Cedric sentou-se com um suspiro profundo, e a realidade do seu corpo o atingiu como uma marreta.

    A adrenalina do reencontro passou, e a dor voltou com juros. Cada músculo, cada osso que havia sido quebrado e magicamente “colado” pelas linhas, gritava em protesto. Seu corpo inteiro parecia ter sido moído e remontado incorretamente.

    Ele soltou Lysanthir rapidamente, limpando o rosto com as costas da mão suja de fuligem.

    — Isso é… constrangedor. — murmurou Lysanthir, desviando o olhar para o fogo, embora um leve rubor em suas bochechas pálidas denunciasse que ele também estava abalado. — Não faça isso de novo. Eu tenho uma reputação.

    — Como você tá vivo, cara…? — A voz de Cedric tremia, ignorando o comentário ácido. — Nytharia… ela te atravessou. Eu vi. Como a gente tá aqui?

    Lysanthir suspirou, cutucando a carne de cervo com a ponta da faca improvisada.

    — Não faço a menor ideia. A última coisa que lembro é a queda. O vento. A escuridão. — Ele fez uma pausa sombria. — Quando acordei, estávamos jogados lá fora, na neve. Eu estava sangrando, você estava inconsciente e pálido como um cadáver. Estava frio pra caramba… então te arrastei até aqui. Você estava… mal. Muito mal, Cedric. Seu “Sistema de Equilíbrio” quase te matou.

    Cedric olhou para as próprias mãos enfaixadas com folhas.

    — E onde a gente tá agora…? — perguntou, encarando a luz branca da neve que invadia a entrada da caverna. — A gente caiu da Camada -51, lembra? Era um deserto quente. Isso aqui…

    Lysanthir deixou o cervo no chão. Ele se virou para Cedric, o rosto iluminado pelas chamas, a expressão séria e cansada.

    — A humanidade… os exploradores mais corajosos ou loucos… só conseguiram chegar e mapear até a Camada -70 em toda a história registrada. Isso faz quase mil anos. E como eu sou um pesquisador das Camadas Negativas, eu conheço a geografia de cada uma delas de cor.

    Ele apontou para fora.

    — E posso afirmar: essa aqui… não é nenhuma delas.

    Cedric engoliu em seco. O frio na espinha não vinha da neve.

    — Tá dizendo que… a gente caiu além do mapa? Onde, então? -80? -100?

    — Num lugar desconhecido. Inexplorado. Algo que não deveria existir… mas aqui estamos.

    Cedric olhou para o fogo. O calor era real. A dor era real. A fome era real. Isso não era um sonho de morte. Eles estavam perdidos no fundo do mundo.

    — E agora…? O que a gente faz?

    Lysanthir voltou a cortar a carne, os movimentos mecânicos.

    — A gente come. A gente sobrevive. E a gente tem que voltar. Subir. Contar o que a Nytharia fez. O Palácio Esmeralda… o mundo inteiro precisa saber da traição.

    Ele parou, a faca suspensa no ar.

    — Mas antes de comermos… quero te mostrar uma coisa.


    Cedric seguiu Lysanthir para fora da caverna.
    Assim que cruzaram a entrada de pedra, o frio o atingiu como um soco físico no estômago.
    Não era apenas baixa temperatura; era um gelo antigo. A neve caía em flocos grossos e pesados, dançando no ar cinzento como cinzas de um fogo divino. O céu era uma abóbada de chumbo, sem sol, sem lua, apenas uma luz difusa e eterna.

    Tudo ao redor estava mergulhado num silêncio absoluto, quebrado apenas pelo som abafado de seus passos: Crunch. Crunch.

    Eles caminharam alguns metros até a orla de uma floresta de coníferas gigantescas. As árvores, com troncos negros e agulhas cobertas de gelo, pareciam sentinelas mortas.

    Cedric estava prestes a perguntar o motivo da parada, tremendo de frio em suas roupas rasgadas, quando paralisou.

    Ali.
    Entre as sombras dos pinheiros.
    Uma figura surgiu.

    Não era o tipo de coisa que se vê e a mente aceita de imediato.
    Parecia humano — ou talvez fosse o que restava da humanidade depois de milênios no escuro.

    Ele vestia um manto tribal pesado, feito de peles e tecidos tingidos em tons intensos de vermelho sangue e negro obsidiana. Era algo entre cerimonial e bélico. Tiras de couro e fibras orgânicas trançadas à mão cruzavam seu corpo, segurando ossos e amuletos que balançavam sem fazer som.

