Na divisa do Paulo VI com o Amaro Ribeiro, em uma casa pequena que ainda mantinha energia elétrica — uma raridade naquela região, onde as sombras da escassez tomavam conta. Dentro daquela casa, Bruno e Íris tomavam café da manhã, a manhã mais silenciosa do que qualquer um poderia imaginar.

    Bruno olhou pela janela, o olhar perdido, como se algo estivesse errado. Algo no ar, algo que ele não conseguia explicar. Sua mente ainda estava presa em sonhos estranhos. Ele se lembrava claramente deles, tão vívidos e desconcertantes.

    “Algo está estranho… Essa noite, os sonhos… Eu estava sentado em um trono, um ponto de luz me iluminava, tudo ao meu redor era escuridão. Só havia duas criaturas, seus olhos vermelhos me encarando sem dizer uma palavra. Elas estavam ali, imóvel, observando-me como se esperassem algo. Uma delas se aproximou… parecia eu, mas diferente. E então, ela falou: ‘Não deixe aquela coisa sair de novo’. Mas… aquilo também era eu.”

    A voz de Íris o tirou de seus pensamentos, interrompendo o turbilhão em sua mente.

    — Você tá bem? — Ela perguntou, olhando para ele com uma expressão preocupada.

    Bruno a encarou, sem realmente vê-la, e acenou com a cabeça, mas sua mente continuava vagando. “Você também mudou. Quando foi que começamos a nos relacionar? Desde aquele dia em que apaguei e você ficou cuidando de mim, algo em você… está diferente.”

    Ele não conseguia compreender o que estava acontecendo, mas sentia uma pressão crescente em seu peito. Algo estava fora de lugar. Algo que ele não conseguia lembrar.

    Bruno, com a voz mais baixa, mas carregada de uma inquietação que não conseguia disfarçar, perguntou:

    — Íris, me responde uma coisa. Que luz vermelha é essa abaixo da sua barriga? E por que seus olhos estão vermelhos desde que acordamos?

    Ela olhou para baixo, como se buscando por algo que não existia, mas não viu nada. Seus olhos passaram por Bruno, mas ele estava visivelmente agitado, e algo ali a fez hesitar. Ela se aproximou dele, beijando-o de leve, tentando acalmá-lo.

    — Eu não estou vendo nada, amor. Deve ser coisa da sua cabeça — disse, com a suavidade de sempre, tentando desviar da tensão que começava a tomar conta do ambiente.

    Mas Bruno não estava convencido. Algo não estava certo. Ele sentia isso em cada fibra de seu ser.

    — Me responde mais uma coisa… — ele continuou, a voz agora mais firme, cheia de uma confusão desesperada. — Por que eu sinto que nos últimos dias você tem cuidado de mim de uma forma diferente? Como se fosse… minha mulher? Essa mudança… ela aconteceu de repente. Já tem dias que me sinto fora de tudo isso.

    Íris parecia ter congelado por um instante, mas logo retomou sua postura, tentando esconder a ansiedade. Ela o olhou com suavidade, mas havia algo em seus olhos que Bruno não conseguiu decifrar.

    — Não se preocupa, meu amor. Alguma hora você vai se lembrar. E só pra você saber… estamos juntos há quase três meses — respondeu, com um sorriso fraco, que não parecia totalmente sincero. — Agora, vou me deitar, estou me sentindo meio enjoada e cansada.

    O choque foi como um soco no estômago de Bruno. Três meses? Para ele, não tinham se passado nem três dias desde o surto do vírus. Ele sentiu como se o chão tivesse desaparecido sob seus pés, como se tivesse ficado perdido em um vazio por todo esse tempo.

    Ele ficou paralisado, sua mente tentando processar as palavras dela. Mas não fazia sentido. Nada fazia sentido.

    — Santa puta que pariu… fiquei fora do ar por três meses… não acredito nisso — ele murmurou, as palavras saindo num suspiro abafado, como se estivesse tentando lidar com um pesadelo.

