O silêncio caiu sobre o Palácio de Jade como uma sombra espessa e sufocante.

    — Depois que recebi o relatório… — continuou Don, a voz rouca. — Eu mesmo fui até a Camada 5. Precisava ver com meus próprios olhos. Só para garantir…

    Ele apertou a garrafa de ouro entre os dedos com tanta força que o metal gemeu e deformou.

    — Foi então que… eu cheguei tarde demais.


    Flashback – Um Dia Atrás.
    Camada 5 – Jotunheim.

    A neve caía fina, silenciosa e implacável. O vento soprava frio como uma navalha invisível, cortando a pele exposta como se tentasse arrancar as memórias de quem ousasse caminhar por ali.
    A casa de Katarina, isolada na borda mais distante da camada, erguia-se como uma cicatriz esquecida do mundo, cercada por pinheiros que pareciam sentinelas mortas.

    Don Verk caminhava com passos firmes, a neve estalando sob suas botas. A aura dele repelia o frio, mas sua expressão era tempestuosa.
    Ao lado dele, uma jovem do Clã da Escuridão o seguia.
    Ela tinha olhos roxos intensos, brilhando como ametistas em brasa na penumbra branca. Seus cabelos eram negros como a noite sem estrelas, e marcas vermelhas, semelhantes a cicatrizes rituais, desciam de seus olhos até o queixo. Ela tremia levemente, não de medo, mas do gelo que penetrava os ossos.

    — Chefe Verk… — chamou ela, a voz abafada pelo vento. — Essa tal de Katarina… por que ela morava tão longe da capital? Estamos quase no limite da barreira da camada. Esse frio está congelando até minha sombra…

    Don nem olhou para ela. Um sorrisinho preguiço brotou em seu rosto, mas carregado de um sarcasmo amargo.

    — O melhor lugar para esconder algo precioso, Sienna, é onde ninguém quer ir.

    Mas, antes que pudessem chegar à porta da cabana, Don parou subitamente.
    O sorriso sumiu.

    O cheiro.
    Algo pútrido, doce e metálico, cortou o ar puro da montanha. Era denso. Pesado.

    A mão de Don foi instintivamente para a empunhadura da katana em sua cintura.

    — Fique atrás de mim. — murmurou ele. A ordem não admitia questionamentos.

    Ele correu. Não foi um movimento humano; foi um borrão.
    Sienna arregalou os olhos, surpresa com a reação súbita do “preguiçoso” Don Verk, mas correu atrás.

    Ao chegarem à clareira da frente, o horror os atingiu como um soco físico no estômago.

    Fernandes.
    Ele estava estirado no chão, perto da pilha de lenha.
    O corpo já estava rígido, a pele cinzenta manchada pelo frio e pela morte. O sangue ao redor dele havia congelado numa poça escura. O cheiro era sufocante, uma mistura de vísceras expostas e carne que começava a perder a batalha para o tempo. Moscas de inverno, raras e lentas, rodavam sobre ele.

    Don parou.
    Seus olhos roxos se estreitaram. A mão no cabo da espada tremeu, apenas uma vez.

    — É uma pena… — sussurrou ele. — Um homem bom.

    Sienna correu e ajoelhou-se ao lado do cadáver, ignorando o cheiro. Ela tocou o pulso gélido, depois o pescoço. Fez uma careta.

    — Isso aconteceu ontem… O frio preservou parte da estrutura neural. — Ela olhou para Don. — Posso trazê-lo de volta. Temporariamente. Só o bastante para um interrogatório final.

    Don apenas acenou com a cabeça, rígido.

    Sienna não hesitou. Ela levou o dedo à boca e mordeu com força, rasgando a pele.
    Gotas de sangue escarlate, carregadas de mana, caíram sobre os lábios azuis do morto.
    Em seguida, num movimento brutal, ela cravou a mão no peito de Fernandes, atravessando a carne morta até alcançar o coração parado.

    Rito de Lázaro.

    O corpo dela estremeceu violentamente, e ela desabou na neve, desmaiada pelo custo da técnica.

    No instante seguinte, a cor voltou à pele de Fernandes numa onda sobrenatural.
    Os olhos dele se abriram com um estalo. Ele arfou, puxando o ar com desespero, como alguém que emerge de um afogamento em águas profundas.

    — Katarina…?! KATARINA?! — Ele gritou, tentando se levantar, mas suas pernas não existiam mais para ele.

    Ele olhou ao redor, frenético, até seus olhos encontrarem Don Verk. A confusão durou um segundo. Então, ele olhou para o próprio peito, para o buraco, para o sangue seco.

