Capítulo 7 – Além do Medo
Tencionando o punho fechado para forçar cada gota a escorrer para dentro da boca de Bruno, Íris sentia o calor subir pelo braço enquanto seus olhos ardiam num vermelho intenso, quase queimando no escuro. A pulsação ecoava em seus ouvidos, como se o próprio coração quisesse saltar do peito.
No auge daquele brilho, o corte no pulso começou a se fechar sozinho. A pele se juntava num movimento rápido e antinatural, como se fios invisíveis puxassem a carne de volta para o lugar, deixando apenas um risco fino, uma cicatriz nova e fria.
— NÃO, NÃO, NÃO! POR QUE ISSO ACONTECEU, DROGA!? — ela gritou, a voz rachando no ar silencioso da sala, enquanto apertava o próprio pulso com força, quase tentando arrancar dele a resposta.
Tomada pelo desespero, Íris agarrou a faca de novo e, movida pela adrenalina, fez um corte ainda mais profundo. Mas os olhos brilhando forte transformaram o sangue em nada — nem uma única gota surgiu. A ferida se fechou tão rápido que parecia nunca ter existido.
— Não… pode ser… por que isso tá acontecendo…? — a faca caiu de seus dedos e tilintou no chão. Sem forças, ela deitou a cabeça no peito dele, e o choro veio pesado, encharcando a camiseta suja de sangue.
Ela não viu. Mas, segundos depois, veias negras começaram a se espalhar pelo corpo de Bruno, serpenteando sob a pele como raízes escuras. Um a um, os ferimentos dele se fechavam. O peito começou a subir e descer de novo, lento, fraco… vivo.
Bruno começou a tremer como se o frio tivesse finalmente se infiltrado até os ossos. Íris ergueu a cabeça num sobressalto, o coração disparado, certa de que ele tinha partido segundos antes. Quando percebeu o leve movimento do peito dele e a respiração fraca, um soluço escapou de seus lábios.
— Graças a Deus… muito obrigada, Senhor… — murmurou, apertando-o contra si com cuidado, sentindo o corpo gelado dele encostar no seu.
O alívio veio como uma onda morna, mas o tremor dele a fez agir de imediato. Apertando os dentes pelo esforço, ela o carregou até o quarto, cada passo ecoando no silêncio pesado da casa. Assim que o deitou, voltou correndo à sala, trocou a água do balde e terminou de limpá-lo, passando o pano com delicadeza, como se cada toque fosse uma promessa de que ele ficaria bem.
Terminou e puxou um cobertor, envolvendo-o até o queixo. O tecido absorveu o frio que saía dele, e só então Íris soltou um longo suspiro. Seus olhos vagaram pelo quarto até se prenderem no canto oposto: um violão de cordas de aço, novo, pendurado na parede, refletindo a luz fraca da lâmpada.
Ela se aproximou, tirou-o do gancho e sentiu o peso firme nas mãos. Sentou-se ao lado da cama, dedilhou as primeiras notas de Carry On Wayward Son. O timbre agudo preencheu o quarto, quebrando o silêncio opressor. A música parecia aquecer o ar, como se cada acorde afastasse o medo que ainda latejava no peito dela.
À medida que cantava, seu coração desacelerava, e a intensidade do vermelho em seus olhos ia cedendo ao tom natural. As cordas vibravam como se respondessem à sua alma, e o ambiente inteiro parecia se dobrar à melodia — até Bruno, inconsciente, relaxou um pouco o rosto, como se sentisse o chamado.
A identificação com a letra foi tão forte que lágrimas silenciosas escorreram por seu rosto. Íris cantava não apenas para se acalmar, mas como se estivesse contando a história dela, ainda que ninguém mais estivesse ouvindo.
Mesmo dormindo, uma lágrima escorria dos olhos de Bruno. Íris sentiu um nó no peito — talvez a voz dela estivesse chegando até ele nos sonhos. Mas ela sabia que aquela lágrima não vinha da música, e sim dos pesadelos que o assombravam.
A pele antes fria dele agora parecia queimar. Um rubor avermelhado se espalhava pelo tom pardo, enquanto ele girava o pescoço devagar, apertando os dentes num esforço de suportar uma dor que parecia atravessar a carne. Pequenos tremores involuntários sacudiam seu corpo.
No quarto, a luz piscava de leve, como se tudo estivesse suspenso entre a vida e a morte. O vento arranhava a janela, trazendo um cheiro metálico forte — ferro puro, como se o sangue velho estivesse invadindo o ar, misturado ao suor quente e ao odor da luta silenciosa dele.
