Capítulo 17: Ecos, Reflexos e Corações: A Véspera do Exame de Rank
Depois daquela surra… digo, treinamento, elas finalmente começaram a me dizer o que eu precisava melhorar.
Detalhes sobre postura, controle de impulso, movimentação com a espada de madeira — tudo apontado com a precisão de um raio-x. Rina era direta, quase militar. Sevira falava com aquele tom brincalhão, mas escondia críticas certeiras no meio dos sorrisos. Já Nevara… bom, ela só me encarava, mas de alguma forma aquele olhar neutro dizia mais que mil palavras.
Passei o dia inteiro assim.
Apanhando. Aprendendo. Tentando de novo. Apanhando mais.
Consegui acertar uns golpes aqui e ali — nada impressionante, mas o suficiente pra inflar um pouco meu ego antes de ser jogado no chão outra vez.
Foi nesse caos que percebi algo… estranho.
Sevira. A forma como ela reagia aos ataques. Como espelhava movimentos. A fluidez.
Talvez… só talvez, o código genético dela seja de copiar o último ataque feito por alguém. É só uma teoria, mas não parece tão longe da verdade.
No fim do dia, quando o céu já tinha sido engolido por aquele negro sem fim, cravejado de pontinhos brancos, eu saí da arena de treino exausto.
Cada músculo doía. Até os que eu nem sabia que existiam.
Mas, no meio disso tudo… algo dentro de mim estava aceso. Uma chama que não apagava com dor, suor ou cansaço.
No portão, Sevira me deu um tchau animado, sorrindo como se a surra tivesse sido um piquenique.
Rina também sorriu. De canto. Quase imperceptível, mas o suficiente pra me fazer perceber que, de algum modo, ela aprovava o esforço.
E Nevara… só olhou.
Aquele olhar vazio. Insondável. Inabalável.
Essas pessoas que não têm expressão são as que mais me assustam… Você nunca sabe o que estão pensando.
Caminhei em direção ao dormitório, os passos pesados, mas o coração leve. Parecia até… cena de protagonista de light novel. Apanhando no treino, rodeado por garotas fortes… um harém em potencial. Que ironia.
Mas mesmo com esse pensamento idiota, algo martelava na minha mente.
Mina.
O que será que ela estava fazendo? Pensando? Será que ainda tava brava?
…
Na janela do prédio roxo, no alto da sala da admiradora Maria Donroxye, Mina me observava.
Estava ali, meio escondida pela sombra da cortina, o olhar baixo, a expressão indecifrável.
Maria organizava livros sobre a mesa com a leveza de sempre, e colocava uma flor azul intensa — quase ciano — sobre a madeira. O aroma tomava o ambiente com uma doçura sutil.
— Você deveria ir falar com ele — disse, com a voz calma e gentil.
Mina franziu a testa, incomodada, desviando o olhar.
— Ele tem que pedir desculpas.
— Para com isso, Mina. — Maria suspirou. — Fiquei sabendo que ele tá treinando com três garotas lindas do quarto ano…
A reação foi imediata.
Mina se encolheu, o rosto se contorcendo de leve. Aquilo foi tipo um soco. Um ciúme mal disfarçado.
— Eu… Não… — Ela respirou fundo, tentando manter a postura. — Ele errou… Ele é quem devia vir até mim.
Maria sorriu, quase com pena, e se aproximou. Passou a mão pelos cabelos de Mina e retirou a presilha com cuidado.
— Você disse que foi ele quem colocou isso em você, né?
Mina corou. Muito. Mas não disse nada.
— Toda vez que vocês vinham aqui, eu notava. Você sempre olhava pra ele… com um brilho diferente nos olhos.
Sem falar uma palavra, Mina apenas concordou com a cabeça, tímida, encabulada.
Maria fechou um pouco os olhos, e com aquele tom meigo que só ela tinha, recolocou a presilha nos cabelos da menina.
— Você gosta dele porque ele foi o primeiro que te tratou como igual, não é? Me contou daquele soco que ele te deu na sua cara, lembra? — Ela soltou uma risadinha leve.
Mina, agora vermelha como uma cereja madura, apenas assentiu.
— É normal se irritar quando gostamos de alguém e essa pessoa se afasta… — Maria continuou. — Mesmo que a culpa tenha sido dele, por aquele desastre na praça da capital, ele deve achar que você o odeia por estar evitando ele.
Silêncio.
Até que Mina, quase num sussurro, murmurou:
— …eu gosto dele.
— Ora ora… — Maria arregalou os olhos com um sorriso maroto. — Da forma romântica?
Mina arregalou os olhos, a vergonha explodindo em seu rosto como uma bomba. Ela girou nos calcanhares e saiu correndo da sala, tropeçando nas próprias emoções.
Maria ficou ali, sozinha, rindo baixinho.
— Ora ora… Achei que era isso mesmo… — Ela olhou pela janela, observando eu caminhando lentamente pelo pátio da academia, os olhos fixos no céu.