    O rosto estava coberto por uma máscara.
    Vermelha.
    Símbolos tribais estavam entalhados em curvas agressivas na madeira polida, e chifres curvos saíam das laterais, como se fizessem parte do próprio crânio da criatura.

    Pelas brechas do traje, Cedric viu a pele do estranho. Estava coberta por tatuagens geométricas que brilhavam com uma bioluminescência fraca, pulsando num ritmo sutil, como se estivessem respirando.
    As mãos e os pés, descalços na neve, revelavam garras negras, longas e afiadas, adaptadas para rasgar e escalar.

    Um guerreiro? Um espírito? Um demônio?

    Cedric recuou um passo, a mão indo instintivamente para a cintura onde sua rapieira costumava estar.
    — Lysanthir… o que… o que é isso?

    Lysanthir manteve os olhos fixos na figura, sem fazer movimentos bruscos.
    — Eu tive o desprazer de cruzar com ele enquanto caçava o cervo.

    — Ele é perigoso?

    — Não fala a nossa língua… mas não tentou me matar quando me viu arrastando a caça. Apenas observou. Então… acho que é “bonzinho”? Ou pelo menos curioso.

    Antes que Cedric pudesse questionar a sanidade do professor, o ser deu um passo à frente.
    A neve não afundou sob os pés dele.
    Ele falou. A voz era profunda, rascante, como pedras rolando no fundo de uma caverna, mas com uma melodia estranha:

    Peẽ nderehegua oĩ hína iñambue umi normal ko’ã tenda, peẽ ohechauka iñambue.

    O som ecoou no ar gelado, incompreensível e antigo.

    Cedric olhou para Lysanthir, confuso.
    — Isso foi… Que língua é essa? Parece… humana, mas não é de nenhuma camada que eu conheça.

    — Não faço a mínima ideia — respondeu Lysanthir. — Mas comunicação é universal.

    Ele se agachou lentamente, mantendo contato visual com a máscara vermelha.
    Pegou um graveto seco e começou a desenhar na neve.

    Desenhou três figuras de palito.
    Apontou para uma e bateu no próprio peito:
    Lysanthir.

    Apontou para a segunda figura e depois para o garoto:
    Cedric.

    Então, apontou para a terceira figura na neve e olhou para o estranho, com as palmas das mãos abertas em questionamento.

    — Nossos nomes… qual é o seu?

    O ser inclinou a cabeça, os chifres da máscara cortando o ar. Ele os observou por um longo momento, as tatuagens pulsando um pouco mais rápido.
    Então, murmurou, a voz grave testando as sílabas estranhas:

    Lysanthir… ha Cedric…

    Ele se virou lentamente. Com um movimento firme e orgulhoso, bateu a garra no próprio peito coberto de peles.

    Aruan-Kaê.

    Cedric soltou o ar que prendia.
    — Aruan-Kaê… parece nome de guerreiro.

    Em seguida, o nativo se agachou. Com uma garra longa, desenhou na neve ao lado dos desenhos de Lysanthir.
    Fez uma única oca com duas pessoas dentro. Depois, desenhou várias ocas agrupadas, com várias figuras pequenas ao redor. Circulou o desenho da vila e traçou uma linha conectando os dois forasteiros a ela.

    Ele se levantou e apontou para a floresta profunda. Um convite.

    — Ele quer que a gente vá pra vila dele — traduziu Lysanthir, levantando-se e limpando a neve dos joelhos.

    Cedric olhou para a floresta escura, para o ser mascarado com garras e para o professor ferido.

    — E você confia nele assim? Ele pode estar nos levando pro abatedouro. Pode ser um canibal!

    Lysanthir deu de ombros e sorriu. Aquele sorriso desleixado, irônico e cansado que Cedric aprendeu a respeitar.

    — Cedric, olhe para nós. Estamos no fundo do mundo, congelando, feridos e sem armas. Tecnicamente, eu já morri uma vez hoje. Qual é o pior que pode acontecer? Morrer de novo? Hahaha…

    — Seu senso de humor é uma merda, sabia? — resmungou Cedric.

    Mas ele sabia que Lysanthir estava certo. Ficar ali era morte certa pelo frio.

    Aruan-Kaê virou as costas e começou a caminhar.
    Lysanthir pegou o cervo e fez um sinal.

