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    Finalmente, o dia do exame.

    Acordei antes mesmo do sol nascer — ou melhor, antes do sistema de luz da academia simular o amanhecer. Não consegui dormir direito. A ansiedade fazia minha cabeça funcionar como uma máquina quebrada, cuspindo pensamentos e cenários o tempo inteiro.

    Vesti meu uniforme e segui até o prédio roxo, onde sabia que encontraria Maria. Bati na porta, e como sempre, ela já estava me esperando, sentada numa cadeira reclinável, com uma xícara fumegante nas mãos e aquele sorriso calmo de quem parece saber mais do que deveria.

    — Ora, ora… — disse ela, cruzando as pernas e olhando direto nos meus olhos. — Por que tentou esconder o seu olho rosa? Essa lente… não combina com você. Já faz uma semana que não vem falar comigo, né?

    Eu encostei na parede, meio sem graça. Cocei a nuca.

    — Foi o Marion que sugeriu… e eu só aceitei.

    — O Marion, hein? — Ela estreitou os olhos como se aquilo fosse mais interessante do que deveria. — Hm… bom, de qualquer forma, você me pediu uma adaga, lembra?

    Ela se levantou devagar e pegou uma caixa fina, abrindo-a como se guardasse algo sagrado. Lá dentro, estava uma adaga elegante, de lâmina fina e ligeiramente curvada. O brilho metálico era discreto, mas letal.

    — Vai ser boa pra você — disse, entregando com delicadeza.

    Sem perder tempo, abri um portal ao lado e guardei a arma ali. Ainda não sabia se realmente usaria minha adaga especial.

    Quando me virei para sair da sala, não percebi… ela estava lá o tempo todo.

    Mina.

    Escondida num canto da sala, abraçando os joelhos, como se quisesse desaparecer.

    Maria suspirou com aquele tom maternal.

    — Pode sair, Mina. Ele já foi. Você não pode continuar se escondendo assim…

    A garota se levantou, vermelha de vergonha. Seus olhos evitaram os da Maria.

    — Eu… eu vou falar com ele depois do exame… eu vou. — murmurou, como se tentasse convencer a si mesma. — Mas… espero que ele peça desculpas primeiro.

    Maria apenas sorriu e voltou a se sentar, como se tudo estivesse exatamente no lugar.


    Caminhei até o prédio central da academia, onde um café da manhã reforçado era distribuído para os alunos. O cheiro de café e pão quente cortava um pouco da tensão que pairava no ar.

    No canto do refeitório, avistei Shin e Holi conversando animadamente. Quando levantei a mão, Shin sorriu de canto e acenou de volta. Holi, mais empolgada, levantou os dois braços, radiante.

    — Tava sabendo que você andou treinando com as Três Glaciais, né? — disse Shin, encostado na parede com o pão ainda pela metade. — Não conheço elas, mas se têm apelido assim, devem ser fortes.

    Antes que eu pudesse responder, Holi se intrometeu.

    — Você tá bem? Tá legal? Eu tô feliz! Vamos dar o nosso melhor hoje, tá?

    — Pode deixar — respondi com um sorriso sincero. Um dos poucos dos últimos dias.

    Shin cruzou os braços.

    — Daqui a pouco é a prova teórica… mas, sinceramente, o que eu quero mesmo é meter a cara na prática.

    — Tô com você nessa — falei, e os três trocamos olhares firmes. O clima estava diferente. Era como se o mundo estivesse girando mais rápido.

    Como uma engrenagem prestes a engolir a gente.


    No portão principal da Academia Fjorheim, longe dali, três figuras se aproximavam com passos pesados.

    À frente, Acara, envolta por uma aura quase teatral, sorria como se estivesse voltando para casa. Atrás dela, dois indivíduos caminhavam em silêncio.

    Um deles era um homem alto e imponente, com quatro espadas nas costas dispostas como um jogo da velha. Cabelos pretos densos como fumaça, um dos olhos coberto por uma faixa preta, o outro… um roxo penetrante, frio e absoluto.

    O outro era um garoto de baixa estatura, mas nada infantil nele. Garras metálicas substituíam seus dedos, e seus cabelos pretos caiam sob uma faixa que cobria os dois olhos. O corpo era pequeno, mas a presença era sufocante.

    Acara parou diante do portão e suspirou, olhando em volta com nostalgia forçada.

    — Essa academia continua a mesma, né…? — disse, com voz arrastada. — Enfim, vamos. Noha, Eriel, comigo.

    Noha, o homem alto, moveu o pescoço lentamente, os olhos fixos na estrutura da academia.

    — Vamos esperar até o fim do exame… quero ver como essa nova geração luta.

    Eriel, o garoto de garras, falou com voz seca, pragmática.

    — Não temos tempo pra isso. Nosso alvo é o moleque do Clã da Escuridão. Pegamos ele e saímos. Simples.

