Capítulo 6 – Sem tempo para descansar
João Paulo estava inquieto. Do estacionamento do outro lado da rua, ele ouvia os sons abafados vindos do mercado. Mas foi o grito agudo de Bruno, cortando o silêncio, que fez seu coração disparar. Ele sabia que não podia mais ficar parado. O medo de perder o melhor amigo superava qualquer receio de enfrentar os infectados sozinho. Respirando fundo, tentou soar confiante para as meninas, mesmo que sua voz ainda tremesse:
— Droga… Depois desse grito, não dá mais pra esperar. Meninas, vocês ficam aqui. Eu vou ver o que tá acontecendo lá dentro.
Enquanto isso, dentro do mercado, Bruno analisava rapidamente a situação. O último infectado estava preso em uma empilhadeira, lutando inutilmente para se soltar. Um sorriso de satisfação surgiu em seu rosto ensanguentado.
— Isso vai facilitar minha vida…
Do lado de fora, João Paulo se aproximou da entrada do mercado, hesitante, mas determinado. Foi então que ele viu uma silhueta emergindo do fundo do corredor, arrastando algo pesado. Ele engoliu seco e estreitou os olhos, até que a figura entrou na luz. Era Bruno. Ele caminhava devagar, arrastando um corpo pelo pé direito como se fosse um saco de lixo. Apesar de coberto de sangue e suor, a expressão de Bruno era surpreendentemente tranquila. Na outra mão, ele segurava um biscoito de maracujá, mordendo casualmente enquanto atravessava o mercado.
Ao chegar perto da entrada, Bruno ergueu a voz para os outros, sem dar muita atenção ao peso que arrastava:
— Meninas, podem entrar. Tá tudo limpo. E você, Jão, vem logo me ajudar a tirar esses corpos daqui pra fora. Quero fechar isso aqui antes que apareça mais problema.
João Paulo ficou aliviado ao ver o amigo vivo, mas não conseguia esconder o espanto com a cena. Sem dizer nada, foi ajudar a arrastar os corpos. O cheiro de sangue era quase insuportável, mas ele respirou fundo e seguiu em frente. Quando terminaram de jogar os dois últimos corpos na rua, ambos pararam por um instante, esticando as costas e ofegando.
João quebrou o silêncio, sua voz ainda carregada de tensão:
— E agora, meu mano? O que a gente faz?
Bruno, como se toda a carnificina tivesse sido apenas mais um dia comum, limpou a testa com o antebraço e deu um sorriso cansado. Seus olhos, porém, eram duros, como se carregassem o peso de algo que João ainda não podia entender.
— Tô morto… — ele disse, exalando um suspiro longo. Depois, encarou João Paulo diretamente, a seriedade na sua voz cortante como uma lâmina:
— E daqui pra frente, tu vai ter que ser forte, Jão. Forte a ponto de ter coragem de me matar… ou de me ver morrer e seguir em frente com as tuas próprias pernas.
João Paulo sentiu um nó na garganta. Aquelas palavras o atingiram como um soco, mas ele percebeu que Bruno estava falando sério. Não era só sobre infectados. Era sobre o mundo que estavam enfrentando agora — brutal, impiedoso, e que não deixaria espaço para fraqueza.
Bruno deu um último olhar para os corpos amontoados na rua antes de voltar para dentro do mercado. João Paulo ficou ali, parado, tentando absorver o que acabara de ouvir. A responsabilidade que Bruno acabara de colocar em seus ombros pesava mais do que ele poderia imaginar.
Os portões da frente do supermercado foram fechados com um estrondo, o som ecoando pelo ambiente. Bruno olhou rapidamente para João, um sorriso fugaz e leve se formando em seu rosto, mas era um sorriso pesado, quase melancólico. João, por outro lado, sentiu um calafrio. O sorriso de Bruno não parecia um de alegria, mas sim uma despedida. A sensação de que seu amigo estava se afastando, talvez para sempre, o atingiu com força. As palavras que ele queria dizer, os conselhos, ficaram entaladas na garganta.
Bruno, percebendo o silêncio tenso de João, que não conseguia articular nada, quebrou a quietude com a sua voz firme:
— Aê, mano… Vou até minha casa buscar minhas irmãs. E você… vem comigo?
