O Elevador Central das Camadas subia em silêncio absoluto.
    Não era uma máquina; era um monólito de luz sólida cortando a espinha dorsal do mundo.

    Dentro dele, Acara Achlys observava o reflexo distorcido de si mesma nas paredes translúcidas. Sua expressão era uma máscara de porcelana fria, mas seus olhos, roxos como fogo antigo, queimavam com uma impaciência que faria o ar ferver se pudesse.

    O cubículo de luz estava cheio, mas parecia vazio.
    Executivos de terno polido que custavam mais que uma casa na Camada 7, técnicos com uniformes de metal líquido, empregados com bandejas flutuantes e membros da Guarda Cerimonial armados até os dentes.
    Ninguém ousava respirar perto dela. Havia um círculo de isolamento natural ao redor da Lâmina da Noite.

    O homem de óculos ao lado dela — um assessor de nível médio, suando frio apesar do ar condicionado perfeito — ajeitou a gravata pela décima vez. Ele pigarreei, tentando chamar a atenção da mulher que poderia matá-lo com um pensamento.

    — Senhorita Acara… — a voz dele tremia. — Irá passar em sua residência oficial primeiro para se preparar, ou deseja ir diretamente ao destino?

    Ela respondeu sem sequer virar o pescoço. O tom era seco, cortante, carregado de um desdém venenoso.

    — Vou direto ao Palácio de Jade. Quero saber por que infernos me tiraram de uma missão de campo ativa, com o cheiro de sangue ainda nas mãos, para vir até aqui brincar de política. E é bom que a resposta seja interessante.

    O homem apenas assentiu, engolindo em seco, e recuou para as sombras do elevador.

    O monólito parou na Camada 2 – Vanaheim. As portas se abriram com um brilho etéreo, revelando as plataformas aéreas da cidade flutuante dos nobres. A maioria dos passageiros desceu, aliviada por escapar da pressão de Acara.

    O elevador voltou a subir.
    Velocidade máxima. Destino: O Topo.

    1ª Camada — Asgard.

    As portas se abriram.
    E a luz cegou.

    Era dia em Asgard. Sempre parecia ser.
    A capital não era apenas uma cidade. Era uma promessa cumprida. Um delírio arquitetônico de perfeição, luz e ouro. A fronteira final entre o humano e o divino.

    O céu era vasto, de um azul cristalino e impossível, cortado por duas luas artificiais imóveis e um anel solar que girava lentamente no zênite, como uma auréola mecânica. O ar vibrava. Não era vento; era pura energia, uma pulsação rítmica que vinha do chão, das torres, das pontes de luz.

    As ruas eram largas avenidas de pedra branca, veias de ouro líquido pulsando sob a superfície, alimentando a cidade como o sangue de um colosso.
    Jardins suspensos desafiavam a gravidade, pairando no ar e se reorganizando conforme os passos dos transeuntes. Torres sem base tocavam a estratosfera, conectadas por pontes de vidro que se dobravam à vontade de quem caminhava.

    Era como andar dentro de um sonho lúcido. Ou de uma prisão de ouro maciço.

    Acara pisou na plataforma, os saltos estalando no chão perfeito. Ela olhou para o céu artificial com um suspiro de tédio profundo.

    — Que lugarzinho irritante… — resmungou, ajeitando a gola do quimono ainda sujo da lama da Camada -4. — Brilha demais. É melhor eu acabar logo com isso.

    O Palácio de Jade estava exatamente onde sempre esteve — no centro absoluto, o eixo do mundo.
    Ele se erguia sobre o “Zênite da Criação”, uma cratera que não emanava lava, mas luz líquida e vitalidade pura.

    A construção era uma afronta à modéstia: pilares infinitos de jade branca, entalhados com runas douradas que contavam a história da criação; portões vivos que liam o código genético de quem se aproximava; e uma cúpula colossal em forma de halo solar que girava sem parar.

    Ao cruzar os portões, Acara foi recebida por uma legião.
    Centenas de serviçais, alinhados em filas perfeitas. Todos usavam vestes alvas, imaculadas. Havia uma mistura absurda de etnias e raças — olhos de cores exóticas, peles de tons minerais, cabelos que pareciam feitos de cristal ou sombras.
    Todos parados. Silenciosos. Estátuas vivas aguardando a passagem da realeza.

