Ela tentou se levantar do chão tão rápido que a gravidade pareceu discordar.

    Num movimento brusco, suas pernas se enrolaram no tecido pesado do vestido. Ela cambaleou, tentou se segurar no ar e, numa tentativa desastrosa de recuperar a compostura e fazer uma reverência, girou o quadril rápido demais.

    BAM.

    A parte de trás dela bateu com tudo numa mesinha de metal cheia de tralhas.

    CRASH!

    A mesinha virou. O som de vidro quebrando, ferramentas de metal rolando e papéis deslizando preencheu a sala. Uma chave de fenda girou no chão até bater no meu pé.

    Ela congelou. Virou-se para nós com os olhos arregalados e um olhar de puro pânico, o rosto ficando tão vermelho que competia com as luzes de alerta da oficina. Parecia que ela ia evaporar de vergonha ali mesmo.

    Mina, ao meu lado, suspirou. Sem nem tentar disfarçar, murmurou alto o suficiente para ser ouvido:

    — Que mulher… esquisita.

    E eu não poderia concordar mais. A aura de mistério da sala tinha sido assassinada por uma bunda batendo numa mesa.

    Antes que pudéssemos dizer qualquer coisa ou oferecer ajuda, a mulher respirou fundo.
    Numa velocidade impressionante, ela enxugou as lágrimas e o nariz com a manga cheia de babados do vestido. Endireitou a postura, estufou o peito e, com uma voz calma, doce e aveludada (completamente diferente da chorona caótica de segundos atrás), falou:

    — Me desculpem! Eu estava… no meio de um experimento de alta complexidade e… me distraí com a dor física.

    Ela pigarreei, tentando recuperar um mínimo de dignidade no meio dos cacos de vidro.

    — Meu nome é Maria Donroxye. Eu sou uma das administradoras chefes da Academia Fjorheim, responsável por toda a Mansão Roxa e pelo Departamento de Pesquisa e Desenvolvimento.

    Na hora, Mina, que até então só observava com tédio, arregalou os olhos. A postura dela mudou.

    Donroxye? — repetiu ela, surpresa. — Você é da Família Donroxye? A linhagem de alquimistas da Segunda Camada?

    Maria assentiu timidamente, encolhendo os ombros, como se preferisse que esse detalhe não fosse mencionado.

    — Sim… infelizmente, carrego esse peso.

    Eu olhei ao redor mais uma vez.
    A Segunda Camada, Vanaheim. O lar dos nobres de elite.
    Então essa bagunça toda reflete a mente de uma gênia da Segunda Camada… pensei. Faz sentido. Um lugar tão caótico quanto sua dona.

    Maria ainda parecia nervosa, mexendo nos dedos machucados, quando perguntou, meio desajeitada:

    — E vocês… quem são? Alunos perdidos?

    Dessa vez, ela parou de olhar para o chão e olhou direto nos nossos olhos. Como se, só agora, a neblina do choro tivesse sumido e ela estivesse realmente nos vendo.

    E naquele instante, a atmosfera mudou.
    A timidez sumiu.

    Os olhos verdes dela brilharam como se tivessem encontrado um veio de ouro puro.

    — V-vocês… — ela gaguejou, apontando para Mina. — Você é do Clã Misticia, não é?

    Os olhos dela varreram o quimono florido, o penteado, a postura.

    — Tecidos de seda da Camada 3, bordados à mão… aura floral… Inconfundível!

    Depois, ela se virou para mim.
    Seus olhos scanearam meu rosto, parando abruptamente. Fixaram-se no meu olho direito.

    O brilho nos olhos dela ficou maníaco. Intenso. Quase assustador.

    — E você… do Clã da Escuridão… — murmurou, a voz saindo num sussurro de admiração. — Mas esse olho…

    Ela engoliu em seco.

    — Rosa…

    Foi como se ela estivesse vendo uma galáxia inteira dentro da minha íris.

    Maria se aproximou de repente. Sem cerimônia, sem aviso, invadiu meu espaço pessoal.
    Ela segurou meu rosto com as duas mãos pequenas e geladas. Puxou-me para baixo levemente, ficando na ponta dos pés, encarando meu olho direito a centímetros de distância. Eu podia sentir a respiração dela, levemente trêmula e com cheiro de hortelã, batendo no meu rosto.

    Ao meu lado, senti a temperatura subir.
    Vi Mina bufar, cruzar os braços com força e virar o rosto para o lado, batendo o pé no chão. A expressão dela era um misto de irritação e… algo mais.