    Sua respiração ficou irregular. Sua cabeça girava. Ele sentiu um aperto no peito, como se a pressão estivesse subindo a cada segundo. Ele se levantou abruptamente, correndo para a cozinha, tentando pegar um copo d’água, mas a sensação de que tudo estava escapando de suas mãos o sufocava ainda mais.

    Seu coração batia forte, uma batida irregular, como se estivesse prestes a explodir. Ele sentiu o mundo girando ao seu redor, uma sensação de pânico crescendo sem controle. O que estava acontecendo com ele? O que tinha acontecido nesses últimos três meses? Ele não conseguia lembrar. Tudo o que ele sabia é que estava em um mundo que não fazia sentido, com pessoas e sentimentos que ele não reconhecia. E, acima de tudo, com uma sensação de que algo estava prestes a acontecer, algo que ele não podia mais evitar.

    Bruno, com as mãos trêmulas, pegou a faca de lâmina lisa e a prendeu na cintura. O peso da situação ainda pairava em sua mente. Quando seu olhar caiu na marreta, toda suja de sangue, jogada no chão perto da porta, um calafrio percorreu sua espinha. Ele pegou a marreta e a segurou com força, saindo para a rua. O ar fresco deveria ajudar a clarear a mente, mas nada parecia trazer alívio.

    A porta se fechou atrás dele com um estrondo, e ele caminhou em direção ao vazio da rua. Seus passos pesados ecoavam em silêncio, até que, ao longe, no fim da rua, ele viu uma figura. Um infectado, mas… algo estava errado. Não parecia mais humano. O monstro à sua frente era uma distorção grotesca, uma sombra que mal carregava vestígios de carne humana. Bruno franziu o cenho e, com a marreta ainda em mãos, começou a andar em direção àquela criatura, atraído por algo que não conseguia compreender.

    À medida que ele se aproximava, a criatura não se moveu. Estava imóvel, esperando. Seus olhos, uma mistura de preto e vermelho, fixaram-se nos dele. A tensão entre eles era palpável. Bruno parou a alguns metros da besta, observando cada detalhe, tentando entender o que estava acontecendo. A criatura não parecia querer atacá-lo. Em vez disso, começou a imitar seus gestos, como se estivesse refletindo cada movimento seu como um espelho.

    Confuso, ele se aproximou mais e tocou a criatura. No instante seguinte, algo o atingiu com uma força brutal, e Bruno foi arremessado para trás, caindo pesadamente no chão. Sete metros de distância. Ele mal teve tempo de perceber de onde o golpe havia vindo.

    — O que foi isso? — Bruno sussurrou, ainda atordoado enquanto tentava se levantar. Seus olhos ficaram vermelhos, como se a própria dor estivesse infiltrando-se nele de uma maneira visceral. O corte em seu peito, feito pela criatura, começou a se regenerar lentamente, como se fosse uma ferida que não tivesse pressa de sarar.

    Mas a criatura não o deixou respirar. Antes que ele pudesse se recompor, ela estava lá, à sua frente, com a velocidade de um relâmpago. Seus olhos fixos nos de Bruno, e sua boca escorrendo sangue. Ele olhou para baixo e viu o rabo monstruoso da criatura, agora com cerca de três metros de comprimento, atravessando sua barriga. O pânico o envolveu de repente, mas antes que pudesse gritar, tudo se apagou.

    Bruno acordou de forma abrupta, seus olhos se abriram para um teto que não era familiar. O ambiente ao seu redor era estranho. Ele estava deitado em uma cama, com o corpo pesado, mas sem entender o que tinha acontecido. Olhou para o lado e viu Íris, sentada ao seu lado, observando-o com um olhar atento.

    — Você tá melhor? — Ela perguntou, seus olhos agora normais, sem o tom sobrenatural que Bruno tinha começado a associar a ela.

    Bruno ainda estava atordoado, tentando processar tudo. Seus pensamentos estavam embaralhados. A sensação de que algo estava fora de lugar ainda o perseguia. Ele olhou para ela, desconfiado, e, sem saber muito bem o que dizer, questionou:

    — Por que tu tá deitada comigo… e pelada ainda por cima?

