Capítulo 14: No Trono de Asgard
O elevador central das camadas subia em silêncio absoluto, como um monólito de luz cortando as camadas do mundo.
Dentro dele, Acara observava as paredes translúcidas do elevador feito de pura energia luminosa. Sua expressão era impassível, mas seus olhos, roxos como fogo antigo, deixavam claro o incômodo.
Várias pessoas acompanhavam a viagem — executivos de terno polido, técnicos com uniformes metálicos, empregados com bandejas flutuantes e até membros armados da segurança cerimonial. Cada um preso em sua própria bolha de tensão ou rotina.
O homem de óculos ao lado de Acara — um assessor, pelo visto — ajeitou a gravata e se virou para ela com um ar respeitoso, porém claramente tenso.
— Senhorita Acara… irá passar em sua residência ou deseja ir diretamente ao destino?
Ela respondeu sem sequer olhar pra ele, o tom seco, carregado de um desdém quase venenoso:
— Vou direto ao Palácio de Jade. Quero saber por que infernos me tiraram de uma missão ativa pra vir até aqui. Não vai demorar.
O homem apenas assentiu, suspirando baixinho enquanto o elevador parava na camada 2. As portas se abriram com um brilho forte, revelando o acesso às plataformas aéreas da cidade flutuante. A maioria dos passageiros desceu, outros subiram.
O elevador de luz voltou a se mover. Mas desta vez, com destino direto ao topo.
Camada 1 — Asgard.
Era dia em Asgard. Sempre parecia ser.
A capital não era apenas uma cidade. Era uma promessa. Um delírio de perfeição. Um espetáculo de luz, ouro e poder. A fronteira entre o divino e o humano.
O céu era vasto e de um azul cristalino, cortado por duas luas imóveis e um anel solar que girava lentamente, como se o próprio tempo respeitasse aquele lugar. O ar vibrava com energia — uma pulsação quase viva que vinha do chão, das torres, das pontes flutuantes.
As ruas eram largas, feitas de pedra branca com fios dourados que pulsavam, carregando energia como veias de um colosso. Jardins pairavam no ar, se reorganizando conforme os passos dos transeuntes. Torres sem base tocavam o céu, conectadas por pontes que se dobravam conforme a vontade de quem caminhava.
Era como andar dentro de um sonho. Ou de uma prisão de ouro.
Acara olhou para o céu com um suspiro entediado.
— Que lugarzinho irritante… — resmungou. — É melhor eu acabar logo com isso.
O Palácio de Jade estava exatamente onde sempre esteve — no centro absoluto de Asgard, como o coração de um deus adormecido. Erguia-se sobre o Zênite da Criação, uma cratera que emanava luz líquida, feita de pura energia vital.
A construção era colossal: pilares infinitos de jade branca entalhados com runas douradas, portões vivos que se abriam apenas com leitura genética, e uma cúpula em forma de halo solar que girava sem parar, criando uma auréola de luz visível de qualquer ponto da camada.
Ao cruzar os portões, Acara foi recebida por uma legião de serviçais. Todos usavam vestes alvas, simbolizando pureza. Havia ali uma mistura absurda de etnias, estilos, olhos de cores exóticas e cabelos que pareciam fios de cristal ou sombras vivas.
Todos estavam parados. Silenciosos. Como se aguardassem por ela.
Acara parou, arqueando uma sobrancelha.
— Que recepção mais… gelada. Estou comovida.
Um dos serviçais, de olhos prateados e cabelo cinza trançado, se aproximou.
— Senhorita Acara, por favor… siga-me. O senhor já está à sua espera na sala do trono.
Sem comentar, ela apenas seguiu. Os corredores do palácio pareciam eternos, adornados com espelhos de luz e sons etéreos que vinham do teto como sussurros. Após uma longa caminhada, o guia parou diante de um arco dourado e fez uma reverência silenciosa.
Acara continuou sozinha.
Ela já havia estado ali várias vezes. Conhecia cada centímetro daquela sala.
O chão era liso como vidro líquido, refletindo o céu acima. O trono, feito de cristal solar, estava virado de costas para a entrada, reluzindo com as cores da aurora. A atmosfera era pesada, quase sagrada, como se cada palavra ali tivesse o peso de um decreto eterno.
