Tudo começou em um daqueles dias que a gente sente que o mundo tá segurando a respiração.

    Ainda era cedo… cedo demais. Nem o sol tinha dado as caras. A escuridão gelada da madrugada ainda dominava tudo, e a neve caía lenta, silenciosa, cobrindo o mundo com aquele branco limpo que só dura até alguém passar por cima.

    Mas, estranhamente, estava bom.

    O frio mordia minha pele, mas não era incômodo. Era… familiar. Como o toque áspero de uma memória boa, que a gente sente sem perceber. Antes de partir pra Academia Fjorheim, ainda estava lá… na Camada 5. Jotunheim.

    Fria de manhã, abafada à tarde, com um vento teimoso que nunca para — sempre assobiando pelos campos como se tivesse com pressa de chegar em algum lugar. Foi ali que eu nasci. Foi ali que fui moldado. Numa parte afastada, bem longe da movimentação da capital da camada, aquela cidade gigante cheia de torres altas e casas empilhadas como se o chão fosse acabar.

    A minha casa… bom, ela era o exato oposto disso.

    Nada de luxo, nada de tecnologia brilhando nas paredes, nada de vizinhos falando alto voando. Só a madeira rangendo no piso, o cheiro de pão assando na lenha de manhã, e a voz firme de Katarina me chamando do lado de fora. A mulher que me criou. A única que podia me dar bronca e ainda assim me fazer sentir seguro.

    Os cabelos dela eram de um laranja vivo, como fogo queimando sob a neve. Os olhos, verdes como folhas novas na primavera — embora sempre parecessem mirar o mundo com a ferocidade de uma fera. Bruta, sim. Bruta como um trovão. Mas com um coração que não precisava ser dito em palavras. O rank dela? 236.901, bem marcado no antebraço. Um número que, naquele mundo injusto, significava quase nada. Mas Katarina? Ela nunca foi “quase” nada.

    Ela era tudo.

    E mesmo com aquele número absurdo, ela andava com o queixo erguido, o passo firme, como se fosse dona da camada inteira. E, pra mim, ela era.

    Naquela manhã… aquela manhã silenciosa, com cheiro de gelo e céu acinzentado… eu achei que a minha vida ia, finalmente, começar. Academia Fjorheim. O primeiro passo rumo ao que eu achava ser “o meu destino”.

    Mas o que eu não sabia… é que, naquele mesmo passo, eu estava pisando direto no tabuleiro de algo muito maior. Um jogo que já estava em andamento — e onde eu era só mais uma peça sendo empurrada.

    PÁ!

    — AÍ! — reclamei, segurando a cabeça onde o soco caiu seco.

    — Hoje é seu primeiro dia lá, seu mula — ela falou, com aquela voz grave que parecia ressoar dentro do peito. — Não arruma briga, ouviu? Nem encrenca. Arruma uns amigos decentes, talvez uma namorada, sei lá. Eu tô feliz por você ter passado. De verdade. Então vê se se dá bem, tá?

    — Tá, tá… podia ter falado isso sem me agredir, né? Mas beleza. Tô indo — resmunguei, ainda esfregando a cabeça.

    Ela cruzou os braços e ficou ali me encarando com um sorrisinho que misturava orgulho e ameaça.

    — Volta pra visitar de vez em quando, hein? Não fica só naquele lugar se achando. Eu vou cobrar, ouviu?

    — Pode deixar… E… diz desculpa pro pai por mim. Por ele não ter se despedido.

    Katarina deu um suspiro mais suave, o tipo de suspiro que ela raramente soltava.

    — Ele entende. Vai, anda logo. Hoje tem aquela cerimônia de recepção lá, e você… — ela estreitou os olhos, enfiando os dedos no meu ombro com força — é melhor não se atrasar, entendeu?

    — T-Tranquilo, mãe… — respondi, rindo nervoso. Tinha um certo medo dela, mas ao mesmo tempo, um carinho absurdo. Era impossível não amar aquela mulher.