    O sorriso de Acara se apagou por um instante. Ela se virou devagar, e seu olhar roxo se cravou em Eriel com uma intensidade cortante.

    — Me lembra… quem é a chefe aqui mesmo?

    Eriel baixou a cabeça, mudo.

    Ela voltou a sorrir, mas seus olhos ainda estavam sombrios.

    — Eu quero assistir os combates. Ver como esses fedelhos se viram… é o mínimo, já que me tiraram da missão nas camadas negativas.

    E então, os três entraram na academia.

    Silenciosos.

    Mas o peso que traziam com eles… não passaria despercebido por muito tempo.

    A prova teórica começou.

    Vários alunos foram espalhados por salas diferentes no prédio principal da academia. E, sinceramente, essa era a minha primeira vez pisando de verdade aqui dentro… e já dava pra entender o motivo de tantos boatos.

    O lugar era enorme. E brilhava demais. Sério, parecia que as paredes tinham sido polidas com luz líquida. Cada detalhe parecia gritar riqueza e poder, um contraste absurdo com o resto da academia. Ou melhor, com tudo que eu já tinha visto na vida.

    Na minha sala, nenhuma cara conhecida. Só rostos estranhos, olhares nervosos e uma tensão no ar que dava pra cortar com faca.

    O responsável por aplicar a prova era o professor Geovan. Aquele mesmo. Cabelos em dreads grossos como cordas, e nas pontas… lâminas afiadas que tilintavam quando ele andava. Era impossível não notar.

    — Todos sentados. Provas diferentes, então nada de esperteza — disse ele, com voz firme.

    As provas foram entregues. As perguntas… bem, não eram impossíveis, mas exigiam um nível de preparo absurdo. Política, economia, história… Tudo do mundo de hoje e de séculos passados. Nem parecia um teste para lutadores. Mas eu já sabia disso. Ainda assim, só queria terminar logo. O que me interessava vinha depois.

    A prática. As lutas. O campo de batalha.


    Enquanto isso, nas salas superiores da diretoria, a atmosfera era outra.

    Hizu Jorney, o vice-diretor da Fjorheim, estava sozinho em sua sala, envolvido até o pescoço em documentos oficiais. O som da pena riscando o papel era constante, quase hipnótico.

    Até que a porta se abriu. Sem uma batida. Sem aviso. Como sempre.

    Cael, o observador de lutas, entrou como um vulto. Sua presença sempre vinha acompanhada daquele silêncio estranho e da vela acesa, que ele segurava como se fosse um talismã.

    A voz dele, abafada pela máscara, soou sombria:

    — Preciso sair por um tempo.

    Hizu nem olhou, apenas franziu a testa.

    — Você e essa mania irritante de não bater na porta… O que houve agora, Cael?

    — Algo estranho na Camada 10. Muitos soldados dos Três Palácios… mortos. Outros desapareceram. — O tom de voz dele era seco, sem emoção.

    Isso fez Hizu largar a caneta e erguer os olhos, surpreso.

    — Um demônio vindo da Camada -1? Com esse nível de força…? É raro, mas… não impossível. Está bem. Vá.

    Cael estreitou o único olho visível, que brilhava à luz da vela.

    — Temos… visitas também. — Ele se virou devagar, como se já esperasse o que viria a seguir.

    Quase como em um teatro bem ensaiado, a porta se abriu novamente.

    E entraram três figuras.

    À frente, Acara. Os olhos roxos faiscando com um brilho perigoso, o sorriso dela afiado como navalha. Ela andava como se o mundo inteiro fosse uma sala de espetáculo — e ela, a atriz principal.

    Atrás, Noha, imenso, com quatro espadas cruzadas nas costas. Os passos pesados dele soavam como trovões abafados.

    E por último, Eriel, o garoto pequeno com garras metálicas nos dedos, que parecia mais uma lâmina viva do que uma criança.

    Hizu se levantou na hora.

    — Senhorita Acara?! O que a traz aqui?

    — Ah, não e o Johan? E você Hizu… não precisa desse tom tão formal. — Ela sorriu, como quem fala com uma criança. — Vim buscar alguém. E quero primeiro fazer a parte burocrática.

    Hizu piscou, confuso.

    — Buscar…? Quem?

    Acara se aproximou um passo. Seus olhos ganharam um brilho misterioso, quase divertido.

    — Ken Orquídea. Ele é do Clã da Escuridão… e tem um olho rosa.

    O nome soou como um estalo dentro da sala.


    Finalmente.
    Acabou.
    A maldita prova teórica tinha chegado ao fim.

    O som de carteiras arrastando, folhas sendo recolhidas e alunos bocejando invadiu o prédio. Todo mundo parecia exausto. Um verdadeiro mar de gente saía das salas como se estivesse escapando de um incêndio. E eu fui junto, me esgueirando entre os ombros e cotovelos, focado no que realmente importava agora: a segunda parte do exame.