    Acara parou no meio do corredor, as mãos na cintura, arqueando uma sobrancelha.

    — Que recepção mais… gelada. Estou quase comovida. Onde estão as trombetas?

    Um dos serviçais, um homem alto de olhos prateados e cabelo cinza trançado, deslizou até ela.

    — Senhorita Acara Achlys. Por favor… siga-me. O Senhor já está à sua espera na Sala do Trono.

    Sem comentar, ela o seguiu.
    Os corredores pareciam eternos, adornados com espelhos de luz e preenchidos por sons etéreos que vinham do teto, como coros de anjos sussurrando segredos.

    Após uma longa caminhada, o guia parou diante de um arco dourado maciço. Ele fez uma reverência profunda e se afastou.

    Acara empurrou as portas.
    Ela entrou sozinha.

    Ela já estivera ali várias vezes. Conhecia o peso daquele lugar.
    O chão era liso como um lago espelhado, refletindo o céu artificial acima. O trono, feito de Cristal Solar bruto, estava virado de costas para a entrada, reluzindo com todas as cores da aurora boreal.
    A atmosfera era pesada, sagrada. O ar tinha gosto de ozônio e poder absoluto.

    Sem hesitar, sem fazer reverência, Acara ergueu a voz. O eco reverberou nas paredes de jade.

    — Diga logo o que quer comigo, Sol’Zher Asgard! Tenho mais o que fazer do que admirar sua decoração!

    O trono girou.
    Lentamente.
    O som do cristal roçando o chão foi o único ruído.

    E ali…
    Sentado de qualquer jeito.
    Com uma perna jogada sobre o braço do trono sagrado, o corpo escorregado no assento como se estivesse na poltrona de casa, e uma nuvem de fumaça azulada subindo preguiçosamente de seus lábios…

    Estava ele.

    Don Verk Nosfea.

    Acara travou.
    A boca dela se abriu num sorriso de escárnio, incredulidade e uma exasperação cômica.

    — Não é possível… — ela soltou uma gargalhada curta, seca. — É você que tá aí, seu merda?

    Don Verk tirou o cigarro da boca, soltando a fumaça na direção do teto sagrado. Ele coçou a nuca, bagunçando ainda mais os cabelos negros e a mecha branca que caía sobre os olhos roxos semicerrados.

    — O que você tá fazendo sentado no trono do Rei dos Reis, Don? — perguntou ela, cruzando os braços. — Isso é blasfêmia, sabia? Ou suicídio.

    — Blasfêmia… suicídio… — murmurou ele, a voz rouca de quem fuma demais. — São só palavras, Acara. E esse trono…

    Ele deu um tapinha no cristal solar inestimável.

    — …é duro pra cacete. Não sei como o velho aguenta ficar sentado aqui o dia todo. Minha coluna tá me matando.

    Ele olha para ela.

    — E pare de gritar. Minha cabeça dói.

    — Onde está o Sol’Zher? — Acara perguntou, ignorando a reclamação, os olhos varrendo o salão vazio.

    — Demorou, hein, Acara? — A voz de Don ecoou pelo salão sagrado, reverberando no cristal. — Já estava ficando com a bunda quadrada de ficar sentado nessa coisa dura. O Rei tem péssimo gosto para conforto.

    Ele coçou a nuca com um sorrisinho preguiçoso, a outra mão segurando o braço do trono como se fosse o encosto de um banco de praça.

    Acara cruzou os braços, o tecido do quimono farfalhando. Ela olhou para ele, debatendo internamente se ria da audácia ou se o chutava dali.
    Don era assim. Um caos ambulante com o poder de destruir reinos — e a vontade de não sair da cama antes do meio-dia.

    — O que você está fazendo no Trono do Rei, seu imbecil? — perguntou ela, os olhos roxos brilhando com uma mistura de desconfiança e diversão contida. — Cadê o Sol’Zher?

    Don Verk balançou uma das pernas que estava pendurada sobre o braço do trono, balançando o pé no ar.

    — O Velho? — Ele apontou com o dedão para o teto, para o céu infinito. — Tá lá nas Planícies de Or’sea… treinando. Disse que precisava “alinhar os chakras com o universo” ou alguma bobagem assim.