    Minha mãe biológica? Era um mistério pra mim nessa época: ela era amiga de Katarina no passado. E quando eu nasci, fui entregue aos cuidados dela. Já meu pai biológico… Eu não faço a mínima idea. Mas quem se fez presente, quem me criou e me deu tudo, foram Katarina e meu pai adotivo Fernandes — um cara legal pra caramba, diga-se de passagem.

    Pra subir de uma camada pra outra, você precisa mostrar seu rank ou ter uma autorização de alguém mais poderoso. Tipo um passe de acesso especial. Mesmo que você tenha um rank “proibido” pra uma camada, com autorização, você pode subir. E aí é só entrar no elevador de luz — aquela coisa absurda que brilha como se rasgasse o céu. A viagem é rápida, alguns minutos no máximo.

    Chegando no ponto de acesso, apresentei meus documentos e meu rank. Os guardas que tavam ali me olharam com aquela cara de “hm… esquisito”. Eu meio que já esperava isso.

    É que, por parte de sangue, eu sou do Clã da Escuridão. Um dos quatro grandes clãs mais influentes do mundo. Minha mãe biológica era de lá. E, como todo clã, o da Escuridão é dividido por famílias — algumas principais, outras secundárias. E acredito que sou de uma dessas bem distantes. Mas ainda assim, carrego parte daquela herança… meio que no visual. Os membros do clã têm olhos roxos e cabelos pretos intensos. Eu também tenho o cabelo escuro, mas… meu olho direito? Rosa. Isso mesmo. Rosa. E não é lente, não. Nasci assim. E isso sempre causou um certo incômodo nas pessoas.

    Apesar disso, o clã me deu suporte. Pagaram meus estudos. Mandaram até um mestre pra me treinar. Mesmo sem me conhecerem direito. Mesmo eu sendo de uma família periférica. Nunca entendi bem o motivo, mas… sou grato. Muito grato.

    Então fui até a academia. E aí estava ela… a tal Academia de Fjorheim.

    Cara, eu sabia que seria grande, mas não tão grande. Era como se eu tivesse entrado em outro mundo — um que tinha se esquecido de avisar que era quase uma cidade inteira.

    Só os prédios residenciais, onde os alunos ficam, já eram cinco. E cada um tinha seu próprio estilo, arquitetura e identidade. Mas o que me pegou mesmo foi o prédio principal da academia. Não era só “grande”, era estranhamente grande. No centro de tudo, havia um círculo feito de vidro puro, com partículas de luz flutuando dentro como se estivessem vivas, dançando num ritmo que só elas entendiam.

    Os prédios e torres da academia não seguiam um padrão monótono como os de cidades comuns. Não. Aqui, as cores explodiam nos olhos: azul vibrante, vermelho intenso, laranja flamejante… e um roxo profundo. Esse último, o prédio roxo, chamou minha atenção logo de cara. Não sei por quê, mas tinha algo nele. Uma sensação… uma curiosidade incômoda. Tipo, “entra aqui e você vai descobrir algo que talvez não devesse”.

    E em cada canto, havia brasões. Muitos. Como se os clãs fizessem questão de mostrar presença. Lá estavam os brasões do Clã da Luz, Clã da Escuridão, Clã Enola e Clã Misticia, todos esculpidos com perfeição nos pilares e entradas.

    E claro, o brasão da família real Asgard. Esse… esse era diferente. Uma torre dividida em dez partes, com um design minimalista, mas carregado de simbolismo. No topo da torre, três pedras preciosas brilhavam — cada uma representando um dos Três Palácios. Era bonito… até demais. Tipo aquele tipo de beleza que, quanto mais você olha, mais você sente que tem algo errado ali.

    Ah, e o brasão da igreja, um sol, também tava presente, como se dissesse: “não se esqueçam, nós também mandamos aqui”.

    Enquanto eu caminhava por entre os estudantes, percebi os olhares. Muitos olhares. Não me dei ao trabalho de encarar ninguém diretamente, mas dava pra sentir. Gente cochichando, outros parando o que estavam fazendo só pra me fitar. Provavelmente por causa do meu olho rosa. Não me surpreendia mais. Já tava acostumado com isso.