    Maria, alheia a tudo e a todos, continuou segurando meu rosto, virando-o para a esquerda e para a direita.

    — Que magnífico… — Seus olhos cintilavam. — Os membros do Clã da Escuridão possuem olhos roxos como marca genética dominante… Mas você… você é uma anomalia!

    Ela soltou meu rosto finalmente, recuando e levando a mão ao queixo num gesto pensativo, falando sozinha:

    — Seu olho direito é rosa… a pigmentação é única. A refração da luz na íris é diferente. Que coisa mais interessante! É lindo! Eu estou tão animada para te estudar… claro, se você permitir!

    “Estudar?”, pensei, arqueando a sobrancelha, meio desconfiado daquela empolgação científica.

    Mas logo dei de ombros mentalmente.
    Ué, por que não deixaria?
    Sempre achei que esse meu olho era só uma peculiaridade estética, um “charme” como o Shin dizia. Minha mãe adotiva, Katarina, comentou uma vez que minha mãe biológica tinha uma leve fenda rosada no centro dos olhos… talvez fosse apenas genética recessiva. Não via problema em deixar Maria analisar, se isso me desse respostas.

    Desviei o olhar para Mina. Ela ainda estava emburrada, fuzilando um armário com o olhar.
    “Ciúmes?”, me perguntei, segurando um sorriso. Bem… interessante. Mas melhor não cutucar a onça agora.

    Enquanto começava a juntar os cacos de vidro e as ferramentas da mesinha derrubada, Maria pareceu voltar à realidade. Ela sacudiu a cabeça, os cachos roxos balançando.

    — Mas, afinal… — disse ela, jogando uma chave de fenda numa caixa. — O que vocês dois vieram fazer aqui na minha oficina? A biblioteca fica no andar de baixo. Aqui é área restrita para mentes… ahn… criativas.

    Antes que eu pudesse abrir a boca para responder à pergunta de Maria sobre o que fazíamos ali, Mina se adiantou. Ela deu um passo à frente, o queixo erguido, tentando recuperar a dignidade que a batida no armário tinha levado.

    — Eu vim buscar novos leques. — Ela cruzou ainda mais os braços, apertando o tecido do quimono, claramente emburrada. — Os meus… quebraram. E meu código genético precisa deles como catalisador.

    Maria piscou, processando a informação, e logo abriu um sorriso prestativo. Ela andou pela sala desajeitadamente, desviando de pilhas de livros e peças de metal, até chegar a um armário alto de madeira escura encostado na parede.

    A porta rangeu ao abrir. Maria revirou algumas caixas, murmurando coisas como “não, esse explode…” e “esse é venenoso…”, até que finalmente puxou um par de leques longos.
    Eles eram belíssimos. A estrutura era de um vermelho profundo, quase sangue, com a seda pintada em traços de um azul vibrante que parecia brilhar na penumbra da oficina.

    — Achei! — exclamou ela, soprando a poeira. — Estes são feitos por uma linhagem antiga de artesãos que prestam serviço ao Clã Misticia. A madeira é tratada com Seiva de Ferro. São bem resistentes e conduzem energia muito melhor que os comuns.

    Ela os estendeu para Mina com um sorriso tímido.

    Mina pegou os leques, testando o peso. O rosto dela suavizou por um instante, admirando a qualidade, mas logo ela voltou à pose defensiva, soltando um resmungo baixinho:

    — Humph… servem.

    Então, os olhos verdes de Maria se voltaram para mim, cheios de uma expectativa quase elétrica. Ela olhava para o meu olho, depois para minhas mãos, esperando o “objeto de estudo”.

    Nem precisei perguntar.
    Com um movimento calmo, estendi a mão direita. O ar distorceu, e a fenda negra do meu armazenamento dimensional se abriu. Puxei minha adaga.
    A lâmina larga, com seus detalhes em vermelho e o metal escuro desconhecido, absorveu a luz da sala. Apontei o punho na direção dela.

    — Bem… — comecei, sentindo o peso familiar da arma. — Eu queria que você analisasse essa adaga. Meu antigo mestre me deu ela há anos, mas nunca me explicou o que ela é. Ele só disse que ela tem uma habilidade peculiar…

    Fiz uma pausa, lembrando das palavras dele.

    — Ele disse que ela pode “cortar qualquer coisa que eu desejar”.

    Maria segurou a respiração. Com um respeito quase religioso, ela pegou a adaga das minhas mãos.
    Ela a levou para perto de uma das orbes de luz, examinando cada centímetro da lâmina, a textura do cabo, o equilíbrio.