    Lá no centro do prédio, havia várias mesas organizadas com professores — ou funcionários, sei lá — entregando fichários. Era ali que você descobria contra quem iria lutar na prova prática.
    O momento da verdade.

    No meio daquela muvuca toda, senti uma mão me segurar pelo braço com firmeza.

    Quando me virei, Rina estava me encarando. Aquele olhar de morte lenta e dolorosa.

    Ela odiava lugares cheios. Só de ver a quantidade de alunos, já parecia querer explodir alguém.

    Assim que pegamos nossos papéis, ela veio andando ao meu lado, resmungando baixo sobre o barulho, a confusão e o suor alheio, mas logo foi me explicando como tudo funcionava.

    — Olha, a coisa é simples — ela começou, ainda com o cenho franzido —. Cada papel tem uma letra, que indica a classe, e um número, que mostra sua posição no ranking da academia. Tipo… eu sou A-11 . Você deve ter algo tipo D-qualquer-coisa.

    — D-79 — respondi.

    Ela assentiu.

    — Pois é. Agora você vai pegar um novo papel. Nele vai ter a classe e o número do seu oponente. E, detalhe importante: as lutas são pré-definidas. Você enfrenta quem sair no seu papel e ponto final. Não pode trocar. Nem desistir antes. É lutar ou… ser desclassificado.

    Chegamos à mesa onde um garoto — parecia mais um calouro perdido — estava entregando os papéis. Ele parecia novo demais pra estar naquela posição, mas sorria como se aquilo fosse divertido pra ele.

    — Próximo! — disse ele, animado.

    Peguei o papel das mãos dele. E quando olhei…

    C-1.

    Demorou uns dois segundos pra ficha cair.

    C-1.
    O melhor do segundo ano.

    — As lutas já foram decididas com base nas análises anteriores — explicou o garoto, ainda sorrindo como se não tivesse acabado de me dar uma sentença de morte. — Isso significa que a pessoa que você pegou, também pegou você. Ah, e isso aqui… — ele me entregou uma pequena bolinha vermelha — é um dispositivo que vai apitar quando for sua vez de lutar. Enquanto espera, pode assistir às outras batalhas, beleza, sua arena e a arena 4.

    — Beleza… — murmurei, ainda olhando pro papel.

    Rina se aproximou com o papel dela nas mãos, deu uma olhada rápida no meu e depois mostrou o dela: B-44.

    — Calouro do terceiro ano. Que maravilha — ela disse, revirando os olhos. Mas quando olhou pro meu de novo, soltou uma risadinha curta. — Que sorte a sua…

    — Sorte?

    — É. Você vai enfrentar a Sahira D’Alani.

    O nome fez meu estômago gelar, mas não por medo.
    Era por estranheza.
    D’Alani.
    O mesmo sobrenome da Sayra K’Alani, a observadora de lutas. Só o início era diferente.

    — Ela é forte? — perguntei, ainda processando.

    Rina cruzou os braços.

    — Se ela lutar sério… nem eu sou páreo. — Ela fez uma pausa e respirou fundo. — Lutei contra ela ano passado. Eu, veterana, e ela, uma novata. Mesmo assim, ela me pressionou do começo ao fim. Ela é estranha, livre demais. Parece que tá dançando quando luta… e o pior: ela não quer vencer de forma convencional. Nunca.

    Antes que eu pudesse reagir, senti algo diferente no ar.
    Uma presença.
    Suave.
    Calma.
    Quase… confortante.

    Me virei instintivamente. E lá estava ela.

    — Então é você… meu oponente?
    Estou muito feliz por te encontrar aqui.
    Prazer.
    Sou Sahira D’Alani.

    A semelhança com Sayra era clara — mas ao mesmo tempo, Sahira era única.

    Sua pele bronzeada, reluzente como cobre ao sol.
    Os cabelos longos, ondulados e intensamente vermelhos, pareciam descer como chamas vivas até seus pés.
    Os olhos âmbar, profundos e vibrantes, pareciam olhar direto pra alma… mesmo que, por um instante, eu tivesse a estranha sensação de que ela não enxergava com os olhos.

    Sua roupa era cerimonial, rica em detalhes artesanais dourados, pedras coloridas, e padrões tribais com referências claras ao fogo e à dança.
    Estava descalça, com tornozelos adornados por correntes e sinos finos que tilintavam com leveza.
    Era como se cada passo fosse parte de um ritual.

    Mesmo ali, bem na minha frente, ela não me olhava diretamente. Seu rosto estava voltado para mim, mas seus olhos pareciam… vagos, perdidos em alguma outra dimensão.

    E mesmo assim, eu sentia algo nela.

    Algo profundo.

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