Capítulo 4 – Novo Lar
Chegando ao pátio da escola, Ingrid avistou sua prima conversando com um rapaz moreno que, pelo jeito, claramente tinha alguma coisa com ela. O coração de Ingrid quase pulou do peito. Ela gritou, emocionada, e correu em direção à prima com os olhos marejados.
— VIVI! Ai, graças a Deus, você tá bem! — Ela a abraçou com força, chorando, sem conseguir esconder a alegria de revê-la.
— Sim, eu tô… graças ao Otávio e à Clara. Mas agora vamos arranjar um lugar pra você descansar, e depois a gente conversa melhor, ok? — disse Viviane, pegando uma chave que estava sobre uma mesa improvisada ali perto.
— Eu vou deixar vocês duas por enquanto. — disse Clara, sorrindo com gentileza. — Arranja um cantinho pra ela. Eu vou ver como estão os meninos. Depois preciso conversar com você, mas agora… só descansa, tá bom?
Viviane acenou em concordância. Pegou a mão da prima e saiu caminhando com ela. O rapaz que estava com Vivi resolveu acompanhar as duas, o que fez Ingrid franzir levemente o cenho.
— Quem é esse com você, Vivi? — perguntou, estranhando o cara estar colado nela daquele jeito.
— Esse é o Otávio, meu namorado. Acho que comentei dele com você no mês passado, quando fui na sua casa.
Ingrid o encarou por um instante antes de estender a mão, tentando ser simpática. Otávio parecia meio tímido, e desde que ela o viu com Viviane, se manteve mais quieto — o que, na real, acabou passando uma certa tranquilidade pra Ingrid. Só de saber que sua prima estava viva… e com alguém que parecia cuidar dela… já era o suficiente por agora.
Ele apertou a mão de Ingrid com gentileza e um olhar sincero.
— É um prazer. Viviane me falou de você. Fico feliz que tenha conseguido chegar bem.
— Obrigada… — respondeu ela, tentando sorrir, mas os olhos se nublaram. A cena da morte do amigo veio como um soco seco na memória. A felicidade do reencontro foi atravessada por um silêncio repentino.
Ela nitidamente não estava bem. Agora que o sangue começava a esfriar, Ingrid finalmente pôde chorar — de verdade — a morte de Davi. Ele havia ajudado ela a chegar até ali… e agora estava morto.
Na mente dela, a voz dele ainda ecoava, dizendo o quanto queria reencontrar Rafaela. Como se ele ainda estivesse vivo, ainda sonhando, ainda lutando.
Viviane percebeu e a abraçou de novo, apertado. Depois, entregou a chave da casa para Otávio, que logo se adiantou para abrir a porta onde Ingrid iria passar a morar — ou pelo menos sobreviver por um tempo.
Com calma, Viviane foi conduzindo a prima até o interior da casa, tentando acalmá-la aos poucos. Assim que entraram, ela a sentou no sofá e saiu em busca de alguma roupa que servisse nela. Procurou em um dos quartos e, quando encontrou um vestido simples, pegou junto uma toalha e voltou para a sala.
— Toma aqui. Vai tomar um banho e tenta relaxar, tá bom? Por sorte, essa casa é uma das poucas com painéis solares no teto, então deve dar pra tomar um banho quente. Só tenta não demorar muito pra não acabar a energia… a da cidade caiu ontem — explicou Viviane enquanto entregava as coisas.
Ingrid assentiu em silêncio, aceitou a toalha e a roupa das mãos da prima e foi direto pro banheiro, obedecendo mais por exaustão do que por vontade. Viviane e Otávio a deixaram sozinha, respeitando aquele momento.
Dentro do banho, a água quente escorria, mas não lavava o peso no peito. As lembranças do que havia acontecido mais cedo ainda estavam frescas. Seus olhos, avermelhados, mal conseguiam piscar. As lágrimas se misturavam com a água que caía do chuveiro.
— Eu não posso continuar sendo fraca assim… não posso! — murmurou entre dentes, com a garganta travada. — Não quero mais ver ninguém morrendo enquanto tenta me proteger… Mas que ódio!
Com raiva e frustração, bateu o punho — fraco — contra a parede. Não queria se machucar, mas precisava extravasar.
Quando terminou o banho, enxugou o corpo devagar e vestiu o vestido em frente ao espelho. Encara-se. Os olhos ainda vermelhos. A pele clara manchada pelo choro. A expressão abatida. Ela sentia raiva… não dos outros, mas de si mesma. Uma raiva que queimava baixo, como uma brasa escondida.
Deu uma volta pela casa. Era grande, espaçosa, mas fria. Vazia. Cada cômodo parecia ecoar um silêncio desconfortável, como se o lugar tivesse presenciado coisas que ela ainda não sabia. Pensou no quanto seria solitário morar ali. O pensamento apertou o peito.
