Capítulo 23: Lembrando do passado
Depois de tudo o que aconteceu, Mina ficou quieta.
O silêncio dela não era apenas a falta de som. Era uma entidade física. Pesava nos ombros, enroscava-se no peito e tornava o ato de respirar uma tarefa consciente e culpada.
Caminhamos sem rumo até encontrarmos uma praça tranquila, longe da avenida principal e dos olhares curiosos. Sentamo-nos num banco de pedra frio, sob a sombra de árvores cujas folhas alaranjadas balançavam suavemente com o vento do entardecer. Ao longe, o som de um músico de rua tocando uma flauta melancólica preenchia o ar, contrastando com o caos que havíamos acabado de viver.
Mina olhava para a frente, sem foco. Seus olhos escuros pareciam vidrados, enxergando através da realidade, revivendo memórias que eu não podia ver.
E então, pela primeira vez desde o cortejo, ela falou.
Sua voz era baixa, rouca, quase um sussurro levado pela brisa — mas carregada de uma emoção crua que me fez gelar.
— Eu… não lembro de muita coisa da minha infância — começou ela, os dedos entrelaçados no colo com tanta força que os nós dos dedos estavam brancos. — Mas eu lembro de onde cresci. Era na Camada 2, Vanaheim. Em uma das quatro mansões satélites perto do Palácio Safira.
A atmosfera mudou. A forma como ela falava não era de quem conta uma história, mas de quem confessa um pecado.
— Eu era pequena, e tudo parecia grande demais. Vivia cercada de servas, amas-de-leite, guardas… todas mulheres do Clã Misticia. Tudo o que eu queria, eu tinha. Brinquedos de ouro, sedas importadas, doces raros… mas eu não podia sair. Não podia brincar no jardim com as outras crianças da vizinhança nobre. Não podia sequer chegar perto dos portões principais. Era como se eu vivesse em uma redoma de vidro dourado.
Ela sorriu, um sorriso triste e quebrado.
— Mas eu não me sentia sozinha. Tinha uma cuidadora… uma mulher gentil, já idosa, que sempre me contava histórias antes de dormir. Ela inventava contos sobre as camadas distantes, sobre dragões de luz e guardiões invisíveis. Graças a ela… eu aprendi a sorrir.
Ela fez uma pausa, respirando fundo, trêmula.
— Todos os anos, no meu aniversário, eu era levada ao salão principal da mansão. Era sempre o mesmo ritual, na mesma hora. Eu me ajoelhava num tapete vermelho, e Una Mei — que era a Rank 6 na época, ainda subindo — entrava. Ela caminhava até mim, em silêncio, e encostava a testa na minha.
— Mina tocou a própria testa, fechando os olhos. — Diziam que era um costume sagrado, uma “Bênção do Clã” para órfãos selecionados… mas eu não entendia. Outras crianças estavam ali também, filhas de guerreiras importantes. Mas eu? Eu não sabia quem eram meus pais. Eu só tinha meu nome. Mina. Sem sobrenome.
O vento soprou mais forte, soltando uma mecha do cabelo que eu havia prendido. Ela continuou, olhando para as palmas das mãos como se lesse o futuro nelas.
— Quando fiz seis anos, comecei a perceber coisas. Eu morava sozinha numa ala inteira, enquanto as outras crianças tinham mães presentes. E às vezes… à noite… quando eu fingia dormir… uma mulher entrava no meu quarto. O perfume dela era de lírios. Ela sentava na minha cama, me abraçava, acariciava meu rosto com mãos trêmulas. Eu nunca conseguia ver o rosto dela direito… sempre estava escuro, ou eu estava sonolenta demais. Mas eu sentia. Sentia que ela era… especial. Que ela sofria.
Mina mordeu o lábio inferior. Uma lágrima solitária escorreu, brilhando na luz do crepúsculo.
— Um dia, ouvi algo que quebrou a minha redoma. Eu estava brincando de esconde-esconde sozinha, atrás de uma daquelas portas finas de papel de arroz. Duas servas conversavam no corredor… acharam que estavam sozinhas.
A voz dela baixou para um sussurro conspiratório, imitando o tom venenoso das fofocas.