João olhou para o portão azul da entrada, pensativo. As meninas estavam lá dentro, e uma parte dele queria ficar para protegê-las. A preocupação se misturava com a necessidade de seguir Bruno. Ele respondeu, a voz pesarosa:
— De rocha… Eu acho que vou sim, mas e as meninas?
Bruno colocou a mão esquerda no bolso e, com a direita, passou o braço por cima dos ombros de João, em um gesto de amizade, como se tentasse aliviar a pressão. Eles começaram a caminhar na direção da Fiorino branca estacionada um pouco à frente. Para tranquilizar João, ele falou, mais calmo:
— Bom, o local já tá seguro e isolado. Eu duvido que alguém vá tentar entrar aqui agora, e duvido também que elas seriam loucas o suficiente para abrir o portão para qualquer um, tá ligado?
Enquanto eles caminhavam, Samira e sua amiga saíram pela porta lateral do supermercado. Quando Bruno as viu se aproximando, ele olhou para Samira e falou com um tom sério, mas sem perder a compostura:
— Oh, Sam… Eu vou ter que ir até minha casa, preciso ver se minhas irmãs estão bem. E você… quem é a garota?
A amiga de Samira se apresentou como Alicia, agradecendo pela ajuda. Mas a preocupação de Samira estava em outro lugar. Seus olhos estavam fixos no corte de Bruno, que ainda sangrava, e ela não conseguiu evitar:
— Vem cá, você não vai olhar essa ferida não? Vai deixar ela assim, aberta?
Bruno sentiu a dor do corte, mas ignorou. Ele desvia o olhar de Samira, como se estivesse evitando o assunto, e respondeu com firmeza:
— Só depois de ver se a Haissa e a Hanne estão bem, entendeu?
Samira percebeu que Bruno evitou mencionar a mãe dele, e uma sensação de angústia apertou seu peito. O medo e a preocupação começaram a crescer dentro dela, como se a falta de ar fosse o reflexo de algo que ela não queria entender. A voz de Samira falhou, baixa e quase inaudível, como um suspiro carregado de desespero:
— Por que você não incluiu a mamãe no que acabou de dizer, Bruno?
Bruno, sem olhar para trás, ignorou a pergunta. Ele não respondeu, apenas começou a caminhar, os passos rápidos e decididos. Ele sabia o que precisava fazer. Não podia mais perder tempo. A chave da Fiorino estava em algum lugar dentro do mercado. Com a mente focada em seus próximos passos, ele correu para dentro, sem dizer mais nada.
Bruno entrou na sala da administração com passos rápidos e firmes, seus olhos já indo diretamente para o gancho na parede onde as chaves dos veículos estavam penduradas. Ele não teve dificuldades para identificar a chave da Fiorino. Havia apenas quatro chaves, e a que ele queria tinha um adesivo visível, com a logo da marca e o nome “Fiorino” em destaque. Sem hesitar, ele pegou a chave e saiu, decidido.
Quando ele e João Paulo entraram no carro, o ambiente dentro do veículo estava pesado, como se o ar tivesse ficado mais denso. João Paulo, com a expressão preocupada, quebrou o silêncio com uma pergunta:
— Olha, você tem certeza de que é uma boa ideia simplesmente sair assim?
Bruno, sem entender a hesitação de João, olhou para ele com um semblante fechado, o nervosismo começando a transparecer nas palavras:
— Como assim? O que você tá querendo dizer, porra, fala logo…
João Paulo desviou o olhar, pensativo, como se as palavras tivessem ficado presas na garganta. Depois, ele respirou fundo e, finalmente, disse, com uma expressão carregada de preocupação:
— É que na hora você não quis saber, mas…
Bruno, já irritado com a demora para João falar, o interrompeu com a voz bruta:
— Ô, gordão, para de enrolar e fala logo, porra! Cê vai ficar fazendo suspense, carai?
João Paulo, percebendo que Bruno estava longe de ser sensível naquele momento, tentou seguir com o que tinha em mente, ainda que relutante. Ele olhou para o chão e, finalmente, soltou o que estava entalado em sua garganta:
— O viado tenta conversar um pouco com a Camille antes de sair.
Bruno desviou o olhar, claramente irritado com a sugestão, como se ele tivesse mais o que fazer do que dar atenção a Camille naquele momento. Ele respirou fundo, visivelmente incomodado, e soltou, com um tom ácido:
— Ah, tomar no cu, carai! Ela que vá se foder pra lá, porra!
