Cedric sentiu um arrepio subir pelas costas, ignorando o tecido grosso da capa.
    Não era apenas beleza. Era o tipo de mulher que fazia você esquecer como se respira, porque a própria presença dela parecia consumir todo o oxigênio da sala.

    Ela fez uma breve pausa, o silêncio se esticando como uma corda de violino prestes a arrebentar. Então, olhou diretamente para ele.
    Fundo. Sem piscar.

    — O grupo de Acara e os outros… já retornaram para as Camadas Neutras. — A voz dela era suave, mas definitiva. — Deixaram-me aqui… como guia. Para acompanhar vocês.

    — O quê…?

    A palavra escapou da boca de Cedric, carregada de frustração e descrença.

    — Mas… — ele gaguejou, dando um passo à frente. — Eles já subiram? Assim, do nada? E a gente nem… Eu nem vi a—

    Antes que ele terminasse, Lysanthir ergueu a mão.
    Um gesto rápido, firme, cortante.

    Pare.

    Cedric fechou a boca com um estalo, franzindo a testa. A confusão deu lugar a uma desconfiança imediata. Por que Lysanthir estava tão tenso? Por que aquele olhar afiado, de quem acabou de ver uma armadilha se armar?

    Lysanthir não tirava os olhos dos dela. Ele a estudava com a atenção de um predador analisando outro. Um guerreiro experiente sabia: algo nela… não batia. A matemática da situação estava errada. Acara, a líder do Clã da Escuridão, recuar no meio de uma missão de crise? Sem deixar um relatório escrito? Deixando apenas ela?

    Nytharia, no entanto, continuou com a mesma expressão serena, imune à tensão.

    — Eu os guiarei até a Camada -51. Nossa missão continua. Não se preocupem. — Ela fez um gesto gracioso com a mão, apontando para a escuridão de um corredor lateral. — Recentemente, descobrimos um atalho instável, mas seguro, que liga diretamente esta camada à -50. Assim, não precisaremos atravessar a -49, o “Mar de Cinzas”. Facilitaremos a entrada na -51 sem riscos desnecessários.

    Ela se virou, dando as costas para eles como se já tivesse certeza absoluta de que a seguiriam. Como se a obediência fosse a única opção.

    Lysanthir ainda a observava com os olhos semicerrados, o corpo rígido. Depois de alguns segundos de um silêncio pesado e calculado, ele falou. O tom carregava uma ironia fina, quase imperceptível:

    — Entendo. Deve ter sido algo muito importante para que o grupo da Acara, incluindo generais de elite, tenha subido às pressas… Mesmo essa sendo uma missão de Prioridade Zero, não?

    Nytharia parou.
    Ela ainda estava de costas. O tecido do vestido parou de balançar.
    Lentamente, ela virou o rosto por sobre o ombro. O olho azul-acinzentado brilhou na penumbra.

    — Foi um pedido direto do Palácio de Jade. — A resposta veio rápida, polida. — Acredito que estavam exaustos também. As camadas cobram seu preço.

    Ela sorriu. Um sorriso maternal que não chegava aos olhos.

    — Descansem um pouco, por enquanto. O caminho à frente exige vigor. Assim seguimos com mais clareza depois.

    Lysanthir hesitou por um milésimo de segundo. Seus dedos tamborilaram no cabo da espada invisível. Depois, ele assentiu, relaxando a postura forçadamente.

    — Certo. Um tempo de pausa… não parece má ideia.

    Cedric, no entanto, continuou quieto.
    Ele olhava de um para o outro. Sua mente, geralmente rápida e sarcástica, estava travada em um loop de perguntas.
    Por que Acara não ficou? Por que essa mulher parecia feita de gelo? E por que Lysanthir, que nunca foge de uma resposta atravessada, estava tão… passivo?

    Ele olhou para Nytharia uma última vez antes dela se afastar para um canto da sala.
    A mulher que flutuava como um sussurro de morte.

    Algo dizia a ele — um instinto primitivo nascido na sujeira da Camada 8 — que aquela missão não seria nada parecida com o que haviam enfrentado até agora.


    Meia hora depois.

    Sentados num canto afastado daquela sala de mármore destruída, Lysanthir e Cedric faziam uma refeição miserável.
    Mastigavam tiras de carne desidratada trazida das camadas neutras, dura como sola de sapato. Cedric comia de maneira irritada, puxando a carne com os dentes, como se a mastigação agressiva fosse uma forma de extravasar a raiva.

    Do outro lado da sala, a uns dez metros de distância, Nytharia mantinha-se sentada.
    Ela estava em seiza — a postura tradicional ajoelhada — sobre um lenço de seda que ela mesma estendeu no chão sujo.
    Impecável. As costas retas. As mãos delicadas seguravam um pequeno bolinho esverdeado que ela trouxera consigo. Ela comia em mordidas minúsculas, sem fazer som, sem deixar cair uma migalha. Mesmo naquilo, havia um ar ritualístico, quase religioso.