    — Ah… — A voz dele quebrou. — Entendi. Estou morto, não é?

    Don se ajoelhou à frente dele, ignorando a neve que molhava sua roupa cara.

    — Sim. Você tem pouco tempo, Fernandes. Me diga tudo. Quem fez isso?

    — Eu… fui assassinado. Foi rápido. — Fernandes parecia tonto, sua alma oscilando entre aqui e o além. — Não consegui ver o rosto… mas… Katarina… ela foi levada.
    — Ele agarrou o braço de Don com uma força surpreendente. — Uma mulher apareceu. Estranha. Senti algo nela… algo antigo. Sombrio como a noite. Katarina tentou resistir… tentou usar uma faca de cozinha…

    Don inclinou o rosto, a sombra cobrindo seus olhos.
    — Você chegou a ver a mulher?

    Fernandes engoliu em seco. A pele começava a empalidecer de novo, o tempo acabando.

    — Não totalmente… O capuz cobria o rosto. Mas antes de eu apagar… ouvi Katarina gritar um nome. Um nome que parecia… que ela conhecia. Que ela temia.

    Silêncio. Apenas o vento uivava.

    — Era… Vena.

    O tempo congelou.
    O mundo parou de girar para Don Verk.

    Os olhos dele se arregalaram. A pressão espiritual dele vazou, rachando o chão de gelo ao redor.
    Aquilo foi como um soco vindo do passado. Fazia dezesseis anos que ele enterrava aquele nome.

    Vena Nosfea.

    Fernandes começou a rir, um som fraco, borbulhante de sangue.

    — Fui inútil… nem pra morrer com dignidade eu servi. Não consegui proteger minha esposa.

    — Fernandes… — Don tentou falar.

    — Me escuta… — O homem morto apertou o braço de Don. — Por favor… Proteja o Ken. Eu não fui o pai biológico… mas ele era meu filho. Quero… quero que ele fique bem. Não deixe ele ver isso. Proteja-o. E salve a Katarina… se puder.

    Um último sorriso, triste e cheio de amor, rasgou o rosto de Fernandes.
    — Adeus…

    A luz nos olhos dele se apagou. O corpo ficou pesado e caiu na neve, vazio mais uma vez.

    — Descanse em paz, velho amigo. — sussurrou Don, fechando os olhos do homem.

    Sienna acordou nesse momento, ofegante, limpando o sangue da boca.
    — Eu ouvi tudo… através do elo. Chefe… Essa tal de Vena… Quem é ela?

    Don se levantou. Ele parecia mais alto. Mais terrível.
    Ele começou a andar em direção à porta da cabana, que estava entreaberta.

    — …Ela é… — A voz de Don era um trovão distante. — Minha irmã mais nova.

    Sienna congelou, ainda no chão.
    — O QUÊ?!

    Ela se levantou cambaleando.
    — Precisamos enterrar ele… chamar reforços…

    Mas Don não respondeu.
    Ele caminhou até a porta e a empurrou.

    E parou.

    Ali, no meio da sala de estar destruída, envolta por sombras deformadas que pareciam dançar ao seu redor, estava uma figura.
    Usava uma capa escura, pesada, e uma máscara lisa, sem rosto.
    Na mão direita, segurava uma espada incomum. A lâmina não era reta, nem curva. Ela fazia um laço completo, uma curva afiada e impossível que brilhava como mercúrio negro e pulsante.

    A figura se virou lentamente para Don.
    Não havia medo. Havia espera.

    Foi ali que tudo explodiu.

    Num único movimento, rápido demais para o olho humano registrar, Don sacou a katana.
    IAIGIRI.

    Um clarão. Um feixe de luz roxa cortou a realidade.
    SHIIIING.

    Num instante, a cabana inteira foi cortada ao meio.
    O teto, as paredes, a mobília. Tudo se separou horizontalmente. A parte de cima da casa deslizou e caiu na neve com um estrondo, levantando uma nuvem branca.
    O corte se estendeu para a floresta atrás da casa, derrubando dez árvores em linha reta.

    Foi um corte limpo. Violento. Divino.

    Sienna correu até a entrada, protegendo o rosto dos destroços.
    — Chefe!

    A poeira baixou.
    Don estava ali, parado com sua katana fora da bainha, a lâmina fumegando pelo atrito com o ar. A expressão dele era grave como uma lápide.

    Do outro lado da destruição, entre os escombros da casa fatiada…
    A figura encapuzada permanecia de pé.
    Ilesa.

    Ela havia bloqueado. Ou desviado. Ou simplesmente… o corte não a tocou.