Íris largou o violão, um medo gelado apertando seu coração. Ela correu até ele e sentiu a pele, quente, quase fervendo. O suor descia dele em gotas lentas, molhando a camisa. Seu pulso tremia nas mãos dela. Ela podia sentir a batalha que acontecia por dentro, uma guerra invisível entre a vida e o que quer que fosse essa maldição que o consumia.
— Se acalme… por favor… fica comigo — sua voz era um sussurro quase desesperado, enquanto o abraçava com toda a força que tinha. Os pensamentos pulavam em sua cabeça, urgentes: “Não posso perder ele… eu não vou deixar ele morrer… o que está acontecendo? Será que é o sangue? Como salvar ele?”
Bruno finalmente abriu os olhos. Eles brilhavam em vermelho carmesim, ardendo como brasa viva. A luz dentro deles pulsava como um coração sangrento batendo em descompasso. Ele ofegava, fraco e assustado — Íris nunca tinha visto aquele medo tão cru.
— Íris… meu… peito… tá… ardendo — sua voz saiu fraca, como um grito sufocado preso na garganta, e seu corpo se contorceu num surto de pânico. Veias negras começaram a surgir em seu pescoço, quase visíveis sob a pele, enquanto um vapor quente saía de sua boca, como se seu corpo estivesse queimando por dentro.
Íris lembrou do frio mortal que ele tinha antes, da pele gelada como gelo. Agora aquele calor intenso, quase sobrenatural, fazia o quarto parecer um forno, e o cheiro metálico no ar ficava ainda mais forte.
Ela apertou seu rosto contra o dele, sentindo seu desespero, pronta para lutar com o próprio inferno para manter ele vivo.
Íris estava perdida, sem saber o que fazer, então abraçou Bruno com toda a força que tinha, tentando transmitir um pouco de calma naquele turbilhão. O desespero dele durou quase vinte minutos — respiração ofegante, tremores, olhos arregalados — até que, aos poucos, a tempestade dentro dele começou a ceder.
De repente, o silêncio caiu pesado na casa. O olhar assustado dele mudou de repente, a respiração desacelerou, e ele parecia… mais presente.
— Tá melhor? — Íris perguntou, a voz baixa, cheia de cuidado, acariciando o rosto dele como quem tenta curar uma ferida invisível.
Era estranho pra Bruno. O único toque gentil que ele conhecia vinha das irmãs, e mesmo esse era raro. A mãe, com quem deveria ter essa conexão, sempre o evitou, como se ele fosse um peso.
Ele tremeu, um misto de choque e vulnerabilidade estampado no rosto.
— O que… tá fazendo? — perguntou, com um olhar de cachorro perdido, assustado, como se o carinho fosse algo estranho demais pra ele.
— Tô cuidando de você. O tempo todo. Você tá melhor? — Íris falou, tentando esconder a própria ansiedade, vendo pela primeira vez aquele garoto forte — e tão quebrado — ser só uma criança assustada.
— Valeu… mas não fica me enchendo de carinho, tá? Não sou ingrato, é só que… ninguém nunca me ensinou a receber isso. Sempre me olharam com desprezo, e… — a voz dele falhou, os olhos ficaram marejados, o corpo tremia ainda mais — eu não sei lidar.
Íris o observava com um olhar que parecia enxergar até as sombras guardadas lá dentro dele. Bruno se levantou devagar, virou as costas e deu um passo à frente, como se quisesse fugir do calor do momento. Foi quando ela não deixou — envolveu-o num abraço firme pelas costas.
— Se você… se sente sozinho — a voz dela falhou por um instante, cheia de uma ternura quase inaudível — eu tô aqui. Se não sabe como receber carinho ou cuidado, pode deixar… eu ensino. Com prazer. Só me prometa uma coisa: não me abandona, não morre. Porque eu vou estar aqui, sempre.
Bruno ficou estático, como se o tempo tivesse congelado. Seus olhos marejados não conseguiam falar nada, mas uma única lágrima escorreu silenciosa, traindo o coração trancado. O corpo dele parecia travado, preso entre o medo e a esperança.
— Obrigado — murmurou ele, as mãos tremendo enquanto se apoiava gentilmente nos braços dela. Um sorriso pequeno, quase um sussurro de vida, brotou em seus lábios.
Íris apertou aquele abraço com toda a força que tinha, sentindo uma mistura quente de medo, alívio e determinação que transbordava de dentro dela.
— Sou eu que agradeço. Por você existir. Por não ter desistido de mim, mesmo quando tudo parecia perdido. No silêncio que veio depois, só o som das respirações compartilhadas preenchia o quarto, e ali, entre sombras e luzes tênues, dois mundos feridos encontravam um pequeno pedaço de paz.
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