    Cedric não aguentou mais. A carne desceu rasgando a garganta.

    — Tá, chega. — Ele sussurrou, mas a intensidade da voz fez o som viajar. — Agora vai me explicando essa porra toda. Que caralhos tá acontecendo aqui, Ly?

    Lysanthir, com a boca ainda cheia, parou.
    Ele ergueu o dedo indicador, coberto de gordura da carne, na frente dos lábios.
    Shiii.

    Ele engoliu a seco e tomou um gole de café solúvel de sua caneca metálica amassada. O vapor subia entre os fios prateados de seu cabelo, ocultando seus olhos por um instante.

    — Hm… só fica quieto por agora — murmurou ele, a voz tão baixa que Cedric teve que se inclinar para ouvir. — Coma. Recupere energia.

    — Tá louco, porra? — Cedric sibilou, os olhos azuis faiscando. — Não me joga esse “fica quieto”! A gente desceu até o inferno pra encontrar a Tropa e a Acara, e agora uma mulher estranha diz que eles foram embora e a gente aceita? Quero respostas, velho!

    Lysanthir parou a caneca no meio do caminho para a boca.
    Ele virou o rosto lentamente para Cedric.

    O olhar dele.
    Não havia sarcasmo. Não havia tédio.
    Havia um aviso letal.

    Os olhos de gelo de Lysanthir se fixaram nos de Cedric com uma intensidade que fez o garoto travar. Ele moveu os olhos sutilmente na direção de Nytharia e depois voltou para Cedric, negando com a cabeça de forma imperceptível.

    Cale a boca. Agora. Ou você morre.

    Cedric sentiu o estômago gelar.
    Ele olhou para Lysanthir, depois, de relance, para a mulher perfeita sentada do outro lado do salão. Ela parecia não estar ouvindo, focada em seu bolinho.
    Mas as orelhas dela… Cedric notou que os brincos de musgo pareciam vibrar levemente.

    Ele bufou, soltando o ar pelo nariz com força, mas entendeu.

    Aquilo era mais que precaução.
    Era a confirmação de que eles não estavam apenas com uma guia.
    Eles estavam, muito provavelmente, com uma carcereira.

    Depois de terminarem a refeição silenciosa, o grupo se moveu.

    Nytharia levantou-se com aquela elegância fluida, quase antinatural, como se seus joelhos não tivessem juntas. Sem dizer uma palavra, ela os guiou por um labirinto de corredores de mármore até uma parede cega no fundo de uma câmara.

    Quando pararam, Cedric arregalou os olhos, o queixo caindo.

    Não era uma parede comum.
    Era como um rio vertical.
    A superfície da pedra havia sido substituída por uma substância líquida, viscosa e prateada, que ondulava horizontalmente. Parecia um espelho derretido, pendurado num mundo invertido, refletindo distorcidamente os rostos deles.

    — Isso aí é o atalho? — perguntou Cedric, sem conseguir tirar os olhos daquela coisa que desafiava a gravidade. — É um portal?

    — Pois é… — murmurou Lysanthir, arqueando uma sobrancelha prateada, a desconfiança transbordando em sua voz. — E olha que eu já andei por essas bandas várias vezes, mapeando ruínas. Nunca vi nada nem parecido com isso aqui.

    Nytharia não esperou o debate. Sem hesitar, ela deu um passo à frente. O corpo dela foi engolido pelo líquido prateado sem fazer som, sem respingos. Ela simplesmente atravessou.

    Lysanthir e Cedric trocaram um olhar rápido.
    — Se eu morrer… — começou Cedric.
    — Eu sei, eu sei. Vamos. — Lysanthir o empurrou e entrou logo em seguida.

    A sensação foi de atravessar gelo líquido.

    E quando pisaram do outro lado… foi como mergulhar num universo morto.

    A Camada -50 os recebeu com um silêncio que não era apenas ausência de som; era uma pressão física nos tímpanos.

    Era uma floresta negra.
    Não apenas escura pela falta de luz — era negra na essência.
    As árvores eram colossais, mas pareciam cadáveres carbonizados, com galhos feitos de carvão retorcido que se estendiam como dedos esqueléticos tentando arranhar o céu. Não havia folhas. Não havia verde.
    O chão era coberto por uma camada grossa de cinzas escuras que soltavam pequenas nuvens de pó a cada passo, como se a terra estivesse exalando os suspiros de eras passadas.

    Lysanthir olhou para cima, e seu corpo tencionou.

    — Estamos na Floresta Negra da Camada -50. Aqui… nunca amanhece. O conceito de “dia” não existe.

    Cedric, instintivamente, também olhou para o céu. E paralisou.

    — Que porra… é aquilo?