João Paulo, sem paciência para a falta de consideração de Bruno, olhou-o com um olhar firme e intimidante, um desafio no olhar. Ele sabia que Bruno estava sendo impulsivo, mas não podia deixar passar sem dizer nada:
— Estou te dando a chance de pedir desculpas pela sua falta de consideração com a sua amiga, que também passou por um inferno assim como nós. Agora, só levanta o cu daí e vai!
Bruno olhou para ele, como se aquilo fosse um desafio, mas não cedeu. Em vez disso, ele ligou o carro, jogando uma última provocação:
— Hum… amigo de cu é rola baitola!
Olhou para Alicia, que estava no lado de fora do carro, e com um tom mais sério, ordenou:
— Aê, Alicia! Leva a Samira para dentro e tranca tudo.
Alicia, sem questionar, acenou com a cabeça e ajudou Samira a se levantar, enquanto Bruno pisava fundo no acelerador, a Fiorino ganhando velocidade, e João Paulo permanecia em silêncio, processando tudo que acontecia ao seu redor.
Samira parecia perdida em seus próprios pensamentos, seu corpo tremendo enquanto a mente se recusava a aceitar a possibilidade de sua mãe ter sido infectada. Ela repetia para si mesma que ainda havia esperança, mas a verdade estava começando a se infiltrar nas frestas de sua negação. Alicia, vendo o estado de Samira, a levantou pelos braços com cuidado e a conduziu devagar para dentro do supermercado, tentando dar-lhe alguma sensação de segurança, mesmo que fútil naquele cenário.
João Paulo, muito incomodado com a insensibilidade de Bruno, o observava de canto, percebendo seu olhar distante e tranquilo, como se ele já soubesse o que aconteceria. Ele não suportou mais o silêncio e, quebrando-o com a voz carregada de frustração, questionou Bruno enquanto dirigia:
— Tá beleza… eu acho que a Camille eu entendo pela sua falta de consideração, mas a Samira é sua irmã mais nova, cara! Ela merece um pouco mais de consideração e, principalmente, do irmão mais velho dela para tranquilizá-la. Olha pra mim, viado, ela só tem 11 anos, cara! Por que não a confortou? Por que ignorou ela, carai?
Bruno, respirando fundo e sem alterar seu semblante, manteve os olhos fixos na estrada à frente. Ele não queria abrir o jogo, não queria que João Paulo soubesse o quanto ele estava tenso e desgastado por dentro. As mãos suadas que seguravam o volante com força, o suor escorrendo pelo seu rosto misturado com o sangue da luta anterior, e seus ombros rígidos, não eram notados por João Paulo, que ainda estava fixado na ideia de um Bruno insensível.
— Aê, Bruno, você não vai me responder não, filho da puta? — João Paulo insistiu, com raiva pela falta de resposta.
Bruno deu um leve sorriso, quase imperceptível, enquanto sua mente simulara as piores possibilidades. Ele imaginava chegar em casa e encontrar suas irmãs mortas, ou pior, vivas, mas infectadas, e ele teria que matá-las. Esse pensamento torturava Bruno, mas ele preferia mantê-lo em silêncio, não querendo que ninguém visse o que estava realmente acontecendo dentro dele.
— Porque minha irmã não é fraca. Nenhum de nós é, e não vai ser possível prepará-la para esse mundo se eu ficar passando a mão na cabeça dela. Ela precisa aprender a lidar com os próprios sentimentos, sozinha, se quiser sobreviver nesse mundo… — a voz de Bruno foi fria, sem emoção, mas as palavras carregavam uma dureza imensa.
João Paulo virou o rosto para a rua, a frustração tomando conta dele, mas sem poder dizer nada que pudesse mudar a forma como Bruno pensava. Ele apenas comentou, quase em um sussurro:
— Eu queria saber por que ocê é meu melhor amigo, se é tão insensível e frio assim…
Bruno, com uma expressão impassível e sem perder o ritmo da direção, comentou com uma sinceridade brutal:
— É que tu sabe que eu sou um mal necessário, e sabe que tu é o único freio que eu tenho, caso eu perca a minha humanidade e saia matando qualquer um sem muito motivo, né…
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