Sem hesitar, Acara ergueu a voz, carregada de irritação e sarcasmo:
— Diga logo o que quer comigo, Sol’Zher Asgard!
O trono girou lentamente.
E ali, sentado de qualquer jeito, com as pernas largadas e o corpo jogado como se estivesse entediado até o osso, estava ele.
Don Verk Nosfea.
Acara abriu um sorriso de escárnio, meio surpresa, meio exasperada.
— Não é possível… É você que tá aí, seu merda? — ela gargalhou, entre indignada e divertida. — O que tá fazendo sentado no trono do rei, Don?
Don se levantou com a preguiça de alguém que foi acordado de uma soneca no meio de um funeral. Seus cabelos negros e bagunçados balançaram enquanto ele bocejava. A única mecha branca na frente dele parecia brilhar com a luz do teto.
Seus olhos roxos semicerrados se fixaram em Acara com aquele mesmo olhar — entre o tédio absoluto e o sarcasmo cósmico.
— Demorou, hein, Acara? Já tava ficando com dor na bunda de ficar sentado nesse trono — disse, coçando a nuca com um sorrisinho preguiçoso.
Acara cruzou os braços, tentando decidir se ria ou dava um tapa nele.
Don era assim. Um caos ambulante com o poder de destruir reinos — e a vontade de não sair da cama.
Acara cruzou os braços e encarou o homem no trono, os olhos brilhando com uma mistura de desconfiança e tédio mal disfarçado.
— O que tá fazendo no trono do rei, hein? Cadê o Sol’Zher?
Don Verk balançou uma das pernas de forma relaxada, o corpo largado no trono como se aquilo fosse apenas mais uma poltrona velha.
— Tá lá nas planícies de Or’sea… treinando.
Acara franziu o cenho. — Hã?
Ela se virou, pronta pra dar meia-volta.
— Aonde você pensa que vai? — Don perguntou, o tom arrastado.
— Ué, vou subir até lá. Se ele me tirou da missão, deve querer falar comigo. Faz sentido, não?
Don suspirou, quase como se já esperasse essa resposta.
— Você realmente é a chefe do Clã da Escuridão… — ele coçou a nuca. — Mas não foi ele que te chamou. Fui eu.
Acara parou. Girou nos calcanhares e estreitou os olhos. — E por que não disse logo? Fala, vai. Espero que seja algo interessante, senão você vai me dever uma missão de vingança contra dragões só pra compensar minha vinda.
Don se recostou de novo, pegando uma garrafa dourada escondida atrás do trono. Tomou um gole generoso antes de continuar.
— Você lembra quando eu falei de um garoto lá da camada cinco? Um que eu queria treinar… porque achei que tinha talento?
Acara acenou com a cabeça devagar.
— Então… ele é meu sobrinho. Filho da Vena Nosfea.
Silêncio.
Os olhos de Acara se arregalaram por um segundo, mas logo depois ela sorriu, um sorriso torto e carregado de ironia.
— Ora, ora… Que bomba deliciosa. Essa eu não esperava. Vena Nosfea… Faz tempo que não ouço esse nome maldito. A mulher que praticamente aniquilou a família principal do nosso clã… e em especial… a minha.
Ela caminhou em círculo, rindo de canto, como se saboreasse o absurdo da revelação.
— Você sabe, né? Eu poderia ficar furiosa agora… Afinal, ela matou meus pais também. Mas mágoas antigas… bom, a gente enterra com os mortos. — Ela parou, encarando Don com um olhar afiado. — Mas você… você cuidar e treinar o filho dela? Isso é ousado até pra você, Don.
Don bebeu mais um gole, dessa vez mais devagar. O olhar perdido por um momento.
— Quando ela fez aquilo… já estava grávida. E quando desapareceu, eu… eu meio que… acreditei que tinha deixado o bebê pra trás. Comecei a me perguntar… e se ela tivesse abandonado a criança?
Ele fechou os olhos por um instante.
— Foi num daqueles dias fodidos. Eu tinha perdido minha filha. Eu era só mais um homem quebrado, bêbado, vagando sem rumo pela camada cinco. Nem meu status importava. Eu só queria esquecer. Tudo.
Ele se calou por um instante… e então, suas lembranças tomaram forma diante dele como uma cicatriz antiga que ainda ardia.