    Não havia sol. Não havia estrelas.
    Dominando o horizonte, ocupando metade do firmamento, estava um corpo celeste gigantesco.
    Era uma “lua”, mas monstruosa. Parecia um planeta gasoso, ciclópeo, cercado por anéis de detritos roxos e cinzas que giravam lentamente. A luz pálida e doentia que emanava dele era a única iluminação daquele mundo. Era bonito de uma forma aterrorizante.

    — Isso é a lua daqui… — respondeu Lysanthir, a voz saindo distante, como se estivesse hipnotizado pela escala daquilo.

    Nytharia, imune à paisagem, seguiu em frente sem se virar. O vestido dela parecia flutuar sobre as cinzas sem se sujar.

    — Vamos. Precisamos atravessar isso rápido. — A voz dela ecoou suavemente. — A radiação desta lua… não é saudável. Não é um lugar onde se deve descansar os olhos por muito tempo.

    Os dois a seguiram, mas Lysanthir diminuiu o passo propositalmente, puxando Cedric para mais perto.

    — Escuta, Cedric… — sussurrou ele, a voz tensa, quase inaudível. — Isso está errado. Muito errado.

    — O quê?

    — Ninguém sobe desse jeito das Camadas Negativas, abandonando a missão. Ainda mais sem cruzar com a gente no caminho. E esse portal… — Lysanthir olhou para trás, para o nada. — Você, como novato, talvez não saiba, mas “atalhos” estáveis entre camadas negativas são raríssimos. Existem registros de apenas quatro em toda a história. Esse aqui que acabamos de passar… nunca foi documentado.

    Cedric engoliu em seco, o gosto de cinza na boca.

    — Um deles… um atalho instável entre a -13 e a -51… colapsou há uns 4 meses e matou centenas de membros de elite dos Três Palácios. Simplesmente os apagou da existência. — Lysanthir apertou o ombro do garoto. — E agora aparece essa conveniência bem na nossa frente? Guiada por uma mulher que apareceu do nada?

    O pensamento assombrou Cedric como um eco gelado.
    Eles estavam caminhando para uma armadilha? Ou já estavam dentro dela?

    Mas então…

    Nytharia parou.
    O movimento foi abrupto.

    Imediatamente, Lysanthir e Cedric congelaram, as mãos indo para as armas.

    — Estamos sendo observados — disse ela.

    Ela se virou parcialmente, o perfil elegante recortado contra a luz da lua gigante. Os olhos dela não estavam nos companheiros, mas fixos em algum ponto na escuridão profunda entre as árvores de carvão.

    E então, como se brotassem das próprias trevas da floresta, duas figuras surgiram à frente.
    Elas não andaram até ali. Não caíram do céu.
    A sensação foi de que elas sempre estiveram ali, invisíveis, e apenas decidiram se revelar naquele momento.

    A primeira figura usava um manto feito de sombras puras, totalmente negro, que parecia absorver a pouca luz da lua. A silhueta era feminina, esguia, mas seu rosto era um vazio invisível, enterrado na escuridão absoluta de um capuz profundo. Ela não emitia som, nem cheiro, nem calor. Era o vácuo.

    A outra…

    Cedric sentiu o ar ficar dez vezes mais pesado. Seus joelhos tremeram involuntariamente.

    A presença exalava algo antigo. Primordial. Algo anterior ao próprio conceito de medo humano.
    O homem se erguia como uma estátua viva — não pela rigidez, mas pela solenidade sagrada e profana que emanava.

    Seus cabelos eram vermelhos como fogo eterno, longos e agitados por um vento que não soprava para mais ninguém. A pele era branca, perfeita e fria como mármore funerário.
    Seu manto era de um bordô escuro, pesado, bordado com detalhes dourados que se torciam em runas que a mente de Cedric doía só de tentar ler.
    Um dos ombros estava coberto por uma faixa branca, chamuscada nas bordas, da qual se desprendiam fios etéreos de energia vermelha. Eles flutuavam ao redor dele como fumaça sangrenta, vivos, pulsando.

    E na mão direita…
    Ele segurava uma espada curva.
    A lâmina era negra como carvão polido. Mas, brotando do metal morto, havia pequenos galhos florais vermelhos, brilhantes.
    Era como se a própria Morte tivesse decidido florescer naquela arma.

    Cedric ficou paralisado, a respiração presa.
    Lysanthir sequer se moveu, seus olhos de gelo arregalados pela primeira vez.

    Até mesmo Nytharia, sempre impassível, deu um passo sutil para trás. Pela primeira vez, a máscara de perfeição dela rachou. Ela parecia… alertada.

    O homem de cabelos vermelhos deu um passo à frente. A cinza no chão não se moveu sob seus pés.

    Eles não estavam diante de um demônio comum.
    Estavam diante de uma catástrofe.

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