ela estendeu a mão para o lado da cama, procurando a lâmpada na mesinha de cabeceira. Rapidamente, ela se levantou, o corpo nu sob a luz suave da lâmpada, e se vestiu, colocando a roupa com pressa. Carlos, ao seu lado, ainda se arrastava para despertar, mas percebeu que algo estava acontecendo.
Aghata, já com a expressão alerta, passou as mãos no cabelo e olhou para ele com um sorriso irônico:
— Aê, você tá sabendo que não precisa ir correndo até lá agora, né? Afinal, eles passaram o endereço. Nós podemos ir lá amanhã, quando tiver claro.
Carlos se espreguiçou, o olhar ainda confuso pela madrugada, mas a expressão relaxada. Ele deu um sorriso torto, como se a situação não fosse uma grande preocupação para ele.
Aghata se aproximou dele, o sorriso se ampliando um pouco, mas com a calma característica dela em momentos de decisão. Ela colocou a mão sobre o peito de Carlos, brincando com ele de forma casual, como se aquilo fosse só mais uma noite.
— Concordo… Eu diria que é uma baita imprudência sair fazendo esse barulho todo a essa hora da noite, e ainda mais com um monte de zumbis à solta por aí! — ela falou, com um tom sarcástico, mas determinado.
Antes que pudessem dizer mais alguma coisa, uma batida na porta interrompeu o momento. Alguém do lado de fora gritou:
— Aghata, o pessoal tá todo na sala querendo saber o que faremos em relação a…
Aghata virou-se, ainda com aquele ar de confiança, e respondeu sem pressa, mas com firmeza:
— Só um minuto, que eu já falo com vocês!
Ela caminhou até a porta e a abriu, Carlos e William já se levantando da cama. Aghata os seguiu até o centro da sala, onde o resto do grupo estava reunido. O clima era tenso, com todos sabendo que uma nova decisão estava prestes a ser tomada, e cada um se preparava para ouvir o que Aghata tinha a dizer.
Aghata, com passos firmes e a postura de quem liderava o grupo, se posicionou no meio do círculo. Ela olhou para todos, um semblante sério, mas com a autoridade que vinha com sua presença. A sala estava iluminada apenas por algumas velas, criando sombras dançantes nas paredes, dando à cena uma atmosfera tensa, de uma estratégia sendo formada nas sombras da noite.
— Então, pessoal, eu sei que todos ouviram aquele carro passando lá fora, certo? — começou ela, sua voz firme e clara, quebrando o silêncio. — Bom, primeiramente, quero agradecer por esperarem a minha decisão. Vamos aproveitar essa chance para planejarmos o próximo passo.
O murmúrio silencioso percorreu o grupo. Allan, com o rosto marcado pela incerteza, levantou a mão e, com uma expressão de dúvida, perguntou:
— Aghata, eu quero levantar a nossa primeira questão de quando chegarmos lá… Então, o que vamos fazer se, ao chegarmos, o grupo deles for muito maior do que o nosso?
Aghata olhou para Allan com uma calma imperturbável, seus olhos fixos, sem mostrar fraqueza. Ela sabia que essa era uma possibilidade real, mas estava preparada para tudo.
— Isso é uma boa questão, Allan. — respondeu ela, a voz segura. — Mas, por agora, temos que estar preparados para qualquer situação. Nosso número é menor, mas temos vantagem na estratégia. Vamos analisar a situação assim que chegarmos lá. A surpresa pode ser o nosso melhor aliado.
A tensão na sala cresceu, mas Aghata não deixava transparecer nenhum sinal de hesitação. Ela sabia que qualquer passo errado poderia ser fatal, mas também sabia que aquele momento exigia confiança e ação rápida.
A reunião seguiu, com a tensão evidente no ar. Aghata observava cada um de seus seguidores, analisando suas expressões e a forma como reagiam aos planos que ela estava arquitetando.
Allan levantou a mão e, com um tom cuidadoso, perguntou:
— E se, ao chegarmos lá, o grupo deles for muito maior do que o nosso?
Aghata não se apressou em responder, saboreando o momento. Seu olhar se fixou no horizonte por um instante, como se calculasse as possibilidades. Quando finalmente falou, sua voz foi firme, mas com uma dose de segurança tranquila.
— Por isso, vamos esperar até amanhã. Não vamos nos arriscar à noite, com o risco de atrair atenção indesejada. Quando chegarmos lá, vamos nos misturar e, antes de qualquer coisa, aprender tudo o que pudermos sobre eles. A informação será a nossa melhor arma.
William, sempre atento, sugeriu então:
— Que tal, ao final do dia, nos reunirmos para compartilhar o que cada um descobriu? Assim, podemos discutir qual será o momento certo de agir, sem nos precipitar.
Aghata sorriu de leve, reconhecendo a inteligência na sugestão. Ela mandou um beijo para William, como um gesto de aprovação.
— Excelente, Wil. Como sempre, sua mente afiada é um grande trunfo para o grupo. Vamos seguir esse plano: durante o dia, adquirimos informações, e à noite, enquanto todos descansam, discutiremos o próximo passo.
Carlos, que até então permanecia em silêncio, deu um leve sorriso e concluiu, com seu tom típico de liderança:
— Então, está decidido. Podemos encerrar por aqui. Vai ser um dia longo, e eu e Aghata ainda temos um assunto pendente no quarto.
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