Ele cambaleava pelas vielas empoeiradas da camada cinco, os olhos fundos, barba por fazer, roupas amassadas e um cheiro forte de álcool impregnando sua túnica.
Foi então que a viu.
Uma mulher ruiva, de aparência simples, sentada na beira de uma fonte velha, segurando um bebê envolto em um pano marrom desbotado.
Don se aproximou devagar. Algo nele, talvez o instinto ancestral do clã, sussurrou que havia algo errado… ou muito certo.
A mulher o olhou diretamente nos olhos, sem medo. O olhar dela era firme, gentil… e absurdamente calmo.
— Olá — disse ela com um sorriso tímido. — Você é do Clã da Escuridão, não é? Vim à capital hoje para prestar homenagem às vítimas do massacre… sinto muito por tudo o que aconteceu.
O bebê puxava os fios ruivos da mulher, brincando sem preocupações.
E então, Don viu.
Um par de olhos… Um deles roxo, o outro… rosa. Não uma mancha. Não um brilho. Um rosa puro. Vivo. O mesmo tom que havia nos olhos de Vena Nosfea. Mas aqui… era inteiro. Total.
Don travou.
As palavras evaporaram. A garrafa caiu da sua mão. Tudo que ele conseguiu fazer… foi olhar. Em silêncio.
Acara escutava com atenção inesperada. No fim da lembrança, comentou com um tom sarcástico:
— E a mulher não ficou assustada? Isso é… fascinante.
Don deu um leve sorriso.
— Isso é o que você comenta? — soltou uma risadinha sem graça. — Depois disso… eu cuidei de tudo. Cobri todos os gastos. A educação. A saúde. Nunca cheguei perto demais. Mas… não queria que ele sofresse pelo que a mãe fez.
Acara suspirou, virando de costas.
— Sinceramente… naquela época, se tivessem achado ele, teriam executado sem piscar. Ele era praticamente um fantasma com um alvo na testa. Mas enfim… onde você quer chegar com essa história toda?
Don apoiou os cotovelos nos joelhos, e ficou sério pela primeira vez desde o início da conversa.
— A mulher que adotou o Ken… desapareceu.
O silêncio caiu como uma sombra grossa.
— Eu fui até a camada cinco… só pra fazer uma visita. Ver como ela estava. Afinal, o Ken agora está na academia… — ele apertou a garrafa entre os dedos. — Foi então que…
A neve caía fina, silenciosa, sobre a camada cinco. O vento soprava frio como navalha, cortando a pele exposta como se estivesse tentando arrancar memórias. A casa de Katarina, isolada na borda da camada, se erguia como uma cicatriz esquecida do mundo.
Don Verk caminhava com passos firmes, apesar do frio que envolvia tudo com uma bruma gélida. Ao lado dele, uma jovem do Clã da Escuridão — olhos roxos intensos como ametistas em brasa, cabelos negros como a noite sem estrelas, e marcas vermelhas como cicatrizes ancestrais sob os olhos — seguia atenta, embora tremesse levemente.
— Chefe Verk… essa tal de Katarina, mãe adotiva do seu sobrinho… Por que ela mora tão longe da capital? Estamos quase no limite da camada, e esse frio tá congelando até minha sombra…
Don nem olhou pra ela. Um sorrisinho preguiçoso brotou em seu rosto, mas carregado de sarcasmo.
— Pergunta pra ela… quando a gente chegar.
Mas antes que pudessem chegar à porta da casa, Don parou subitamente.
O cheiro… algo pútrido, denso. Quase como se o ar tivesse ficado mais pesado.
Ele levou a mão à empunhadura da katana instintivamente.
— Fique atrás de mim — murmurou, já correndo em disparada.
A garota arregalou os olhos, surpresa com a reação súbita, mas foi atrás.
Ao entrarem, o horror os atingiu como um soco seco no estômago.
Fernandes estava estirado no chão perto de algumas madeiras, o corpo já em decomposição. A pele estava cinzenta e os olhos semicerrados, vazios. O cheiro era sufocante. Moscas rodavam lentamente, como se até elas estivessem enojadas.
Don parou por um instante. Seus olhos se estreitaram e sua mão tremeu ligeiramente.
— Que porra… aconteceu aqui?