— “A Una Mei vai ficar até quando escondendo a bastarda, hein?” — disse uma delas. A outra pediu silêncio, apavorada, mas a primeira riu. — “É uma pena, né? A filha de uma Rank 6, a futura Princesa do Clã Misticia… vivendo como um fantasma sem saber de nada. Tudo pela imagem imaculada da mãe.”
Ela baixou o olhar para os sapatos sujos de poeira da cidade.
— Desde esse dia… eu só queria respostas. A dúvida virou veneno. No meu aniversário de 15 anos, no ano passado, ela veio de novo. A mesma cerimônia fria. A testa dela quase tocando a minha. E eu… eu não aguentei mais ser um fantasma.
Os olhos dela, finalmente, se viraram para mim. Havia fogo neles, mas era um fogo que consumia a própria dona.
— Eu perguntei. Na frente de todos. “Senhora Una Mei, por acaso… você é minha mãe?”
Mina soltou um riso seco, sem humor.
— Silêncio. Nenhuma resposta. Apenas aqueles olhos frios, calculistas… que me encararam como se eu fosse uma peça de xadrez defeituosa. Ela se levantou e saiu. Um mês depois, fui despachada. Mandada para um casarão isolado aqui na Camada 4, longe dos olhos da corte de Vanaheim. Sem explicações. Sem despedidas. Apenas exilada.
Ela olhou para o céu, onde as primeiras estrelas começavam a surgir.
— Vi a academia Fjorheim. Decidi entrar. Ninguém me impediu, talvez porque achassem que eu fracassaria. E na hora de preencher o registro de matrícula… pela primeira vez na vida, num ato de rebeldia estúpida, eu escrevi o nome completo que eu achava que merecia.
Ela sussurrou o nome, como uma sentença.
— Mina Mei.
Depois da explicação dela, o caminho de volta para a academia foi um borrão.
Não trocamos mais palavras. O peso do que foi dito — e do que foi feito — ocupava todo o espaço entre nós.
Deixei-a na porta do dormitório feminino. Ela não olhou para trás.
Desde então… silêncio.
Mina praticamente sumiu.
Não apareceu nos treinos. Não a vi no refeitório. Era como se ela tivesse voltado a ser o fantasma que descreveu.
E, sinceramente… eu não conseguia parar de pensar no que aconteceu.
A culpa era um ácido no meu estômago.
Me pegava encarando o teto do meu quarto à noite, ignorando os roncos suaves de Levi, me perguntando: Por que eu fiz aquilo? Por que fui tão idiota?
Eu devia ter perguntado essa história antes para a Mina. Com calma. Com respeito. Num lugar seguro.
Mas não. Fui impulsivo. Deixei minha curiosidade e meu senso distorcido de justiça falarem mais alto. Fui direto… e fui um completo escroto.
Arrastei ela para a frente de uma multidão e a forcei a confrontar a mulher mais poderosa e fria do mundo, só para satisfazer minha dúvida.
E agora? Agora já era. O dano estava feito.
Mas também… quem poderia culpá-la por se esconder?
O jeito como ela contou tudo… a confirmação era óbvia.
Ela era filha da Una Mei. Estava na cara. As semelhanças físicas, a história do exílio, o ritual de aniversário… tudo se encaixava.
E havia a prova final. O detalhe mais perturbador de todos.
Nós tínhamos gritado com uma Rank 4 em praça pública. Eu tinha acusado a “Deusa da Beleza” de abandonar a filha. Isso era crime de lesa-majestade. Difamação.
Em qualquer outra situação, guardas do Clã teriam vindo atrás de nós. Teríamos sido expulsos da academia, presos ou mortos silenciosamente num beco.
Mas… nada aconteceu.
Nenhuma advertência. Nenhuma repreensão. Nenhum assassino na sombra.
O silêncio do Clã Misticia era a resposta.
Eles não vieram atrás de nós porque… era verdade. E tocar no assunto seria admitir a falha.
Então, eles fizeram o que Una Mei fez na praça: fingiram que nada aconteceu. Fingiram que Mina não existia.
Fechei os olhos, sentindo a frustração apertar meu peito.
Eu tinha a verdade que queria.
Mas o preço… foi o sorriso da única garota que eu queria proteger.
A gente não se falava mais.
Nem um olhar. Nem um aceno. Nada.