    Sem escolha, seguiram o guerreiro mascarado pela floresta branca, a neve cobrindo seus rastros à medida que avançavam para o coração de um mistério ainda maior.

    Horas depois.

    Eles escalaram uma montanha onde o gelo parecia lâmina de vidro sob as botas. O vento ali em cima era cruel, cortante, tentando empurrá-los de volta para o abismo. Lysanthir ofegava, segurando o ferimento, e Cedric tremia, os lábios roxos.

    Mas quando chegaram ao cume… a vista fez todo o sofrimento desaparecer.

    Aruan-Kaê parou na borda do precipício. O vento agitava as penas e ossos de seu traje. Ele ergueu o braço, a garra negra apontando para o horizonte, e bateu no próprio peito com orgulho.

    Kura’ru.

    Mesmo através da cortina de neve e neblina, Cedric conseguiu ver. Seus olhos se arregalaram, incrédulos.

    Não era um acampamento. Era uma civilização.

    Uma vila viva. Pulsante. Um coração vermelho batendo no peito branco do inverno eterno.

    A cidade se espalhava em uma espiral perfeita, hipnótica.
    Círculos concêntricos de casas hexagonais feitas de uma madeira escarlate que parecia sangrar luz própria. Os telhados eram cobertos por escamas negras endurecidas, brilhantes como besouros gigantes. Vistas de cima, as casas pareciam flores carnívoras fechadas, adormecidas, esperando uma presa.

    Conectando os círculos habitacionais, havia uma rede complexa de trilhas suspensas. Cipós grossos trançados com ossos esculpidos formavam pontes que cruzavam o abismo entre os platôs, pulsando como veias que transportavam a vida da vila.

    No centro de cada anel de casas, árvores colossais se erguiam. Suas raízes formavam santuários naturais. Mas o mais impressionante eram as folhas: vermelhas, transparentes como vidro soprado. Elas vibravam com o vento uivante, emitindo tons melódicos, um canto grave e contínuo que servia como comunicação entre os habitantes. A cidade cantava.

    Mas nada preparava os olhos para o centro.

    No coração da espiral, erguia-se um palácio que parecia um Conselho de Sangue.
    Sua arquitetura desafiava a lógica: construído dentro e ao redor de uma imensa cratera vulcânica, o palácio havia sido escavado diretamente no núcleo rochoso incandescente da camada.
    A lava não era uma ameaça; era decoração. Ela corria domesticada em canais entalhados nas paredes, brilhando como ouro líquido.

    A estrutura principal se elevava em torres entrelaçadas, retorcidas como espinhos carmesins gigantescos, adornadas com obsidiana esculpida em runas que nenhum humano das camadas superiores saberia ler.
    Tecidos sagrados, vermelhos e dourados, cobriam as muralhas externas, movendo-se sozinhos como se o prédio estivesse respirando.

    E no topo da torre mais alta… um Olho.
    Uma lente cristalina colossal, ancestral, que captava a pouca luz do ambiente e a canalizava em feixes concentrados para o interior da cratera.

    Cedric e Lysanthir trocaram um olhar. O choque era palpável.
    — Uma civilização… — murmurou Lysanthir, a voz falhando. — Nas Camadas Negativas profundas. Isso nunca foi registrado. Nunca. Nós somos… os primeiros.

    Eles estavam diante da maior descoberta da história da humanidade. Ou do seu maior perigo.


    Mas o caos não estava restrito às profundezas desconhecidas.
    Ele estava subindo. Rastejando como uma maré negra.
    E alcançaria até mesmo as Camadas Neutras.

    Camada -4.
    Um ponto de transição. Um limbo suspenso entre a humanidade e o inferno.

    A região era um pântano infinito e melancólico. A água escura e oleosa cobria quase tudo, estendendo-se até o horizonte cinzento. Pedras musgosas erguiam-se como pequenas ilhas solitárias naquele mar de lama e podridão. O ar era denso, úmido, com cheiro de enxofre e chuva velha… e completamente silencioso.

    Sentada sobre uma dessas pedras, com a casualidade de quem está no sofá de casa, havia uma figura imponente.

    Acara Achlys.

    Ela segurava uma coxa de carne crua — de alguma criatura que tivera o azar de cruzar seu caminho — e a mastigava com calma. Seus dentes rasgavam a fibra com uma elegância predatória, saboreando o sangue.