    A figura ergueu sua espada de laço. Apontou a ponta curva para Don.
    Nenhuma palavra foi dita. Apenas a tensão de dois universos colidindo. A pressão no ar era tão forte que a neve ao redor deles derreteu instantaneamente.

    Sienna tentou dar um passo à frente, puxando suas adagas.
    — Chefe Verk! Eu vou ajudar—

    NÃO! — A voz de Don foi um grito de comando absoluto. Ele não desviou o olhar do inimigo. — Fique fora disso, Sienna. Se você der um passo, você morre.

    Silêncio. Vento. O ranger da madeira quebrada.

    Don apertou o cabo da katana, os nós dos dedos brancos.

    — Ele é forte. — murmurou Don, o suor frio escorrendo pela têmpora. — Forte o bastante para estar… no meu nível.

    Sienna engoliu em seco, paralisada pelo terror.
    O quê…? pensou ela, sentindo as pernas tremerem. Aquela figura… está no mesmo nível que… o Deus da Espada… Don Verk Nosfea?!

    Era o início de uma guerra que faria as Camadas tremerem.

    A neve continuava a cair, fina e silenciosa… Mas ali, no epicentro do que restava da casa de Katarina, o tempo parecia ter congelado por respeito ao massacre iminente.

    Don Verk girou levemente o pulso, o couro da empunhadura da katana rangendo sob a luva. Seus olhos roxos estavam semicerrados, preguiçosos, quase sonolentos… mas quem olhasse bem veria o brilho de um predador espreitando por trás daquele tédio fabricado.

    Então, a realidade piscou.

    Don desapareceu.
    Não houve movimento de corrida. Ele simplesmente deixou de existir num ponto e passou a existir em outro.

    CRAAACK!

    O som da investida chegou atrasado — um estalo sônico que quebrou o silêncio da montanha como um trovão reprimido.
    Ele surgiu ao lado da figura encapuzada, a lâmina descendo num arco perfeito.

    A figura mal teve tempo de processar. Num reflexo desumano, cruzou sua espada de formato estranho — a ponta em laço — para aparar o golpe.

    BOOM.

    O impacto foi devastador. Mesmo defendendo, a figura foi arremessada como um projétil de artilharia. Seus pés rasgaram o chão congelado, levantando trincheiras de neve e terra enquanto deslizava para trás.
    Mas ela não caiu.
    Pousou firme, de pé, com os joelhos flexionados, a fumaça do atrito saindo das botas.

    Don franziu o cenho levemente, ajeitando a postura.

    — Como eu imaginei… — murmurou para si mesmo. — Os reflexos dele são irritantes.

    Ele ergueu a katana, apoiando a lâmina de leve no próprio ombro, num gesto relaxado e provocador.

    — Me diga… — A voz dele ecoou. — Quem é você? O que fez aqui? Não prefere resolver isso na conversa, tomando um chá quente? Eu pago.

    A figura não respondeu.
    Apenas girou a espada curva no pulso, o som do ar sendo cortado zunindo como uma serra. Ela assumiu uma base baixa, ofensiva.

    Don suspirou, balançando a cabeça.
    — Hm. Certo… Não diga que eu não tentei ser civilizado.

    E então… o olhar dele mudou.
    O tédio evaporou. A aura de “preguiçoso” foi substituída por uma pressão espiritual tão densa que a neve ao redor dele derreteu antes de tocar o chão.
    Entrou a Fera.

    O ar tremeu.

    Don avançou de novo. Dessa vez, não foi um teleporte. Foi força bruta.
    O chão explodiu onde ele pisou. Ele se lançou para frente como um míssil.
    Sua katana veio num golpe estocado, limpo, visando a garganta. Morte instantânea.

    Mas a figura girou.
    Usando a curvatura impossível de sua espada em laço, ela “prendeu” a lâmina de Don.
    Com um movimento de alavanca, ela redirecionou a força cinética do Rank S contra ele mesmo.

    Don foi lançado para trás como se tivesse sido atingido por uma rajada de vento negro.

    No ar, Don suspirou de novo, agora mais fundo.
    Ele girou o corpo, recuperando o equilíbrio antes da gravidade agir.
    Seus pés ainda nem haviam tocado o chão quando ele desapareceu mais uma vez.

    VUP.

    Reapareceu no alto, exatamente no ponto cego, acima da cabeça da figura.
    A gravidade somada à força do golpe. Um ataque vertical para partir o crânio.

    Mas, num reflexo absurdo, a figura ergueu a espada acima da cabeça e a girou.

    SHUUUMMM!