O silêncio entre nós não era vazio; era um abismo que crescia a cada dia, preenchido apenas pela minha culpa.
Eu contei tudo ao Levi. Sabia que ele não ia pegar leve comigo — e, fiel ao seu estilo, ele não pegou.
— Você foi imprudente, Garoto Orquídea. — disse ele, o tom arrastado de sempre substituído por uma seriedade cirúrgica. — Ser impulsivo assim pode te matar. Não só em lutas, onde o sangue ferve. Mas na vida. Nas relações. Você atacou a honra de uma Rank 4 em praça pública. Você tem sorte de ainda ter uma língua na boca.
Estávamos na cantina, na mesma mesa de sempre. O barulho dos talheres ao redor parecia distante. Shin e Holi estavam lá também, mas o clima era fúnebre.
— Se você não tivesse sido tão… invasivo… — começou Shin, com aquele tom meio indiferente, mas dava para perceber a frustração trincando a máscara de calma dele. — Se tivesse segurado a curiosidade, nada disso teria acontecido. A Mina tem o ritmo dela.
— Você foi bem escroto, Ken. — completou Holi.
Ela não gaguejou. Não olhou para baixo. Disse olhando nos meus olhos, enquanto mordia uma maçã.
Aquilo doeu. Vindo da Holi, a garota mais doce do grupo… foi como levar um tapa na cara.
Mas ela estava certa. Todos estavam. Eu fiz merda.
E agora, com o Exame de Reclassificação chegando em duas semanas, eu devia estar focado, afiando meus instintos. Mas minha cabeça parecia uma névoa constante, presa naquele momento na praça.
E aquele cara… Rico Zyx?
Desde a nossa luta na arena, nunca mais vi a sombra dele. Talvez tenha sido sorte. A academia era uma cidade, afinal. Mas o arrepio na minha nuca me dizia que nossos caminhos iam se cruzar de novo. E da próxima vez, não haveria Levi ou Solara para parar o golpe final.
Para tentar fugir dos meus pensamentos, me afundei nos treinos com o professor Ren Tianyū.
Aprendi a controlar melhor meu Código Genético. Meus portais negros estavam mais rápidos, mais estáveis. Eu conseguia sentir a “textura” do espaço agora. Mas a técnica não preenchia o vazio.
Além dos treinos, eu andava fazendo “missões de caridade”.
Estava ajudando o professor Elref, um velho do Clã Enola que lecionava História das Camadas na Mansão Laranja. Ele usava óculos redondos fundo de garrafa, tinha uma barba longa e branca e parecia sempre saber a resposta para perguntas que ninguém tinha feito.
— Jovem Ken, leve essas caixas até a Maria para mim, por favor — pediu ele naquele fim de tarde, com a voz tremida de idade. — São reagentes que ela pediu. Cuidado, alguns explodem.
Fazia isso direto. Como a Maria analisava minha adaga, carregar umas caixas explosivas era o mínimo que eu podia fazer em troca.
O sol já estava se pondo quando saí da sala.
Os últimos raios dourados e alaranjados entravam pelas janelas altas do segundo andar da Mansão Laranja, criando faixas de luz que cortavam a poeira suspensa no ar.
O lugar estava vazio. Silencioso. A maioria dos alunos já tinha ido embora ou estava nos dormitórios. As sombras se estendiam pelos corredores, longas, escuras e solitárias.
Eu estava indo em direção à escadaria, equilibrando as caixas e meus próprios demônios, quando…
Ela apareceu.
Não houve som de passos. Não houve aviso.
Do nada.
Ela estava lá. Parada no meio do meu caminho, bloqueando a luz do poente.
Fiquei paralisado.
A presença dela era… diferente. Não era a pressão esmagadora de um Rank alto, mas algo mais afiado. Sombrio. Sufocante, como o ar antes de uma tempestade.
Seus cabelos negros estavam presos em dois coques laterais, propositalmente desalinhados, com fios soltos que balançavam levemente com o vento que entrava pela janela aberta. A franja reta, cortada com precisão militar, dava destaque aos olhos.
Olhos estreitos. Cinzentos. Frios como lâminas de aço.
Eles me encaravam com uma intensidade que não piscava.
A postura dela era relaxada, mas pronta para matar.