    Seu quimono era uma obra de arte sombria: seda negra com padrões florais em tons de roxo profundo e azul-noite, que reluzia sob a luz opaca do pântano como óleo derramado.
    Seu cabelo, preto como carvão, estava preso em dois coques altos e simétricos, adornados com palitos de ouro. Franjas longas caíam por um lado do rosto, escondendo parcialmente o brilho cortante e entediado de seu olho esquerdo.

    Olhos roxos.
    Olhos que não apenas viam, mas julgavam e condenavam em silêncio.

    Ela não precisava de aura para impor respeito. A própria natureza ao redor dela parecia prender a respiração.

    De repente, passos quebraram a quietude da água.
    Splash. Splash.

    Um homem caminhava com cuidado excessivo pelas pedras irregulares. Seus olhos roxos e cabelos escuros denunciavam sua origem: um mensageiro do Clã da Escuridão. Ele suava frio, apesar da umidade.

    Ele parou a uma distância respeitosa — ou melhor, segura.

    — Senhorita Achlys… — disse ele, a voz vacilante. — Precisamos ir. Como foi solicitado com urgência, já deveríamos estar no Palácio de Jade há dias. Os conselheiros estão… impacientes.

    Acara mordeu mais um pedaço da carne. Mastigou devagar, olhando para o horizonte vazio, ignorando completamente a existência do homem.
    Engoliu com um som audível. Limpou os dedos engordurados na barra do quimono de seda impagável, sem a menor cerimônia.

    Só então ela virou o rosto parcialmente.

    — E eu lá me importo com a impaciência de velhos de terno? — A voz dela era seca, rouca, cortante como uma lâmina enferrujada. — Se o Palácio de Jade quer a minha presença, que aprendam a esperar. Eu sou uma convidada, não uma cadela adestrada.

    Ela jogou o osso na água.

    — Eu esperava ter chegado até a Camada -51. Queria ver com meus próprios olhos… os tais “Erros Genéticos”, os demônios que destroem exércitos com um sopro. Qualquer coisa que tenha massacrado meus homens. — Ela suspirou, decepcionada. — Queria diversão.

    Seu tom não carregava luto pelos subordinados mortos.
    Era pura frustração. Como uma criança que chegou atrasada para o circo.

    O homem hesitou, engolindo em seco. Ele sabia que estava pisando em ovos.
    — Vendo seu Rank, senhora…

    Acara se levantou lentamente da pedra.
    O movimento foi preguiçoso, mas carregado de uma ameaça latente. O tecido do quimono escorregou levemente de seus ombros pálidos.

    E lá estava.
    No trapézio esquerdo, cravado na pele branca como uma tatuagem sagrada e maldita. O número que fazia exércitos recuarem.

    30.

    Rank 30 do Mundo.
    A “Lâmina da Noite”.

    — A senhora tem responsabilidades inescapáveis — continuou o homem, tentando manter a voz firme, desviando o olhar do número. — Como chefe de um dos Quatro Grandes Clãs, seu papel na política das Camadas Neutras não pode ser ignorado. O equilíbrio depende de…

    Acara bufou. Um som de tédio absoluto.

    — Que inferno… — murmurou ela.

    Sem aviso, ela girou o corpo e saltou da pedra.
    Não procurou apoio. Ela pulou diretamente na água barrenta do pântano.

    SPLASH.

    A lama voou, sujando a seda, a pele, o cabelo. A água bateu em seus joelhos.
    Qualquer outro nobre teria gritado de nojo. Acara nem piscou. Para ela, lama e sangue eram a mesma coisa: irrelevantes diante de seu poder.

    — Espero, ao menos, que essa maldita viagem valha a pena e que tenha uma boa comida no Palácio. — disse ela, começando a caminhar pela água pesada como se estivesse num tapete vermelho.

    Cada passo dela criava ondas que pareciam ir longe demais, perturbando a paz do pântano.
    Era um aviso: Acara Achlys estava a caminho de Asgard. E quando ela chegasse, a política teria que se curvar ou quebrar.

    O mensageiro soltou um suspiro longo e cansado, passando a mão pelo cabelo úmido.
    — Isso vai ser um pesadelo… — sussurrou para si mesmo, antes de pular na lama para seguir sua senhora.

    Eles desapareceram entre a névoa densa da Camada -4, deixando para trás apenas o eco da frustração de um monstro que foi impedido de caçar.

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