    Íris o encarou com uma expressão um tanto desconcertada, mas logo um sorriso brincou em seus lábios.

    — Se você está me perguntando isso, é sinal de que já voltou ao normal. — Ela disse, enquanto se levantava da cama, com naturalidade.

    Bruno ainda estava em choque, mas um impulso irônico, como uma forma de fugir do pânico que estava tomando conta de si, fez com que ele tentasse fazer piada da situação.

    — Espera, eu fui abusado? Mas que safada! Se tu queria um pouco de aventura, bastava pedir, uai.

    O sorriso de Íris não desapareceu, mas havia algo nela que não se via antes. Ela o olhou com um misto de preocupação e calma, e, mesmo no meio do caos que parecia dominar suas mentes, ela respondeu:

    — Relaxa, Bruno. Tá tudo bem agora.

    Bruno se levantou da cama, vestiu-se rapidamente e foi atrás de Iris, que já se dirigia à cozinha para preparar o café da manhã.

    — Quanto tempo eu dormi? — perguntou ele, ainda pensando no pesadelo estranho que tivera.

    Iris, que estava virada para o fogão, continuou mexendo os ovos enquanto respondia.

    — Depende… o que você lembra? — ela fez a pergunta de maneira calma, como se quisesse entender qual parte das memórias de Bruno havia se perdido.

    — Ah… eu lembro de ter apagado no sofá, tava muito mal, mas… você ainda não me respondeu o motivo de estarmos pelados na cama. — ele insistiu, agora mais desconfiado.

    Iris não parecia se incomodar com a pergunta. Com naturalidade, ela respondeu, como se fosse algo totalmente comum.

    — Você tava com muita febre, então eu te dei um banho porque você não conseguia sair de onde estava, de tão fraco. Depois, quando a febre baixou, você… não sei, de repente me agarrou e a gente acabou fazendo o que um casal faz entre quatro paredes. — disse ela, enquanto colocava os ovos fritos sobre um pão de forma na mesa da cozinha.

    Bruno a olhou sem acreditar no que ouvia. A explicação de Iris não parecia fazer sentido algum para ele.

    — Mas tu mente que nem dói, né? — ele questionou, começando a achar tudo aquilo uma grande mentira.

    — Por que você diz isso? — Iris olhou-o nos olhos, desafiadora, sem desviar o olhar.

    Bruno cruzou os braços, sentindo que sua indignação estava crescendo.

    — Sou virgem, caralho! Acha que eu vou cair nesse papinho? E outra, sou feio pra caralho! — respondeu ele, tentando esconder a insegurança por trás de uma postura grosseira.

    Iris não se abalou. Pelo contrário, apenas sorriu, como se tivesse mais do que um truque na manga.

    — Pra mim você não é feio, só é um desleixado, tanto com a roupa quanto com o cabelo. Na minha opinião, se você se cuidasse um pouco, seria um gatinho. — ela disse isso com um sorriso travesso, observando Bruno ficar vermelho como um pimentão.

    A reação de Bruno foi instantânea. Ele virou o rosto, sentindo a vergonha tomar conta de seu corpo, e tentou esconder o embaraço, fazendo um gesto frustrado.

    — Vai se ferrar, porra, não sou fofinho! Aqui é macho alfa, caralho, Connan, porra! — ele respondeu, tentando manter a fachada, mas já sem muito sucesso.

    — Olha só, quem diria, desvirginhei o cara! — Iris não conseguiu se conter e soltou uma risada alta, deixando Bruno ainda mais sem graça.

    Ele, sem saber como reagir, se forçou a dar um sorriso desconfortável. A leveza da situação contrastava com o turbilhão de sentimentos que ele sentia por dentro.

    Algum tempo depois, depois de se recuperarem da situação embaraçosa, os dois saíram da casa em busca de um novo lugar para estabelecer uma base, mais uma vez prontos para enfrentar o caos que ainda os aguardava.