    — Eu nunca vi uma liga metálica como essa… — murmurou ela, os olhos brilhando com fascínio científico. — Não emite radiação mágica comum, mas tem uma densidade… estranha. Como se o metal estivesse “faminto”.

    Ela olhou para mim, séria.

    — Não sou exatamente especialista em armas de combate, minha área é mais biológica e alquímica, mas posso tentar fazer algumas análises de composição se você me permitir ficar com ela por alguns dias.

    Assenti, tranquilo.
    — Sem problemas. Cuide bem dela.

    Enquanto colocava a adaga sobre a mesa recém-arrumada (e longe da beirada, para não cair de novo), Maria se virou para nós, limpando as mãos no vestido cheio de babados.

    — Vocês… — ela hesitou, a timidez voltando com força total. — Querem tomar um café? Ou chá…? Eu tenho biscoitos também. Acho que não estão vencidos.

    A voz dela saiu tão baixa que parecia estar pedindo desculpas por oferecer comida.

    Mina, que ainda estava emburrada num canto, foi a primeira a aceitar.
    — Chá. Sem açúcar. — disse ela, sentando-se numa banqueta.

    Aquilo arrancou uma risadinha discreta de mim. Aceitei também, claro.

    E assim, o que era para ser uma visita rápida virou a tarde inteira.
    Passamos horas naquele salão bagunçado, envoltos numa fumaça suave de incenso e cheiro de chá de ervas.

    Descobri que a Família Donroxye não era apenas influente; eles eram a espinha dorsal da medicina no nosso mundo. Pesquisadores, cientistas, curandeiros de elite. E Maria… bem, Maria era a oitava filha de quatorze irmãos.
    Catorze.
    Ela contou que, desde pequena, sempre foi a “estranha” da família, com sua personalidade avoada, seus desastres constantes e uma paixão obsessiva por experimentos que geralmente terminavam em explosões.

    O mais curioso era que, apesar de seu sobrenome pesado e da tradição, ela não tinha uma gota de arrogância.
    Mesmo quando a conversa girou e ela “descobriu” (fingiu descobrir, eu acho) que Mina carregava o sobrenome da Rank 4 do mundo — uma revelação que faria a maioria das pessoas tremer ou bajular —, Maria nem piscou. Ela continuou sorrindo, oferecendo biscoitos e falando sobre propriedades de plantas venenosas como se estivesse batendo papo com velhos amigos de infância.

    Mina, aos poucos, relaxou. Pela primeira vez, vi a “nobreza” dela baixar a guarda de verdade.


    O tempo voou. Quando finalmente percebemos, as orbes de luz da oficina eram a única iluminação, e o céu lá fora já estava escuro.

    Despedimo-nos de Maria (que quase derrubou a porta ao tentar fechá-la) e deixei Mina no dormitório feminino.

    Caminhei até o Bloco C, cansado, mas com a mente leve.
    Quando a porta do meu quarto deslizou, o cheiro de sândalo me atingiu.

    Encontrei Levi parado na frente do espelho de corpo inteiro.
    Ele estava de pijama de seda (sim, seda), penteando seus longos cabelos escuros com movimentos lentos e rítmicos, como se estivesse se preparando para uma sessão de fotos para a capa de uma revista de moda.

    Ele parou o pente no meio do ar.
    Olhou-me através do reflexo do espelho. Os olhos negros eram frios, mas havia um brilho sutil, quase imperceptível, de alívio.

    Ele se virou lentamente, a expressão séria.

    — Jovem Orquídea… — começou ele, com sua voz arrastada e teatral. — Eu já lhe disse que os horários de sono de um guerreiro — e principalmente de um homem belo — são sagrados.

    Ele apontou o pente para mim como se fosse uma espada.

    — Você ficou fora até tarde. Segundo meus cálculos, você já perdeu exatos vinte e três minutos do ciclo de sono reparador. Isso vai comprometer seus rendimentos futuros, causar olheiras indesejáveis e desequilibrar sua pele!

    Revirei os olhos, jogando minha mochila na cama de baixo.
    — Boa noite pra você também, Levi.

    — Não me venha com sarcasmo! — Ele voltou a pentear o cabelo com indignação. — Amanhã vou te acordar vinte minutos mais cedo para compensar com hidratação facial.

    Suspirei, deitando na cama e encarando o estrado da cama dele.
    Ele parecia mais um irmão mais velho superprotetor e narcisista do que um simples colega de quarto.

    Mas… enquanto eu fechava os olhos, sorri.
    Era bom ter alguém assim também. Fjorheim estava começando a parecer… um lar.

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