    Acara franziu o cenho, a irritação voltando.
    — Hã? Treinando? Agora?

    Ela girou nos calcanhares, o cabelo negro chicoteando o ar.
    — Então estou indo embora. Se ele me tirou da missão, deve querer falar comigo. Vou subir até Or’sea.

    Ela deu dois passos em direção à saída.

    — Aonde você pensa que vai, “Chefinha”? — A voz de Don mudou. O tom arrastado sumiu, substituído por uma gravidade súbita.

    — Ué, vou atrás dele. — respondeu ela, sem parar.

    — Não foi ele que te chamou, Acara. — Don disse, a voz ecoando. — Fui eu.

    Acara parou.
    O silêncio no salão pesou toneladas.
    Ela girou lentamente, os olhos estreitados como fendas.

    — E por que não disse logo? — sibilou ela. — Fala, vai. Espero que seja algo interessante, Don. Senão você vai me dever uma missão de vingança contra um Dragão Ancião só para compensar meu tempo perdido.

    Don suspirou, recostando-se novamente. Ele tateou atrás do trono e puxou uma garrafa dourada cravejada de joias — provavelmente vinho sagrado da adega real. Tomou um gole generoso direto do gargalo, limpou a boca com a manga e olhou para ela.

    — Você lembra quando eu falei, há anos, de um garoto lá da Camada 5? Um órfão que eu queria treinar… porque achei que tinha “talento”?

    Acara acenou com a cabeça devagar, impaciente.
    — Lembro. O seu “projeto de estimação”. O que tem ele?

    — Então… — Don girou a garrafa na mão. — Ele não era um órfão qualquer. Ele é meu sobrinho. Filho da Vena Nosfea.

    O tempo parou.
    O ar no Palácio de Jade congelou.

    Os olhos de Acara se arregalaram. A máscara de tédio caiu, revelando o choque puro.
    Mas logo depois… ela sorriu. Um sorriso torto, cruel e carregado de uma ironia sangrenta.

    — Ora, ora… — Ela soltou uma risada baixa que ecoou friamente. — Que bomba deliciosa. Essa eu não esperava. Vena Nosfea… Faz tempo que não ouço esse nome maldito em voz alta.

    Ela começou a caminhar em círculos diante do estrado, o som dos saltos marcando o ritmo de sua fúria contida.

    — A mulher que enlouqueceu. A mulher que praticamente aniquilou a Família Principal do nosso Clã… e em especial… — A voz dela tremeu levemente. — …os meus pais.

    Ela parou, encarando Don com um olhar que poderia cortar vidro.

    — Você sabe, né? Eu poderia te matar agora por esconder isso. Eu poderia descer até a Camada 5 e arrancar a cabeça desse moleque só por ter o sangue dela. Mas mágoas antigas… bom, a gente enterra com os mortos, não é? — Ela inclinou a cabeça. — Mas você, Don… você cuidar e treinar o filho da mulher que destruiu nossa reputação? Isso é ousado até para você. É suicídio político.

    Don bebeu mais um gole, dessa vez mais devagar, os olhos roxos perdidos numa memória distante.

    — Quando ela fez aquilo… o massacre… ela já estava grávida, Acara. E quando ela desapareceu no Abismo, eu… eu meio que acreditei que ela tinha levado a criança junto. Ou matado.
    — Ele fechou os olhos por um instante, a expressão dolorosa. — Mas aí… eu comecei a me perguntar: e se ela tivesse deixado o bebê para trás? Como um último ato de sanidade?

    Ele suspirou, a fumaça invisível do passado saindo de seus lábios.

    — Foi num daqueles dias fodidos. Eu tinha acabado de perder minha própria filha. Para minha própria irmã. Eu era só mais um homem quebrado, um Rank alto inútil, bêbado, vagando sem rumo pela sujeira da Camada 5. Nem meu status importava. Eu só queria esquecer. Tudo.

    A voz dele baixou, transportando-os para aquele dia.


    Flashback – 16 Anos Atrás.
    Camada 5 – Periferia de Jotunheim.