    Segui andando e passei por uma ponte de pedra esculpida à mão sobre um rio cristalino que cortava parte da área da academia. A água refletia as luzes artificiais do “céu” da camada como um espelho distorcido, criando um clima bem… pacífico. Provavelmente vou voltar aqui outro dia. Parece um bom lugar pra dar uma pausa do caos.

    Mas enfim, fui em direção à cerimônia de recepção.

    O lugar tava lotado. Sério. Era uma maré de alunos — veteranos, novatos, os que fingem ser descolados e os que realmente são. Quase todos já estavam sentados ou agrupados em rodas, esperando alguma coisa acontecer. Olhei em volta, tentando captar detalhes, e foi aí que vi os professores.

    E um deles… bom, um deles se destacou como um raio no meio da tempestade.

    Alto, com cabelos negros bagunçados que pareciam desafiar a gravidade, e olhos vermelhos como brasa. Não eram só vermelhos — eram intensos, como se estivessem sempre prestes a incendiar o ar ao redor. O sorriso dele… era o tipo que fazia a espinha gelar. Não porque parecia gentil, mas porque dava a sensação de que ele sabia de algo que você não sabia. Algo perigoso.

    Vestia um quimono preto estiloso, com símbolos de pássaros bordados e uma arte detalhada nas costas — uma montanha solitária e um pássaro em pleno voo, provavelmente um falcão. Os detalhes em vermelho no tecido davam um toque de ferocidade, e o jeito como ele carregava aquilo… era como se dissesse: “eu não preciso te provar nada, você sabe que eu sou forte”.

    Fiquei encarando por alguns segundos, meio hipnotizado. Esse cara vai dar trabalho… ou vai ser meu professor favorito.

    De repente, a movimentação aumentou. Os alunos começaram a cochichar e virar os olhos pro palco.

    Quatro figuras surgiram caminhando com presença, e entre elas, uma chamou atenção geral. Ouvi o nome sussurrado ao meu redor como se fosse o de uma lenda.

    — Olha… é a presidente do conselho estudantil… a Solara Whitmore.

    No começo, eu nem liguei. Só mais uma aluna veterana com cargo, né? Mas aí… eu olhei diretamente nos olhos dela.

    No olho esquerdo… estavam lá. Três estrelas negras. Brilhando com uma intensidade absurda. Um símbolo que dispensava apresentações.

    Três estrelas negras. Todo mundo sabia o que isso significava. Não era só status. Era poder. Influência. Reconhecimento. Gente com esse símbolo… eram os monstros da academia. Os que você quer evitar ou… desafiar, se for louco o bastante.

    Eu engoli em seco.

    Acho que meu ano vai ser mais agitado do que eu esperava.

    Solara Whitmore subiu ao centro do palco com a calma de quem já carregava o peso do mundo nos ombros — e ainda assim, fazia isso parecer fácil.

    Mesmo sob a luz artificial intensa da academia, os olhos dela brilhavam como se fossem os únicos reais ali. Cada passo que dava parecia guiado, elegante, quase ensaiado, mas de um jeito natural demais pra ser falso. O uniforme dela? Impecável. Ajustado como se tivesse sido moldado no próprio corpo. E ali, no olho esquerdo, estavam elas — três estrelas negras dentro de suas íris. Pulsando, literalmente, com a energia viva ao redor, como se a própria academia as reconhecesse.

    Ela pegou o microfone com delicadeza, como se não fosse nada demais. E então sorriu.

    Aquele sorriso…

    Suave. Gentil. Desarmante. Como uma brisa fresca num campo em chamas.

    Na hora, até os alunos mais inquietos se calaram. O silêncio caiu como uma cortina pesada, e por um segundo, todo mundo só… respirou.

    — “Sejam muito bem-vindos… à Academia Fjorheim!”

    A voz dela era clara e confortável, como se acariciasse os tímpanos de quem ouvia. E mesmo falando com milhares, parecia que ela olhava direto pra você.

