Capítulo 22: A beleza que nega e a mão que sustenta
Encontramos um banco vazio numa área da capital conhecida como o “Distrito Doce”. O ar ali cheirava a açúcar queimado, canela e frutas frescas. Era um refúgio tranquilo no meio do caos urbano, perfeito para uma pausa.
Eu observava Mina. Ela mordiscava o crepe com tanta empolgação que a aura de nobreza tinha desaparecido completamente. Parecia uma criança que acabara de descobrir que o mundo podia ser gostoso. Havia um pingo de creme no canto da boca dela, e eu estava debatendo internamente se avisava ou não.
De repente, a atmosfera mudou.
Uma movimentação começou na avenida principal, visível dali. Pessoas corriam, se aglomeravam, mas não em pânico. Em expectativa. Uma multidão se formava como se um milagre estivesse prestes a passar por ali.
— O que está rolando ali? — perguntou Mina, ainda de boca cheia, esticando o pescoço. Os olhos dela brilharam com uma curiosidade contagiante. — Vamos lá ver?
Ela se virou para mim num movimento brusco de animação.
E foi aí que aconteceu.
O movimento soltou o cabelo dela.
Foi suave, quase cinematográfico, como se o universo tivesse diminuído a velocidade só para eu ver. A presilha cedeu, e as mechas negras, pesadas e lisas, deslizaram pelos ombros dela como uma cortina de seda viva. O cabelo caiu ao redor do rosto, emoldurando a pele pálida, capturando a luz alaranjada do entardecer.
Por um instante… eu fiquei sem reação. O crepe na minha mão foi esquecido.
Era… bonito demais. Não “bonito de nobre”. Bonito de verdade.
— Droga… — resmungou ela, tentando segurar a massa de cabelo com uma mão enquanto segurava o doce com a outra. — Acho que, de tanto andar, a presilha afrouxou… Que desastre.
Olhei para o banco. A presilha — aquela que tínhamos “pegado emprestado” da garotinha mágica mais cedo — estava caída ali.
Peguei-a quase por reflexo. Meus dedos reconheceram o metal frio.
Sem pensar muito, sem pedir permissão, levantei-me e fui para trás do banco, ficando às costas de Mina.
— Fica parada — murmurei.
Comecei a juntar o cabelo dela.
Foi automático. Minhas mãos se moveram sozinhas, guiadas por uma memória muscular antiga. Eu fazia isso com a Katarina o tempo todo quando ela voltava da caça com o cabelo embaraçado.
Mas ali… com Mina… a sensação era diferente.
O cabelo dela era macio, cheiroso. E quando meus dedos roçaram a nuca dela para puxar os fios, senti o corpo dela travar.
Ela ficou completamente estática. Parou de mastigar. Parou de respirar.
Mas não se afastou.
Seus ombros tencionaram levemente, e mesmo sem ver o rosto dela, eu podia sentir o calor irradiando da pele. O pescoço dela, exposto agora, estava ficando vermelho.
Era um silêncio constrangido, sim. Mas era bom. Quente.
Aquele tipo de silêncio elétrico que você só experimenta quando algo inesperado toca o coração e você não sabe se corre ou se fica.
E mesmo sem dizer nada, eu sabia. Ela estava feliz.
Com habilidade, torci o cabelo num coque alto, firme, mas não apertado, e prendi com a presilha. De propósito, deixei algumas mechas soltas nas laterais, fios rebeldes que moldavam o rosto dela e davam um ar menos “intocável” e mais… vivo.
— Pronto — disse eu, recuando.
Mina ficou parada por mais um segundo. Depois, levantou-se de fininho. As bochechas estavam tingidas de um carmesim que fazia os leques dela parecerem pálidos. Ela não me encarou.
— V-vamos lá… pra… pra multidão… — gaguejou ela, a voz trêmula.
Só consegui sorrir.
Nem pensei. Apenas estendi a mão e peguei a dela. Puxei-a suavemente comigo.
De novo, automático.
A voz de Katarina ecoou na minha cabeça, límpida, trazida pelo vento da memória.
> Eu via a cena: Katarina estendendo roupa no varal, com o sol de Jotunheim batendo forte no rosto suado, prendedores de madeira na boca.
> “Benzinho…” — dizia ela, tirando os prendedores. — “Sempre trate uma garota como uma princesa, mas saiba a hora de ser cavaleiro e a hora de ser parceiro. Não adianta viver bajulando, nem fingir que não vê a força dela. Garotas gostam de quem caminha do lado, não de quem rasteja atrás. Entendeu?”