    O vento cortante da neve misturava-se com o cheiro azedo de vinho barato em suas roupas.
    Don Verk cambaleava pelas vielas de pedra, a barba por fazer, a túnica nobre manchada de lama. Ele não era um guerreiro naquele dia; era um fantasma fugindo da dor.

    Foi então que a viu.

    Perto de uma fonte velha e congelada, uma mulher estava sentada.
    Ela não parecia dali. Tinha cabelos de um laranja vivo, como fogo na neve, e uma aparência simples, rústica. Mas a aura dela… era quente.
    Ela segurava um bebê envolto em panos marrons desbotados, ninando-o contra o frio.

    Don se aproximou devagar. Algo nele — talvez o sangue, talvez o instinto do Clã — gritou.
    A mulher levantou a cabeça.
    Ela o olhou diretamente nos olhos. Sem medo. Sem reverência.
    O olhar dela era firme, gentil… e absurdamente calmo, como se soubesse quem ele era, mas não se importasse com o título.

    — Olá — disse ela, com um sorriso tímido, ajeitando o bebê. — Você é do Clã da Escuridão, não é? Pelos olhos… Eu vim à capital hoje para prestar homenagem às vítimas do massacre… Sinto muito por tudo o que o seu povo sofreu.

    O bebê se mexeu nos braços dela. Uma mãozinha gorda puxou os fios ruivos da mulher, rindo.
    Don olhou para a criança.

    E então, ele viu.

    O bebê abriu os olhos.
    O esquerdo era roxo, profundo, a marca da linhagem.
    Mas o direito…
    Rosa.
    Não uma mancha. Não um defeito.
    Um rosa puro. Vivo. Vibrante como uma cicatriz de luz.
    O mesmo tom exato que brilhava na fenda dos olhos de Vena Nosfea quando ela usava seu poder total.

    Don travou. A garrafa escorregou de seus dedos e se espatifou na neve.
    O som do vidro quebrando foi a única coisa que se ouviu.
    Ele olhou para a criança. Para os olhos da assassina… num rosto inocente.

    — …Vena? — sussurrou ele, a voz embargada.


    Presente – Palácio de Jade.

    Acara escutava, encostada numa coluna de jade, com uma atenção rara.
    No fim da história, ela soltou um riso nasalado.

    — E a mulher não correu? Você devia estar parecendo um mendigo louco. — Ela balançou a cabeça. — Isso é… fascinante. E perturbador.

    Don deu um leve sorriso triste.

    — É isso que você comenta? — Ele riu sem graça. — Depois daquele dia… eu decidi. Eu não podia deixar o garoto morrer. Eu perdi minha filha, Acara. Não ia deixar o filho da minha irmã morrer de fome ou ser caçado como um animal.
    — Ele apertou a garrafa. — Eu cobri todos os gastos. Paguei a educação, a saúde, mandei suprimentos anonimamente. Nunca cheguei perto demais para não levantar suspeitas. Mas… eu precisava garantir que ele tivesse uma chance.

    Acara suspirou, virando de costas e olhando para o trono vazio ao lado de Don.

    — Sinceramente, Don… você é um mole. Naquela época, se o Conselho tivesse achado ele, teriam executado o bebê sem piscar. Ele era um “Erro”. Um fantasma com um alvo na testa. Você arriscou tudo por sentimentalismo.

    Ela se virou para ele novamente, impaciente.

    — Mas enfim… onde você quer chegar com essa história toda de novela? O garoto está aonde? Está vivo. Ótimo. Por que me chamou aqui?

    Don Verk parou de balançar a perna.
    Ele se inclinou para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos. O rosto dele ficou sério, sombrio, a aura de Rank S vazando e fazendo o ar do salão vibrar.

    — A mulher que adotou o Ken… Katarina. — disse ele, a voz pesada como chumbo. — Eu mandei um observador checar a casa ontem pela manhã.

    Acara estreitou os olhos.

    — E?

    — A casa estava vazia. Havia sangue na neve. Sangue do marido.
    — Don olhou nos olhos de Acara. — E ela… Katarina desapareceu.

    O silêncio caiu sobre o Palácio de Jade como uma mortalha.
    Não era apenas um desaparecimento. Era um presságio.

    — E eu sinto cheiro de Vena nisso, Acara. — completou Don. — Ela voltou.

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