    Enquanto caminhavam pelas ruas desertas, Bruno e Iris estavam extremamente atentos a cada movimento ao redor, como se cada sombra pudesse esconder uma ameaça iminente. Dentro da cabeça de Bruno, ele tentava entender o que acontecera no dia anterior, mas a ideia de que aquilo talvez não tivesse sido ele o incomodava. Ele queria ter a certeza de que as decisões tomadas eram suas, que aquelas lembranças, mesmo distorcidas, eram genuínas.

    — Você tem alguma ideia de onde a gente poderia ir? — Iris perguntou, a voz baixa, como se temesse que o próprio som da fala pudesse atraí-los.

    Bruno olhou ao redor, avaliando o ambiente, e sua resposta foi quase fria, direta, como se já soubesse o que precisava ser feito.

    — Por enquanto, quero que você aprenda a lutar contra os infectados. Então, quero que mate um pra mim.

    Iris parou por um instante, surpresa com o pedido. A tensão em seu corpo aumentou, mas ela tentava manter a calma.

    — Tá zuando, né? — ela perguntou, a voz trêmula, claramente assustada.

    — Não, e olha… tem um ali. — Bruno apontou com o dedo para o infectado, que estava parado a alguns metros de distância.

    Iris olhou para a criatura, seu corpo ficou tenso com a visão do ser desfigurado. Ela bufou, frustrada.

    — Merda! — ela murmurou, e sua mão foi até a faca que carregava, sentindo a lâmina fria contra a pele.

    Ela caminhou silenciosamente em direção ao infectado, tentando ser o mais discreta possível, até que finalmente alcançou sua vítima. Com uma precisão mortal, ela cravou a faca nas costas do infectado, mas ele não caiu. Pelo contrário, virou-se rapidamente, tentando agarrá-la com força.

    Com um rápido movimento, Iris se agachou e puxou a perna do infectado para cima, desequilibrando-o, fazendo-o cair de cara no chão. Ela agarra o pescoço da criatura, apertando com força, mas ele continua lutando, sua boca aberta tentando mordê-la. Desesperada para conseguir a vantagem, Iris ouve a voz de Bruno, que se aproxima e a orienta com calma.

    — Apenas apertar o pescoço dele não vai matá-lo. Aperte acima do gogó para impedir a respiração, tampe a passagem do ar.

    Iris, ofegante e com o coração batendo forte no peito, seguiu o conselho de Bruno, ajustando a pressão de suas mãos. Ela sentiu o corpo do infectado começar a perder a força à medida que ele parava de se debater. Alguns segundos depois, ele cessou seus movimentos, caindo sem vida.

    Iris se levantou rapidamente, um misto de alívio e horror em seus olhos. Ela olhou para Bruno, a sensação de ter tirado uma vida, ou o que quer que fosse aquilo, tomando conta de sua mente. Seus olhos estavam cheios de lágrimas, e sua voz tremia.

    — Isso é horrível… Como você consegue? — ela sussurrou, a angústia transparecendo em cada palavra. Ela sentiu um peso no peito, algo que nunca imaginou que experimentaria.

    Com um impulso, ela o abraçou, buscando conforto no toque dele, como se isso pudesse afastar o horror que acabara de viver.

    — Por favor, não mande eu fazer isso de novo… — sua voz estava embargada, e ela sabia que o pedido soava desesperado, mas era o único que ela conseguia fazer naquele momento.

    Bruno a abraçou de volta, sentindo o peso da dor e do arrependimento. Ele queria fazer tudo de forma diferente, mas sabia que a realidade era implacável.

    — Infelizmente, essa será a sua vida, Iris… Sinto muito por você. — ele disse, com sinceridade, uma tristeza profunda em sua voz. Ele também sabia o que viria a seguir, e nada poderia prepará-la para isso.

    Os dois permaneceram ali, em silêncio, abraçados, enquanto o mundo ao redor continuava a desmoronar.

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