    — “Alguns de vocês vieram de camadas mais altas… outros, das profundezas.”
    — Ela fez uma breve pausa, os olhos varrendo o mar de alunos à sua frente.
    — “Muitos carregam o orgulho de seus clãs, suas linhagens, suas histórias. E alguns, talvez, estejam aqui fugindo… da própria sombra.”

    “Tsc… ela até que fala bonito.”

    — “Mas aqui…” — o tom dela mudou, mais firme, mais real — “…não importa de onde vocês vieram. Aqui, o que define vocês não é a família. Nem o poder. Nem o nome. E definitivamente não o número gravado no corpo de vocês.”

    Ela inclinou levemente a cabeça para o lado, o sorriso ainda ali, mas agora com um toque de algo mais sério.

    — “O que vale aqui… é quem você escolhe ser.”

    As palavras bateram como uma pancada seca. Eram doces, mas doíam. Eram verdadeiras. Diretas. Difíceis de ignorar.

    Cruzei os braços, tentando manter a pose de desinteressado. Mas, sinceramente? Eu tava ouvindo. Muito mais do que gostaria de admitir.

    — “Vocês vão aprender sobre seus códigos genéticos, combate, táticas, controle. Vão estudar política, estratégia, história… mas também vão aprender a cair. A perder. A falhar.”

    Ela deu uma risadinha curta, leve, quase brincalhona. Os olhos se fecharam por um segundo, e a expressão dela suavizou ainda mais.

    — “…E se tiverem sorte… vão aprender o que significa levantar de verdade.”

    Esse sorriso dela é perigoso…
    Ele não te mata. Te faz baixar a guarda. Te faz confiar. E então — boom — já era.

    — “Alguns de vocês vão se destacar. Outros, talvez, nunca cheguem ao topo.”

    Ela deu um passo à frente. Estava mais perto da borda do palco agora, mais próxima da multidão. Como se estivesse prestes a contar um segredo pra todos ao mesmo tempo.

    — “E sabem o que eu penso sobre isso?” — ela arqueou levemente a sobrancelha, e o silêncio se tornou absoluto.

    — “Tudo bem.”

    Só isso.

    Mas dito do jeito que ela falou… era como se fosse a resposta de uma vida inteira de perguntas.

    O sorriso cresceu um pouco mais, mas ainda era o mesmo — gentil, calmo, confiante até o osso.

    — “Fjorheim não é uma corrida. É uma forja. E vocês… são o metal.”

    O efeito foi imediato. Alunos murmurando. Alguns sorrindo. Outros claramente incomodados. Aqueles que vieram se achando invencíveis provavelmente não curtiram a ideia de que ainda precisariam “ser moldados”.

    Ela fala como se fosse fácil… três estrelas. Aposto que nunca caiu de verdade.

    Mas, por alguma razão… algo nas palavras dela grudava na pele.

    Ela ergueu os olhos, mirando o teto metálico da academia como se fosse o próprio céu.

    — “Se quiserem ser líderes… heróis… professores, soldados, políticos, ou só alguém que quer viver em paz…”

    A voz dela desceu um pouco. Ficou mais íntima. Quase triste. Quase… sincera demais.

    — “…tudo começa aqui. Tudo começa agora.”

    Ela se virou de lado, estendendo o braço com firmeza. Era como se rasgasse o ar e abrisse um portal invisível pro futuro.

    — “Bem-vindos à nova etapa. Lutem com honra. Errem com coragem. Amem sem vergonha. E acima de tudo…”

    E foi aí que aconteceu.

    O olhar dela… se fixou em mim. Só por um segundo. Mas foi o bastante.

    Meu corpo travou. O coração bateu uma vez, forte demais. E depois outra. E outra.

    — “…nunca se esqueçam de que vocês estão vivos. E isso… já é um milagre.”

    A explosão de aplausos veio logo depois, quase ensurdecedora. Mas eu continuei parado. Sem me mover.

    Aquela frase…
    “Estão vivos.”

    Ela falou como se soubesse o que era não estar.
    Como se tivesse visto o fim e voltado.

    Interessante.
    Perigosa.
    Profunda demais pra ser só aparência.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota