Capítulo 27: Clã da escuridão
Após Don ter terminado o relato sobre o massacre na neve e o duelo, o silêncio foi quebrado não por choque, mas por uma gargalhada.
Acara riu. O som ecoou pelo salão de cristal como uma lâmina de vidro se estilhaçando, envolta em puro escárnio.
— Hahahaha… Então é isso? — Ela limpou uma lágrima de riso, balançando a cabeça. — O Grande Don Verk, o preguiçoso número um, capturou uma inimiga viva e a escondeu no porão? Isso é tão… doméstico.
Don Verk Nosfea estava encostado na lateral do Trono de Jade, girando a garrafa de ouro devagar entre os dedos, observando o líquido balançar como se ponderasse a existência do universo ali dentro.
— Depois do confronto, levei-a até minha mansão particular. — disse ele, ignorando a zombaria. — Se alguém dos Três Palácios soubesse dela, seria executada no ato, sem perguntas. Tentei interrogá-la por horas, mas… ela tem uma mente de aço. Quase não disse nada. Nem nome real, nem facção. Apenas ódio.
Acara cruzou os braços, o tecido do quimono farfalhando. Sua expressão se manteve divertida, mas o olhar roxo se afiou, tornando-se uma adaga pronta para cravar.
— Hum… Quero ver esse “bichinho de estimação” depois. Mas enfim — ela deu um passo à frente, a paciência esgotando. — Por que me chamou aqui, Don? Você não me tirou do pântano só para contar uma história de guerra.
Don ficou em silêncio por um momento longo e pesado.
Ele bebeu um gole profundo. Olhou para o chão reflexivo, depois ergueu os olhos roxos, agora desprovidos de qualquer preguiça.
— Como você deve imaginar… a Vena está atrás do Ken. Ela quer o filho de volta. Mas eu sei o motivo exato, o catalisador. — Ele baixou a voz. — Ela não quer apenas o garoto. Ela está procurando pela… Lâmina Gêmea de Silvit. A Adaga de Julia.
O salão gelou.
A temperatura despencou dez graus em um segundo.
O sorriso de Acara desfez-se como fumaça ao vento. Seus olhos se arregalaram, as pupilas contraindo. Um silêncio denso, físico, tomou conta do ambiente — o tipo de vácuo que antecede uma explosão nuclear.
Um segundo depois, ela sorriu… mas dessa vez era diferente. O sorriso era tenso, trêmulo, cheio de um veneno contido que queimava a garganta.
— Você quer dizer… — A voz dela era um sussurro sibilante. — Que aquele garoto… um bastardo escondido na Camada 4… tem a posse de uma das Armas Divinas da antiga Rank 1? Como se fosse um brinquedo de criança?
Ela deu um passo em direção ao trono. O chão de espelho trincou sob o salto dela.
— E você… — ela trincou os dentes, a voz subindo. — …você escondeu isso do Clã e do Conselho por dezesseis anos?
BOOM.
A aura negra de Acara explodiu.
Ela engoliu metade do salão.
Era densa. Viva. Selvagem. As sombras se contorciam ao redor dela como serpentes gigantescas e famintas, devorando a luz sagrada do Palácio de Jade. O ar ficou difícil de respirar.
— DON VERK NOSFEA! — O grito dela fez as janelas vibrarem. — Mesmo que você seja meu primo de sangue, isso é alta traição! É uma quebra direta nas Leis Fundamentais das Camadas! E uma afronta imperdoável ao nosso Clã!
Don a encarou, imóvel. A aura dele nem tremeluziu diante da fúria dela. Ele permaneceu sereno, o olhar cansado, mas firme como uma rocha no meio do oceano.
— Eu já imaginava que você reagiria assim. Gritaria, quebraria coisas. — Ele disse, calmo. — Por isso te chamei.
Ele apontou a garrafa para ela.
— Quero que você treine o garoto.
Acara piscou, a aura vacilando por um segundo.
— O quê?
— Vá até a Camada 4. Fale com ele. Treine-o. Explique o que está acontecendo, o peso do que ele carrega. — Don suspirou. — Acredito que ele vai entender a gravidade da situação muito melhor vindo de você… a Chefe do Clã da Escuridão. A mulher que carrega o peso da liderança.
Acara rangeu os dentes, os punhos cerrados tremendo de vontade de socá-lo. Ela sustentou o olhar dele, buscando mentira ou fraqueza. Não encontrou nenhuma.
Lentamente, a aura negra se dissipou, recolhendo as garras para dentro da pele pálida.
Ela virou as costas num movimento brusco, ajeitando o longo manto escuro que usava.
— Hmph… — Ela bufou. — Se é só isso, então tudo bem. Eu vou ver o que esse moleque tem de especial. Academia Fjorheim, certo? A escola daquele velho, o Johan… Vai ser fácil.
Don assentiu, desencostando do trono e se levantando, estalando o pescoço.
— Vá quando o Exame de Reclassificação estiver acontecendo. Daqui a uma semana. Assim ele estará mais… receptivo. E vulnerável.
Acara começou a caminhar em direção à saída, os passos firmes ecoando no piso transparente como sentenças de morte.
— Não se preocupe com o timing, Don. — Ela olhou por cima do ombro, um sorriso perigoso nos lábios. — Eu já ia fazer isso de qualquer forma. Agora, tenho uma desculpa oficial.
Ela desapareceu pelas grandes portas de pedra, as sombras a seguindo como fiéis cães de guarda.
O salão ficou em silêncio novamente.
Apenas o leve tilintar da corrente do cálice de Don balançando no cinto quebrava a quietude.
Foi quando ele ouviu.
O som de passos. Não eram passos comuns. Eram passos que pareciam feitos de plumas e luz.
Vinham de trás do trono.
Sem se virar, Don murmurou, levando a garrafa à boca:
— Então você escutou tudo, né…? Que feio, bisbilhotar conversas alheias.
Do fundo do salão, emergindo das sombras com a leveza de um véu ao vento, veio ela.
Altaira’Zher Asgard.
A Rainha de Todas as Camadas. A Mãe do Sol.
Sua presença não era violenta como a de Acara. Era como um amanhecer: silenciosa, gradual, mas absolutamente esmagadora. Ninguém pode impedir o sol de nascer.
Altaira era a imagem viva da realeza intocável.
Os longos trajes fluidos — em tons de ouro pálido, carmim profundo e marfim cintilante — ondulavam com uma elegância sobrenatural, bordados com flores que pareciam ter sido colhidas dos próprios jardins celestiais e costuradas no tecido.
Seus cabelos loiros, quase brancos, estavam presos num penteado alto e meticuloso, adornado com pequenas flores douradas e folhas finas de metal que balançavam como pendentes reais a cada respiração.
Mas eram seus olhos verdes que verdadeiramente dominavam a sala.
Serenos. Antigos.
Eles olhavam através das camadas, através da carne, através das mentiras. Eram calmos, mas autoritários. Olhos de alguém que viu impérios nascerem, queimarem e virarem pó, e ainda assim permaneceu de pé.
Uma marca delicada, um sol estilizado, brilhava na testa dela, pulsando com luz própria.
— Don Verk… — disse ela. A voz era veludo e aço. Serena, quase melancólica, mas carregada de um comando absoluto. — Estou surpresa, e levemente decepcionada, que tenha omitido o assunto do Palácio Esmeralda da conversa com Acara.
Don girou o ombro, sem pressa, sem reverência.
— Ainda não é o momento, Majestade. — Ele bebeu mais um gole. — Quero investigar a traição do Esmeralda sozinho… Por enquanto, é um jogo de sombras. Só eu. E claro… também envolve seu filho, o Rei.
Ela fechou os olhos por um instante, a expressão levemente endurecida, como se uma nuvem passasse diante do sol.
— É uma blasfêmia tratar o Rei dos Reis como se fosse seu igual, Don. Ou seu peão.
Don deu uma risada baixa, rouca e debochada. Ele começou a caminhar em direção à saída lateral, passando pela Rainha sem baixar a cabeça.
— Fica de boas, Altaira. — Ele acenou com a mão livre. — O mundo vai mudar muito em breve… E quando mudar, o Sol’zher nem vai se importar com títulos. Entraremos numa era onde rei, servo e monstro serão um só na lama.
Ele saiu pelas portas laterais, a garrafa ainda em mãos, a expressão despreocupada contrastando violentamente com o peso profético de suas palavras.
Altaira ficou ali.
Sozinha diante do Trono de Jade vazio.
Silêncio.
Ela olhou para o assento real. Tão grande. Tão frio. Tão… inevitável.
A luz do salão refletiu em seus olhos verdes, escondendo o medo que ela jamais admitiria sentir.
Fechou os olhos.
E, sem dizer mais uma palavra, virou-se e saiu, envolta por suas vestes reais, desaparecendo na luz como o último raio de sol ao fim de uma era de ouro.
Acara saiu do Palácio de Jade com um bufar de irritação que quase soltou faíscas. Ela ajustou o quimono escuro sobre os ombros num movimento brusco, como se tentasse sacudir a poeira sagrada de Asgard.
O sol artificial brilhava sobre ela com aquele calor limpo, estéril e irritantemente puro. Era como se até o céu da Camada 1 a estivesse julgando.
Sem perder tempo, ela caminhou até o Elevador Central.
Assim que entrou, a luz sólida a envolveu.
ZUP.
A gravidade puxou seu estômago. Descida vertical.
Quando as portas se abriram novamente, o cheiro mudou. O gosto de ozônio sumiu, substituído por perfume de flores e terra úmida.
Camada 2 – Vanaheim.
Se Asgard era a perfeição dourada e intocável, Vanaheim era o paraíso orgânico.
Árvores de troncos esguios e prateados sustentavam copas de folhas douradas que cantavam com a brisa suave. Rios de água tão límpida que parecia vidro líquido serpenteavam entre as construções, que não agrediam a paisagem, mas cresciam dela.
O céu era de um azul profundo, real, cortado por nuvens naturais que desfilavam preguiçosamente. E o sol… o sol aqui era branco. Uma luz crua, filtrada, mais honesta do que a auréola mecânica de cima.
Da varanda da Torre de Luz, Acara olhou para baixo com desdém.
Via-se tudo: as casas cobertas de heras vivas, as pontes em arco de cristal sobre os rios e, imponente ao longe, a Catedral do Sol, irradiando uma presença magnética, como o coração pulsante da fé cega daquela camada.
Acima, as plataformas flutuantes da nobreza deslizavam como ilhas de opulência.
Acara desceu para as ruas. Ela abriu caminho como um tubarão num aquário de peixinhos dourados.
Ao redor, camponeses, sacerdotes e mercadores vestiam roupas de tecidos leves, coloridos e alegres. Ela detestava aquilo. Sua figura vestida de preto e roxo era uma mancha de tinta num quadro aquarela.
A Sede de Vanaheim era um coliseu aberto, feito de pedra imaculada entrelaçada com fios de ouro.
Antes que Acara pudesse se irritar com a demora, uma mulher surgiu.
Olhos roxos. Cabelos pretos. A marca inconfundível do Clã da Escuridão.
— Muito prazer, Senhorita Acara… — disse a mulher, curvando-se tanto que quase tocou o chão. — O barco a aguarda.
Sem se importar com os olhares curiosos dos turistas, Acara seguiu a mulher até o cais privativo.
Entrou num dos barcos de transporte — uma embarcação longa, negra e elegante, que deslizava pela água sem fazer marolas, como uma serpente de seda.
A água era tão cristalina que peixes luminescentes nadavam sob o casco, fugindo da sombra do barco como se sentissem o perigo a bordo.
Após uma longa travessia pelos canais labirínticos, deixando a cidade colorida para trás, a paisagem mudou. As árvores douradas deram lugar a salgueiros chorões de folhas cinzentas. A luz diminuiu.
Finalmente, chegaram ao Norte da Camada. O domínio dela.
O Palácio de Obsidiana.
A estrutura era um grito de guerra silencioso contra a beleza natural de Vanaheim.
Uma fortaleza colossal feita inteiramente de obsidiana polida, negra e afiada. As paredes não absorviam a luz; elas a refletiam de forma distorcida, como um espelho quebrado que mostrava uma versão corrompida do mundo.
Colunas torcidas sustentavam os andares superiores, e as janelas tinham formas agressivas, como olhos semicerrados de predadores. O teto, espelhado, refletia um céu noturno eterno, recusando-se a aceitar o sol branco de Vanaheim.
Acara desembarcou e caminhou pelos jardins sombrios.
Árvores negras com folhas grossas e opacas. Flores exóticas que exalavam uma fumaça violeta constante, envolvendo o ar com uma fragrância doce, pesada e narcótica. Pequenos rios corriam pelos jardins, negros como óleo, mas límpidos o suficiente para ver o fundo — ou as coisas que rastejavam lá dentro.
Jardineiros e guardas trabalhavam em silêncio absoluto. Todos paravam e se curvavam quando ela passava. Ninguém ousava respirar alto.
Ao entrar no saguão, a escuridão fria foi substituída por uma luz suave e fantasmagórica. Cristais etéreos flutuavam livremente pelo teto alto, navegando o ar como águas-vivas ou vaga-lumes de outro mundo.
Duas empregadas surgiram das sombras imediatamente.
Mãos rápidas e eficientes retiraram o quimono de viagem de Acara e colocaram sobre seus ombros um roupão de veludo negro, pesado, bordado com fios cor de vinho. As criadas eram idênticas: olhos violeta, cabelos presos, uniformes pretos com flores vermelhas. Bonecas perfeitas do Clã.
