Sentado numa cadeira, mergulhado nos próprios pensamentos, Bruno encarava Íris dormindo. Ele mesmo não pregara os olhos a noite inteira. As palavras da noite anterior ainda ecoavam como marteladas na sua mente, repetidas, irritantes, impossíveis de calar. Mas não era só isso que o mantinha desperto — havia algo muito pior. Um medo profundo, quase instintivo, de fechar os olhos e se entregar ao sono.

    O suor lhe escorria pelas mãos, frio e pegajoso. Seus dedos tremiam levemente, como se até o ato de piscar fosse um risco. de Fechar os olhos por um minuto… nem pensar. Aquilo parecia dar ao inimigo dentro dele a brecha perfeita para atacar.

    — Maldição… — rosnou em pensamento, os dentes travados — como se já não bastassem as merdas que eu tenho que ver quando estou acordado… agora eu ainda tenho a porra um alter ego, só esperando a chance maldita de voltar pra me torturar nos sonhos.

    Seu rosto carregava um ódio seco, os olhos vermelhos queimando na penumbra, as olheiras escuras como manchas de tinta, afundando ainda mais seu semblante.

    Na cama, Íris se mexeu. Abriu os olhos devagar, puxando o ar como se emergisse de um pesadelo. Sentou-se, ainda meio perdida, e desviou o olhar para a janela, por onde a luz do sol entrava e espalhava clarões mornos pelo quarto.
    — Conseguiu dormir? — perguntou, voltando os olhos para ele. Sua voz saiu rouca, o cabelo desgrenhado, e a expressão era de alguém que também carregava o peso de uma noite maldormida. — Não abusa da sorte… se usar demais o vínculo de sangue, ele vai sugar tudo de você — disse, a voz mais grave e o olhar afiado, como se cada palavra fosse um aviso com ameaça embutida.

    — Mohammad? — Íris o chamou, hesitando por um instante enquanto calçava o tênis.

    O canto da boca dele curvou levemente, mas não era um sorriso amistoso.
    — Sim. Como você se sente? — perguntou, observando-a como se medisse cada movimento. — Tá bem fraca, né?

    — O que era aquela coisa de ontem? Os olhos dela eram brancos, quase mortos… — Íris estreitou os olhos, firme, esperando respostas.

    Ele inclinou a cabeça, sustentando o olhar dela.
    — Acho que era como eu. E não tenho como dizer o que ele era… tudo o que sei, você também viu e ouviu.

    — Como assim? — a voz dela carregava confusão e um leve incômodo.

    — Eu vejo e ouço tudo o que você vê e ouve. Qualquer um que tenha tomado do meu sangue. — O tom dele tinha um peso que soava mais como domínio do que como explicação. — Como acha que conseguiu enfrentar ele sem medo? Estamos conectados. O que você sentir, eu sinto. O que você ouvir, eu ouço. E… — um breve sorriso frio surgiu — se eu quiser, posso falar com você… ou através de você.

    Íris travou a mandíbula, evitando encará-lo.
    — Eu não gostei de ouvir isso.

    — Não precisa gostar — ele retrucou, já desviando o olhar como se o assunto estivesse encerrado. — Faz alguma coisa pra gente comer, Íris.

    — Pode ser, Mohammad… tô indo lá — ela respondeu, mas sua expressão deixava claro que preferia estar em qualquer outro lugar.

    — Desde quando você me chama pelo meu nome? — ele perguntou, agora com um tom que misturava curiosidade e ironia.

    — Deixa quieto… — ela saiu, apressada, fingindo indiferença.

    Bruno voltou a si, piscando como se estivesse saindo de um transe. Olhou para o violão no canto, pegou-o e passou os dedos pelas cordas sem muita habilidade.

    Algum tempo depois, saíram juntos da casa. O violão, agora dentro de uma capa preta, pendia do braço dele.

    Os dois seguiram em direção ao bairro Amaro Ribeiro. O asfalto estava todo esburacado, com rachaduras engolindo raízes e pedaços de entulho. Postes tortos, alguns com fios pendurados, rangiam ao vento. Carros batidos ocupavam partes da rua, alguns com portas abertas, outros virados de lado, como se tivessem sido arrastados e largados ali. Sacolas plásticas e papéis dançavam no ar, empurrados por uma brisa morna que trazia o cheiro azedo de lixo molhado.

    Mal tinham dado alguns passos quando Íris quebrou o silêncio.

    — Por que você tá com esse violão? E… aliás, pra onde a gente vai? — perguntou, enfiando uma mão no bolso enquanto a outra segurava firme uma faca pontiaguda, o olhar atento a cada beco e esquina.