    A lâmina curva criou um vácuo. A pressão do ar formou um vórtice, um “loop” invisível que explodiu para cima como um tornado concentrado.
    A força repulsiva jogou Don para longe outra vez.

    Don caiu de pé, deslizando na neve com elegância, mas levou a mão à boca.
    Limpou um fio fino de sangue no canto dos lábios.

    Ele olhou para o sangue no dedo. Depois para o inimigo.

    — Entendi. — disse ele, os olhos roxos brilhando de análise. — Sua técnica gira em torno da manipulação de fluxo e pressão atmosférica. Sua espada não corta apenas carne; ela dobra o ar. Por isso os ataques se redirecionam… como um loop infinito.

    A figura oscilou. A postura dela tencionou. Parecia incomodada por ter sido decifrada tão rápido.

    Don sorriu.
    Pela primeira vez no combate, não foi um sorriso de escárnio. Foi um sorriso de reconhecimento.

    — Um estilo genérico, mas perigoso nas mãos certas. — Ele abaixou a espada, deixando a ponta tocar a neve. — Interessante. Você merece ver isso.

    A temperatura caiu drasticamente.
    Sienna, assistindo de longe, sentiu o ar ficar rarefeito, difícil de respirar.

    Don fechou os olhos por um segundo.
    Quando os abriu, a pupila estava dilatada, focada em algo além do plano físico.
    Ele sussurrou:

    Técnica Proibida: Linhas da Última Princesa.

    O mundo parou.
    Literalmente.

    Por um instante, o universo prendeu a respiração. Nenhum floco de neve caiu. O vento cessou. O som morreu. A luz do dia ficou cinza, estática.
    Apenas Don se movia naquele quadro congelado.

    E então, o corte aconteceu.

    Não foi um movimento físico. Don Verk não correu. Ele apenas trçou a katana no ar à sua frente.
    Mas o corte não respeitou a distância. Ele reescreveu a realidade.

    SHIIING.

    Uma linha roxa, fina como um fio de cabelo, apareceu no mundo, atravessando a distância entre Don e a figura.
    As árvores atrás do inimigo foram cortadas ao meio sem barulho.
    A própria figura… se partiu.
    Do ombro direito até a cintura esquerda. As duas metades deslizaram, separando-se.

    Mas antes que o sangue jorrasse, antes que a morte fosse confirmada…
    O tempo se corrigiu.
    Como uma fita voltando, o corpo se recompôs. A carne se uniu. O corte desapareceu fisicamente.

    Mas o dano estava feito.

    A figura caiu de joelhos, tremendo violentamente, e vomitou bile na neve.
    Os olhos por trás da máscara reviraram.
    O golpe não cortou a carne. Cortou a possibilidade de movimento. Cortou a vontade.

    Don embainhou a katana. O clique da guarda batendo na bainha fez o tempo voltar a correr.

    — O “Linhas da Última Princesa” não é um corte espacial. — explicou ele, caminhando devagar até o inimigo caído. — Ele reescreve a ação na linha temporal do golpe. Eu cortei você numa realidade adjacente. Seu cérebro sentiu a morte. Eu poderia ter apagado seu coração da existência… mas hoje estou misericordioso.

    De longe, Sienna abraçava o próprio corpo para parar de tremer.
    E-ele disse que eles estavam no mesmo nível…? — gaguejou ela, aterrorizada. — Isso é… isso é mentira! Ele estava brincando com a comida! Isso não é justo!

    Don parou diante da figura que tentava se erguer, trêmula, mas cujos nervos não respondiam.

    Ele se agachou.
    Com cuidado, quase com delicadeza, levou a mão à máscara da figura.
    Puxou.
    O capuz caiu junto.

    E por baixo…
    Não havia um monstro. Não havia um demônio antigo.

    Havia uma mulher.

    Seu cabelo preto estava preso num coque alto, despojado e moderno, com mechas soltas e suadas colando no rosto pálido. As sobrancelhas eram finas, arqueadas numa expressão de dor e choque.
    Nas orelhas, uma coleção de piercings prateados brilhava sob a luz fria, dando a ela um ar urbano e rebelde.

    Mas eram os olhos que prendiam a atenção.
    Escuros, profundos, arregalados de pavor. Havia algo de selvagem neles, como um animal encurralado que sabe que o caçador é invencível.

    Ela ofegava, olhando para Don, esperando o golpe final.

    Don a observou por um longo momento. O rosto dele era ilegível.
    Ele respirou fundo, soltando o ar numa nuvem branca.

    — …Então você é humana. — disse ele, a voz baixa. — E pelo visto… uma humana bem longe de casa.

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