“Entendi, mãe”, pensei, apertando a mão de Mina.
Andamos em direção à muvuca. O barulho aumentava. Gente para todo lado, risos, passos apressados, vendedores gritando promoções. O cheiro de comida se misturava com incenso.
Mas, quando chegamos à esquina movimentada da capital, onde as ruas de pedra polida refletiam o sol poente… o mundo virou de cabeça para baixo.
O som morreu.
A multidão não estava gritando. Estava em silêncio reverente.
Diante de nós, desfilando pelo centro da avenida larga como num festival divino, estava o Clã Misticia.
Não era apenas um grupo. Era um Cortejo Real.
Homens do clã marchavam na frente, vestindo trajes formais que misturavam seda e armaduras cerimoniais leves, com detalhes em branco, cinza e azul-pálido. Seus passos eram sincronizados, um tum-tum-tum suave e rítmico que hipnotizava. Guardas oficiais da Capital abriam caminho, mas nem precisavam — a aura do grupo afastava as pessoas naturalmente.
Pétalas de flores pareciam cair do céu ao redor deles, materializadas pela densidade da energia espiritual que carregavam.
E no centro de tudo… havia um palanquim aberto, carregado por seis homens. Mas não havia ninguém sentado nele.
A figura principal caminhava à frente do palanquim.
Uma mulher.
Ela não andava; ela deslizava.
Seu quimono era de um branco tão puro que doía os olhos, bordado com fios de ouro que formavam garças voando. O cabelo negro, idêntico ao de Mina, estava armado numa estrutura complexa, digna de uma imperatriz.
A pressão que ela emanava não era agressiva. Era esmagadora pela perfeição. Era como olhar para o sol: você sabia que, se chegasse muito perto, seria desintegrado pela beleza.
Senti a mão de Mina na minha.
Ela não estava apenas suando frio. Ela estava gelada.
O aperto dela foi tão forte que machucou meus dedos.
Olhei de canto.
Mina estava estática. Pálida como um cadáver. Os olhos arregalados, fixos na figura central do cortejo, com uma mistura de terror, adoração e choque absoluto.
Ela tremia. O crepe caiu da outra mão dela, sujando o chão, mas ela nem notou.
Os lábios dela se moveram, sem som no início. Depois, um sussurro escapou, tão fraco que, se eu não estivesse segurando a mão dela, teria sido levado pelo vento.
— …Mãe?
Meu coração falhou uma batida.
Olhei para a mulher no cortejo. Olhei para Mina.
A semelhança era inegável. A mesma linha de rosto. Os mesmos olhos.
Una Mei.
A Rank 4.
Estava ali.
Ela tremia.
Eu senti a vibração percorrer o braço dela e chegar ao meu, como um choque elétrico contínuo. A mão de Mina, antes quente pelo crepe e pela caminhada, agora estava gelada. Suada. Morta.
Algo despertou dentro de mim.
Não foi heroísmo. Foi aquela curiosidade maldita e uma raiva protetora que eu não sabia controlar. Aquela vontade incontrolável de rasgar o véu e ver a verdade nua e crua, não importava quem se machucasse.
Eu sempre fui assim. Sempre busquei verdades… mas dessa vez, eu não sabia o preço.
E então eu a vi de perto.
Ela.
Una Mei.
Rank 4 do Mundo.
Dizer que ela era bonita era uma ofensa. Ela era uma obra de arte que respirava.
Seus traços eram tão perfeitamente equilibrados, tão simétricos, que pareciam irreais. Uma boneca esculpida em gelo eterno..
Mas o olhar… aquele olhar.
Eram olhos amendoados, profundos, misteriosos. Como um lago congelado onde você pode ver o fundo, mas sabe que, se cair, nunca mais volta à superfície. Bonita demais para ser humana. Perigosa demais para se confiar.
Apertei a mão de Mina com força.
— Vamos.
Comecei a andar. Meu passo era firme, pisando duro no calçamento de pedra.
Chega. Eu preciso saber.
A multidão abria espaço, não para mim, mas para a aura que emanava do cortejo.
Avancei, arrastando Mina, que parecia uma sonâmbula.
Antes que eu chegasse perto demais, uma sombra se moveu.