    Bruno lançou um olhar rápido para ela, mas logo desviou, como se estivesse preso em pensamentos mais profundos. O cansaço da noite sem dormir e o peso das últimas horas latejavam nele. Sentia uma pressão no peito, como se fosse explodir num grito de guerra. Apertou o braço contra o violão, se contendo.

    — Precisamos de um lugar bom pra treinar… e descansar. Sinto que tô no meu limite mental e físico. Não pode ser pequeno ou fechado, pra não bloquear nossa visão da rua caso a gente precise sair rápido — disse, passando os olhos pelas fachadas quebradas dos prédios e pelos portões meio caídos. — E o violão… bom, sempre quis aprender a tocar. Só nunca tive um fraga, sabe?

    Íris o encarou, sem pressa. Passaram por uma bicicleta jogada no chão, a corrente quebrada e a roda dianteira girando sozinha com o vento. Ela tirou uma bala de menta do bolso, desembrulhou e jogou na boca.
    — Se quiser, eu te ensino. — Estendeu outra bala para ele.

    Bruno pegou, jogou na boca e continuou:
    — Não vou achar ruim. E… completando o que eu tava dizendo… quero um lugar bom pra estudar os infectados e entender o que tá acontecendo comigo. Tem hora que eu… apago do nada. Depois, só lembro de pedaços — tipo mais cedo. — Virou o rosto para ela. — Então, Íris… como é que eu fico? O que acontece comigo nesses momentos?

    Ela puxou a faca um pouco mais pra perto do corpo, desviando o olhar para um ônibus tombado na esquina, metade da lataria pichada, metade coberta por fuligem.
    — Você já sabe a resposta, Bruno. — E continuou andando.

    Ela desviou o olhar e puxou o ar devagar, como se estivesse se preparando para perguntar:
    — Já pensou na possibilidade de ter dupla personalidade?

    — No começo achei que fosse só alucinação — respondeu, o tom carregado de um cansaço quase irritado. — Mas não demorou muito pra eu começar a ouvir uma voz na minha cabeça. Era como se outra versão minha odiasse cada escolha que eu fazia… e, aos poucos, tentasse tomar o meu lugar. — Fez um gesto com a cabeça, mudando de direção. — Ah, vamos subir esse morro.

    As pedras irregulares do calçamento rangiam sob os tênis, algumas soltas, outras tomadas por musgo escuro e úmido. Pequenos fragmentos se soltavam a cada passo, deslizando morro abaixo com um som seco. As casas, espremidas lado a lado, tinham portões enferrujados e portas entreabertas que balançavam com o vento, soltando rangidos descompassados. No canto de uma viela, um cachorro magro farejava um saco de lixo rasgado, espalhando o cheiro forte de carne azeda pelo ar.

    A rua estava quase deserta. Mesmo conversando, os dois varriam o cenário com os olhos, atentos a cada sombra e ruído distante. O sol iluminava tudo, mas o calor parecia pesar no ar, e eles sabiam que infectados, quando surgiam durante o dia, vinham com uma fúria ainda maior.

    Íris reconheceu o trajeto, o que fez seu olhar estreitar.
    — A gente tá indo pra escola… a Antero Chaves?

    Bruno sorriu de canto, um sorriso firme, como quem já tinha a decisão tomada.
    — Estudei lá a maior parte da minha vida… antes de ir pra escola de baixo do Paulo VI. — Seus olhos se perderam por um instante, como se buscasse memórias antigas. — E, se não me engano, quando tudo começou, tinha alguma festividade rolando lá… acho que era interclasse ou algo assim. É provável que o portão esteja aberto… e quem sabe algum conhecido meu tenha sobrevivido. Pode ser aqui na marriba… ou até mesmo na escola.

    — Marriba? Como assim? — ela o questionou, achando engraçado o jeito que ele falou, deixando escapar um leve sorriso de canto.

    — Eu e meu primo Nana… quer dizer, o inseto que se chamava Anael — começou Bruno, com um meio sorriso — sempre chamamos o bairro Amaro Ribeiro de Marriba. Saudades daquela cara de cu com câimbra que ele tinha… eu não conseguia trocar duas palavras com ele sem zoar a cara dele ou inventar um apelido novo. — A última frase saiu com um olhar triste, mas cheio de nostalgia.

    Íris passou o braço por cima do ombro dele e bagunçou os cachos rebeldes da sua cabeça. Estranhamente, aquilo não o irritou nem o incomodou; pelo contrário, foi quase natural.

    — Aí… você gosta de mim? — ele perguntou, envergonhado, a voz baixa, olhando para o chão e para a imensa rua de pedra que se estendia à frente.

    — Gosto sim… acho que até posso dizer que você é meu herói. — respondeu ela, com um olhar simpático e o rosto levemente corado.

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