Naquele momento, eu tava pensando em algo simples.
Aquela aula da professora Helena… sobre a tal “lua”.
Uma esfera de pedra brilhando no céu noturno, iluminando tudo ao redor.
— Seria bonito — murmurei pra mim mesmo, com um sorriso cansado. — Uma cor diferente nesse céu escuro… Um pouco de poesia no meio da pancadaria.
Os pontinhos brancos brilhavam como cicatrizes antigas, e eu seguia andando, o coração um pouco mais leve.
E assim foi essa minha semana.
Acordando antes do sol esticar os braços no horizonte, caminhando sonolento pelos corredores ainda frios da academia, e voltando só quando a noite já tinha dominado tudo.
Foi puxado. Massacrante.
Mas, de algum jeito, também foi incrível.
Aprendi mais em poucos dias com aquelas três do que em toda minha vida até agora.
Sevira é bruta. Isso não é novidade. Mas tem algo por trás da força. Um padrão que, com o tempo, comecei a perceber. Ela sempre ataca primeiro. Sempre. Nunca espera, nunca recua. E os ataques dela… tem algo estranho. Uma familiaridade. Parecem ecos de golpes que eu mesmo já dei.
Será mesmo? Será que a habilidade dela é copiar o último ataque que recebeu?
Isso me deixava com a cabeça fervendo. Tanto que uma noite, já no quarto, virei pro Levi e perguntei:
— Tô treinando com três garotas do quarto ano… você já ouviu falar delas?
Levi me olhou por cima do livro que lia, arqueando uma sobrancelha.
— Tá falando das Três Glaciais, né?
— Três Glaciais? — repeti, franzindo o cenho. — Esse é o nome delas?
Ele riu baixo, balançando a cabeça.
— É como elas são conhecidas. Infelizmente, nunca lutei contra nenhuma delas… ainda. Mas vi as três em combate. São absurdamente fortes. Talvez eu apareça por lá pra ver como você tá se saindo contra elas.
E ele apareceu.
No dia seguinte, Levi chegou com aquele olhar analítico que dava medo. Só ficou de braços cruzados, encostado na parede da arena, me observando apanhar o dia inteiro. Como de costume.
Mas, mesmo no meio dos hematomas, eu tava aprendendo.
Nevara quase não atacava. Ficava à distância, imóvel. A princípio, achei que fosse parte de alguma estratégia… mas comecei a notar outra coisa.
O ar ao redor dela parecia gelado. Meu corpo reagia sem eu perceber — calafrios, respiração pesada, um incômodo estranho que só parava quando eu… quebrava os reflexos dela.
Foi aí que caiu a ficha.
Alem de espelhos, gelo também.
A habilidade dela é com reflexos. E esses reflexos afetam mais do que só a visão. Era como se mexessem com a percepção do corpo. O frio… talvez fosse minha mente sendo enganada.
Rina, por outro lado, era um tornado no combate corpo a corpo.
Ela lutava com precisão absurda. Suas agulhas não eram letais — isso ficou claro. Mas a forma como ela acertava… parecia conhecer o corpo humano melhor do que qualquer médico. Cada agulha que tocava minha pele paralisava algum ponto exato. Pulso. Perna. Ombro. Tudo com aquele sorriso calmo no rosto.
À noite, já no quarto, Levi me ajudava a processar tudo.
— Seu código genético é forte — ele disse, sentado na cama, analisando minhas anotações rabiscadas — mas poder bruto sem maestria é só desperdício.
Ele se levantou e começou a andar de um lado pro outro, como fazia quando queria que eu prestasse atenção.
— Existem três formas principais de dominar seu código. A primeira é:
Compreensão.
“Entenda como ele funciona. Use com lógica. Crie estratégias com ele. Torne ele seu.”
Eu respirava fundo tentando aplicar isso em campo. Meus portais não se abriam em qualquer lugar — só onde eu conseguia ver. Por isso comecei a treinar o uso dos portais dentro de mim, como uma espécie de transporte interno, direto e instantâneo.
Tentei levar outras pessoas por eles, mas… não rolava. Só eu conseguia passar. Ainda.
Levi continuou:
— A segunda é:
Emoção.
“Se controla tua emoção, controla teu código. Mas se perde ela… já era. Emoção pode ser força ou fraqueza.”
E eu sabia disso na prática.
Com Sevira, por exemplo, perder o controle emocional seria suicídio. Ela provocava. Fazia piada. Jogava farpas no meio da luta. Se eu caísse, entrava na onda dela. Perdido, distraído… derrotado.
Então aprendi a ignorar. A manter o foco. A analisar os movimentos dela com calma, mesmo com ela me chamando de “princesa dos portais” ou outras pérolas.
E aos poucos, as coisas começaram a fazer sentido.
Era como se cada luta, cada conversa com Levi, cada momento naquela arena… estivesse me lapidando.