Um homem alto, moreno, com vestes formais de guarda-costas do Clã e uma cicatriz fina no queixo, bloqueou meu caminho. Ele não sacou arma nenhuma. Apenas a presença dele foi como um muro de tijolos.
O olhar dele era sério, letal. Dizia claramente: “Mais um passo e você perde as pernas.”
Mas eu ignorei.
A adrenalina me deixava surdo para o perigo.
Atrás de mim, Mina estava tremendo tanto que eu achei que ela fosse desmaiar. Os olhos dela brilhavam, fixos na mulher à frente. Não era alegria. Era um desespero fundo, uma súplica silenciosa. Era o olhar de uma criança que se perdeu na multidão e acabou de achar a mãe.
Eu falei. Minha voz saiu firme, projetada, carregada com um veneno que eu não me dei ao trabalho de filtrar:
— Una Mei!
O nome parou o cortejo. O silêncio caiu sobre a avenida como uma guilhotina.
— Rank 4 deste mundo… — continuei, sentindo os olhares de mil pessoas queimarem minhas costas. — Por que você não diz um “oi”… para a sua filha?
A frase cortou o ar. Tensa. Pesada.
Por que eu fiz isso?
Nem eu sabia ao certo. Mas era óbvio. Era só olhar para Mina, ver a semelhança, ver a dor. O instinto gritava. Aquela mulher era a mãe dela.
Una Mei parou de andar.
Ela não se virou imediatamente.
— Você… não liga para ela, é isso? — insisti, a raiva borbulhando. — A Mina Mei está bem aqui. Na sua frente. Sangue do seu sangue!
E então os sussurros começaram, como um enxame de abelhas furiosas.
— “Filha? A Una Mei tem uma filha?”
— “Impossível. A Deusa da Beleza é intocável.”
— “Quem é aquele garoto maluco do Clã da Escuridão?”
— “Olha a garota… ela parece mesmo…”
Olhares de todos os lados nos cercavam. Julgamento. Espanto. Deboche. Pena.
E mesmo assim, Una não olhava para mim. Nem mexia um músculo do rosto perfeito. Ela parecia uma estátua de mármore surda às súplicas dos mortais.
Mas então…
Como se o tempo tivesse desacelerado, transformando o ar em melado… ela virou o rosto.
O movimento foi lento, gracioso, aterrorizante.
Os olhos dela varreram a multidão, ignoraram o guarda, passaram por mim como se eu fosse transparente… e encontraram os de Mina.
O mundo parou.
Mãe e filha (?). Frente a frente.
Mas não houve calor. Não houve reconhecimento carinhoso.
O olhar de Una era frio. Distante. Vazio. Como se ela estivesse olhando para uma mancha no tapete ou uma flor murcha que deveria ter sido podada.
Os lábios dela se moveram.
A voz dela não foi alta. Foi calma, suave, gélida. Mas no silêncio da praça, soou como um trovão.
— Eu não tenho… nenhuma filha.
As palavras não foram para mim.
Foram para Mina.
Diretas. Cruéis. Cirúrgicas. Sem hesitação. Sem piedade.
E naquele instante… eu senti.
A mão de Mina na minha ficou mole.
Ela quebrou.
Mina não chorou alto. Não gritou. Não fez cena.
Mas eu vi a luz nos olhos dela se apagar. O corpo dela encolheu, como se tivesse levado um soco físico no estômago. O rosto perdeu a pouca cor que tinha.
O chão parecia prestes a engoli-la, e talvez fosse isso que ela desejasse.
Se eu não estivesse segurando sua mão com força, ela teria desabado ali mesmo, nos paralelepípedos frios da capital.
Una Mei desviou o olhar, desinteressada, e voltou a caminhar. O cortejo seguiu, as pétalas caindo, a perfeição intocada.
E no fundo, naquele exato momento… enquanto via as costas da Rank 4 se afastarem e sentia o tremor da garota ao meu lado…
Eu me odiei.
Eu me odiei com todas as forças.
Por ter feito aquilo. Por ter forçado a verdade.
Por ter arrastado ela para a frente do mundo inteiro só para ouvir que ela não existia para a própria mãe.
Eu queria ser o herói que revelava a verdade, mas acabei sendo o carrasco que expôs a ferida.
E mesmo assim, eu não soltei a mão dela. Apertei mais forte.
Era a única coisa, a única desculpa miserável de apoio, que eu podia oferecer agora.

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