Foi até o quarto. Deitou-se na cama. Olhou o teto sem ver nada.
E ali, naquela solidão, chorou calada até que o cansaço vencesse.
Mais tarde, ainda naquele mesmo dia, alguém bateu na porta chamando por Ingrid. Ela despertou devagar, com os olhos ainda pesados do choro e da exaustão. Levantou-se, deu uma ajeitada rápida no cabelo e no rosto — nada muito elaborado, só o suficiente pra parecer viva — e foi até a porta.
Do lado de fora, estava Clara. Nos braços, ela segurava uma garrafa de vinho e uma caixa de bombons.
— Desculpa te incomodar… mas será que agora a gente pode conversar? — perguntou Clara, balançando levemente a caixa de bombons. Um sorriso gentil no rosto, e nos olhos… algo entre preocupação e carinho, como se quisesse animá-la mesmo sem saber exatamente como.
— Entra aí — respondeu Ingrid, abrindo mais a porta.
Clara entrou com cuidado, pedindo licença com um aceno discreto, e foi direto pro sofá. Enquanto isso, Ingrid seguiu para a cozinha, pegou um único copo de vidro e voltou pra sala com ele na mão.
Ela se sentou no outro sofá e colocou o copo sobre a mesinha, bem perto da visita.
— Só trouxe um copo? — perguntou Clara, confusa, olhando da mesa pra Ingrid.
— É que eu não bebo — respondeu Ingrid, escorando as costas no sofá, como se dissesse: “mas sinta-se à vontade”.
— Ah… entendi — murmurou Clara, tentando esconder o leve constrangimento. Abriu a garrafa com um estalo baixo e deixou o vinho descansar. Depois, olhou de novo para Ingrid, mais séria agora. — Eu vi… quando seu amigo foi pego. Sinto muito. Eu não sabia o que fazer pra te animar, mas… trouxe o que geralmente me ajuda.
Com delicadeza, pegou um chocolate da caixa e esticou a mão para Ingrid.
Ela hesitou por um segundo, mas então pegou o bombom e esboçou um sorriso discreto.
— Chocolate… isso eu aceito.
Clara deu um leve sorriso, tirou o chinelo com um empurrão preguiçoso do pé e se acomodou no sofá, cruzando as pernas com a intimidade de quem já se sente em casa.
— E aí, me conta… o que aconteceu com você até chegar aqui? — perguntou, curiosa, jogando o corpo pra trás e deixando os pés subirem pelo sofá.
Ingrid ficou sem saber bem como reagir. O jeito espontâneo de Clara era um pouco avassalador. Ela ainda estava tentando entender como alguém conseguia criar tanta intimidade tão rápido.
— Bom… eu meio que já morava por aqui, no caso… ali no bairro Pinheiros. Quando tudo começou, eu tava em Lafaiete, com a minha tia. A mãe da Vivi… — disse meio travada, falando devagar, como quem escolhia as palavras com cuidado.
— Você é muito certinha, né? — soltou Clara, rindo e pegando mais um bombom da caixa.
— E como tá a situação lá em Lafaiete? — emendou, já engatando o assunto seguinte.
— Muito pior do que aqui, pode acreditar… — Ingrid respondeu, desviando o olhar pra janela. Havia uma tristeza discreta em seus olhos. — Lá, a maioria das pessoas morreu… ou foi infectada.
Clara franziu levemente a testa, refletindo por um segundo. Depois, puxou o celular do bolso, como se lembrasse de algo.
— E tu já viu algum infectado mutante por aí? Tipo, em vídeo… ou pessoalmente? — perguntou, mexendo na galeria do celular.
Ingrid estranhou a mudança brusca de assunto, mas respondeu:
— Vi em vídeo… um dia antes de vir pra cá.
Clara então virou a tela do celular, mostrando uma imagem. Era a foto de uma criatura enorme — um mutante de olhos brancos e corpo descomunal.
— Esse aí eu encontrei há uns dias. Quando vi ele pela primeira vez, não tive coragem de enfrentar. De perto, parecia ter quase três metros de altura. Tinha uma presença assustadora… era como olhar pro próprio inferno. — A voz de Clara ficou mais baixa, carregada de tensão. — Hoje, quando te encontrei, eu e minha equipe estávamos rastreando ele. Estamos tentando entender o comportamento… descobrir com que tipo de ameaça a gente tá lidando, além dos infectados convencionais.
Ingrid arregalou os olhos, o corpo enrijecido.
— Vocês… já têm um nome pra ele?
Clara encheu o copo e virou engolindo o vinho de uma vez só, como se a lembrança exigisse isso. — Eu chamo ele de Colosso de Olhos brancos, em homenagem a Shadow of the Colossus… — disse com um leve sorriso, logo substituído por uma expressão mais séria. — Mas o pessoal daqui prefere chamar de Demônio de Olhos Brancos.

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