Eu não era só um cara com um poder estranho.
Eu tava virando um lutador.
E, se tudo continuasse nesse ritmo…
Talvez até um protagonista de verdade.
— E a terceira é a exaustão.
A voz do Levi ecoava no quarto enquanto ele andava de um lado pro outro, com aquele jeito didático de sempre, como se estivesse explicando o universo inteiro.
— O nome é técnico, mas é fácil de entender — ele continuou. — Se você não conhece sua própria exaustão, não tem como controlar seu código genético. Imagina… você perde a compreensão, perde o controle emocional… e, por fim, não entende quando tá no seu limite. Você simplesmente desliga. Morre. A exaustão é como uma linha final. Se não sabe onde ela tá… você já cruzou ela faz tempo.
Ele parou na minha frente, me olhando nos olhos.
— Então entenda sua exaustão. Sinta ela. Reconheça antes que seja tarde.
Aquilo ficou martelando na minha cabeça por horas.
Na real, o Don — meu antigo mestre — já tinha me ensinado isso. Mas ouvir de novo, vindo do Levi, meu veterano e colega de quarto agora… era diferente. Parecia mais prático. Mais real.
E com isso, chegou o último dia antes do exame. Eu pensei, ingenuamente, que teria um descanso. Talvez um pouco de paz.
Mas, claro…
— Hoje a gente termina antes das três da tarde. — disse a Rina com um sorriso — Aí você pode descansar até amanhã cedo.
Mentira. Meia verdade, no máximo.
Porque, como sempre, apanhei.
Menos que nos outros dias? Talvez. Mas ainda o suficiente pra ficar com os braços tremendo.
Só que… naquele dia, algo mudou.
Teve uma presença estranha no ar. Um peso.
Começou com um burburinho. Um sussurro entre os corredores. E então… as pessoas começaram a aparecer.
Curiosos. Alunos. Observadores.
A notícia tinha se espalhado — “o garoto do clã da escuridão tá treinando com as Três Glaciais.” E, aparentemente, isso foi suficiente pra atrair os olhares de muita gente.
E então… ela apareceu.
Solara Whitmore.
A presidente do conselho estudantil. A mais forte da academia. A lenda viva entre os alunos.
Ela entrou com aquele andar calmo e confiante, como se o chão fosse feito pra ela pisar. O sol batia de lado, atravessando os vidros da arena e refletindo no cabelo dourado dela como se fosse uma chama viva.
Ao lado dela, vinha um garoto que eu nunca tinha visto. Cabelos arrumados demais, olhar afiado, um sorriso torto colado no rosto como se soubesse de algo que ninguém mais sabia. No olho esquerdo dele… um floco de gelo perfeitamente desenhado, detalhado como se tivesse sido esculpido à mão.
Eles conversavam baixo. Cochichavam. O garoto ria, olhando na minha direção. Provavelmente era o vice-presidente, mas seu nome… desconhecido.
As Três Glaciais notaram na hora.
Rina levantou os olhos, logo acompanhada por Nevara e Sevira.
— Hmm… acho melhor terminarmos por aqui — disse Rina, olhando de canto para os novos espectadores. — A plateia tá ficando grande demais.
Sevira deu um suspiro longo, colocando as mãos na cintura.
— Que saco… — ela disse, mas sorriu logo depois. — Foi divertido, Ken. Essa semana foi bem ingressante.
Ingressante. Eu nem sabia se ela quis dizer “engraçada”, “interessante” ou os dois.
E então Nevara se aproximou.
Como sempre, sem expressão. O rosto neutro, os olhos frios, quase vazios.
Ela estendeu a mão e esfregou a minha cabeça com um gesto inesperadamente gentil.
— Muito bem — disse, no mesmo tom impassível de sempre. — Evoluiu bastante. Vai conseguir enfrentar muita gente forte agora.
Levantou os braços num gesto que… eu acho que era pra parecer animado? Mas o rosto dela continuava uma parede de gelo.
Foi então que o ambiente mudou.
Solara entrou na quadra.
O ar pareceu vibrar.
Sayra, que tava sentada mais afastada, levantou na hora, com os olhos brilhando de empolgação, como se soubesse que algo incrível ia acontecer.
Solara caminhou até o centro da quadra, parando a poucos metros de mim. O silêncio dominou. Todos os olhares estavam nela. Na presidente.
Ela me olhou. Direto. Intenso.
E então disse com a voz clara e firme:
— Estou interessada em participar desse treinamento. Quero lutar contra o garoto do clã da escuridão.
Minha espinha gelou.
Ela tava falando de mim.
Eu… nunca tinha trocado nem uma palavra com a Solara. Nunca. Ela era tipo uma entidade inalcançável, quase uma lenda. E agora, ali, na minha frente, dizendo que queria me enfrentar.
A pressão era absurda.
Principalmente por causa das três estrelas negras brilhando no olho esquerdo dela.

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