A garota ajoelhou-se ao lado do cadáver. Tocou o pulso, depois o pescoço. Fez uma careta.
— Isso aconteceu faz uns dois dias… posso revivê-lo. Temporariamente. Só o bastante pra interrogar.
Don apenas acenou com a cabeça.
A jovem mordeu o dedo até sangrar. Gotas escarlates caíram nos lábios do morto. Em seguida, ela cravou a mão no peito de Fernandes, afundando até alcançar o coração. Seu corpo estremeceu, e ela desabou, desmaiada.
No instante seguinte, o corpo de Fernandes voltou à cor normal.
Os olhos dele se abriram com força. Ele arfou, confuso, como se despertasse de um pesadelo molhado de escuridão.
— Katarina…? Katarina…? — Ele olhou ao redor, até os olhos encontrarem Don. Então olhou para seu próprio corpo. — Ah… entendi. Estou morto, não é?
Don se ajoelhou à frente dele.
— Me diga tudo o que aconteceu. Você tem pouco tempo. Fale.
— Eu… fui assassinado, eu acho — Fernandes parecia tonto, fragmentado. — Não consegui ver direito quem… mas… Katarina… ela foi levada. Uma mulher apareceu. Estranha. Senti algo nela, algo antigo, sombrio. Katarina… ela tentou resistir…
Don inclinou o rosto.
— Você chegou a ver a mulher?
Fernandes engoliu em seco. A pele começava a empalidecer de novo.
— Não totalmente… Mas antes de desmaiar, ouvi Katarina gritar um nome… Um nome que me pareceu… familiar…
Silêncio.
— Era… Vena.
O tempo congelou.
Os olhos de Don se arregalaram, a katana tremeu em sua bainha. Aquilo foi como um soco no passado. Fazia dezesseis anos desde a última vez que ouvira esse nome.
Vena Nosfea.
Fernandes começou a rir, fraco, sem ar.
— Fui inútil… nem pra morrer com dignidade eu servi.
Don permaneceu em silêncio.
— Me escuta… Por favor… Proteja o Ken. Eu não fui o melhor pai adotivo. Mas quero… quero que ele fique bem. Proteja-o. E salve Katarina, se puder.
Um último sorriso rasgou o rosto de Fernandes. Don tocou a garota caída, e a vida fugaz de Fernandes se apagou como uma vela ao vento.
— Descansa em paz.
A garota acordou, ofegante.
— Eu ouvi tudo… Essa tal de Vena… Quem é ela?
Don se levantou, com os olhos perdidos no vazio, e começou a andar em direção à casa.
— Comece a pesquisar sobre a Erro 504… E ela… é minha irmã mais nova.
A garota congelou.
— O QUÊ?! — gritou, encarando o corpo caído no chão.
Ela se virou rapidamente.
— Precisamos enterrar ele…
Mas Don não respondeu.
Ele empurrou a porta da casa… e parou.
Ali, envolta por sombras deformadas e pedaços de neve caídos, estava uma figura encapuzada, usando uma capa escura e uma máscara completa. Na mão, uma espada incomum: a lâmina fazia um laço, uma curva afiada que brilhava como mercúrio negro sob a luz fraca.
A figura se virou lentamente. E foi ali que tudo explodiu.
Num único movimento, Don sacou a katana — a lâmina emitiu um clarão quase sagrado — e num instante, metade da casa foi cortada ao meio.
Um corte limpo, violento e quase divino. A neve no chão se partiu como vidro. As árvores ao redor se curvaram como se reconhecessem a presença de um titã.
A garota correu até a entrada, os olhos arregalados.
Don estava ali, parado com sua katana fora da bainha, a expressão grave como pedra, a respiração firme.
Do outro lado da destruição, a figura encapuzada permanecia de pé… ilesa.
Ergueu sua espada de laço. E apontou para Don. Nenhuma palavra. Apenas a tensão de dois mundos prestes a colidir.
— Chefe Verk…
Don sem desviar o olhar:
— Fique fora disso. Ele é forte.
Silêncio. Vento. Neve.
— Forte o bastante pra estar… no meu nível.
A garota engoliu seco, paralisada.
— O quê…? — pensou ela, trêmula. — Aquela figura… está no mesmo nível que… o Deus da Espada… Don Verk Nosfea?!
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