Sua roupa era uma declaração visual incomum na academia: uma túnica preta de mangas largas, estilo oriental, amarrada com uma faixa bege na cintura. Contrastava com as calças cinzas justas, modernas, cheias de bolsos táticos. As meias listradas e as botas de combate pesadas davam um toque de agressividade urbana à elegância ritualística da parte de cima.
Uma mistura de tradição e guerra.
Ela não disse nada.
Apenas me olhava.
E eu sentia… que aquele momento, por mais simples que parecesse, era um ponto de virada.
Ela me dissecava com aqueles olhos cinzentos. O olhar passeou lentamente por mim, dos pés à cabeça, avaliando minha postura, minha respiração, a forma como eu segurava a caixa. Era um olhar de julgamento. Frio. Quase de desprezo.
E então, com uma voz que soou firme, mas arrastada por um tédio perigoso, ela falou:
— Há quanto tempo… Ken Orquídea.
Eu franzi a testa, confuso.
Há quanto tempo?
O quê? Quem diabos era essa garota?
O rosto dela me soava… vagamente familiar. Como um rosto visto num sonho ruim ou numa foto antiga e desbotada. Havia um eco distante na minha memória, uma sensação incômoda que cutucava o fundo da minha mente, mas eu não conseguia agarrar.
Deixei as caixas no chão, encostadas na parede, com cuidado. O instinto dizia para liberar as mãos.
— Foi mal, mas… — comecei, limpando as mãos na calça. — Eu meio que não me lembro de você. Por acaso a gente se conhece de alguma aula?
Antes que eu pudesse terminar, ela se aproximou.
Passos rápidos, decididos, sem ruído.
Ela parou a poucos centímetros de mim, invadindo meu espaço pessoal. Senti o cheiro dela: incenso e metal.
Ela respirou fundo, fechou os olhos por um breve instante… e então os abriu. A expressão mudou. Havia uma mistura bizarra de nostalgia e uma pontada de mágoa — embora o tom de voz dela fosse puro aço.
— Meu nome é Rina Ebony. — disse ela. — Sou a garotinha que o seu mestre costumava levar com ele quando te treinava na neve. Fico um pouco… ofendida que você não se lembre de mim.
Mas o olhar dela não dizia “ofendida”. Dizia algo mais próximo de “decepcionada pela sua lerdeza”.
Rina Ebony.
O nome foi o gatilho.
Minhas lembranças, borradas pelo tempo e pelo trauma dos treinos, começaram a se alinhar.
Um vulto pequeno. Uma garotinha calada, sempre sentada num tronco, balançando as pernas enquanto eu apanhava e vomitava sangue na neve. Olhos grandes e observadores que nunca intervinham. Sempre próxima dele.
Daquele homem.
O homem que me quebrou e me refez. O homem que nunca me disse seu nome.
— Isso é… — gaguejei, o choque me atingindo. — Você é a garota da…
Mais uma vez, ela me cortou. Ela sabia exatamente o que eu ia perguntar.
— O nome do seu antigo mestre… — Ela virou levemente o rosto para a janela, o perfil iluminado pelo sol vermelho. — É Don Verk Nosfea.
O mundo parou.
O nome bateu no meu peito como um martelo de guerra.
Um nome, finalmente. Depois de anos chamando-o apenas de “Mestre” ou “Velho”.
Foi como acender uma vela num quarto escuro e perceber que as paredes estão cobertas de escritas que você não entende.
Rina voltou a me encarar.
— Ele é meu tio. Eu sou sobrinha dele. — Completou ela, com um orgulho estranho.
Eu abri a boca para perguntar. Onde ele está? Por que ele me treinou?
Mas Rina não estava ali para responder perguntas agora.
Ela se virou de costas, a túnica negra rodopiando.
— Me acompanhe.
Não foi um pedido. Foi uma ordem.
Hesitei por um segundo. Olhei para as caixas do professor Elref. Olhei para o corredor vazio.
Parte de mim queria gritar, exigir respostas. Mas a outra parte… a parte cansada, que tinha acabado de perder a Mina e se sentia à deriva… só queria alguém que soubesse o caminho.
Deixei as caixas ali mesmo.
E a segui para dentro das sombras do corredor, sem saber que estava caminhando direto para o passado que eu nem sabia que tinha.

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