Acara suspirou, relaxando os ombros pela primeira vez no dia.
Mas antes que pudesse ir para seus aposentos…
TOC.
Passo.
TOC.
Passo.
O som rítmico e seco de madeira batendo no piso de pedra ecoou pelo corredor vasto.
Acara parou. O rosto dela suavizou, perdendo a crueldade por um milésimo de segundo.
Ela olhou para a direita.
Uma pequena figura se aproximava.
Cabelos pretos presos em duas maria-chiquinhas firmes e simétricas. Olhos roxos, grandes e redondos como botões de ametista, que não piscavam. A expressão era séria demais, adulta demais para o rosto infantil.
Ela caminhava com uma muleta de madeira escura sob o braço direito. O vestido gótico curto balançava conforme ela apoiava o peso.
A perna esquerda não existia. Havia apenas o vazio abaixo do joelho.
Mas cada passo dela era orgulhoso.
— Bem-vinda de volta, mamãe. — disse a menina. A voz era sóbria, monocórdica, como a de um juiz lendo uma sentença.
Acara deu um sorrisinho de canto. Ela se abaixou levemente.
— Gia… saiu da cama só pra me receber? Que atenciosa da sua parte.
— Não seja presunçosa. — respondeu Gia, ajeitando a muleta. — Só vim avisar que você tem uma visita. E é uma visita pesada.
Acara franziu o cenho, a ternura desaparecendo.
Visita? Aqui? Sem aviso?
Ela se endireitou e seguiu direto para o Salão Principal.
Era uma sala vasta, com teto de catedral e janelas altas que mostravam o jardim sombrio. No centro, uma mesa de jantar gigantesca feita de uma única placa de obsidiana, lisa como um lago congelado à noite.
A única pessoa visível era uma criada alta, de cabelo ciano, parada imóvel como uma estátua no canto.
Mas Acara sentiu antes de ver.
A pressão.
Era pesada. Uma sombra opressiva, física, que parecia ter revestido as paredes do salão com chumbo. O ar tinha gosto de estática e medo.
— …Olha só. — disse ela, parando na entrada, com um sorriso torto e perigoso. — O que você quer comigo, hein…? Noctys Vairen.
Ele estava ali.
Encostado na parede, meio fundido à penumbra, como se a sombra fosse uma extensão de sua roupa.
Cabelos negros e ondulados, caóticos, emolduravam um rosto pálido e angular.
O sobretudo escuro que usava parecia feito de retalhos de noite, adornado com símbolos arcanos que brilhavam fraco. Ao redor dele, pequenas criaturas — olhos com asas de morcego, bolhas de escuridão — flutuavam e estouravam silenciosamente.
Mas eram os olhos.
Púrpura. Brilhantes.
Especialmente o esquerdo. Ele pulsava com uma intensidade maligna, a pupila dilatando e contraindo num ritmo diferente do direito. Era como se uma besta estivesse espreitando através daquele olho, tentando sair.
— Só vim dar um “oi”. Não precisa ficar nervosa, priminha… — disse ele. A voz era arrastada, rouca, como lixa em veludo.
Ele levantou a mão devagar.
A manga larga do casaco escorregou.
Revelando a pele pálida do antebraço.
E lá, marcado a ferro, brilhando com uma luz negra:
O Número 8.
— Deveria mostrar mais respeito a alguém no Rank 8… não acha?
Acara não piscou.
Ela atravessou o espaço do salão em dois passos. A velocidade foi tamanha que o ar estalou.
PLAFT!
Ela deu um soco — um cascudo violento — no topo da cabeça dele. O estalo seco ecoou pelo salão nobre.
— Cala a boca, seu idiota.
Noctys fez uma careta, encolhendo-se exageradamente. A aura assassina sumiu, substituída por uma reclamação manhosa. Ele massageou o cocuruto.
— Ai, ai… que violência doméstica! Eu sou visita, sabia? Só vim mesmo pra descansar um pouco. As Camadas Negativas estão barulhentas demais ultimamente. Nada demais, prometo.
Acara o encarou. Os olhos dela estavam semicerrados, analisando cada microexpressão dele. O sorriso dela sumiu devagar.
“Esse lunático… aparecendo aqui do nada? Justo agora que a Vena ressurgiu? Vindo direto das profundezas? Isso não cheira nada bem…”
A aura ao redor de Noctys se agitou levemente, as pequenas criaturas de sombra sibilando, como se ele tivesse lido os pensamentos dela.
Acara cruzou os braços, a postura rígida. Ela não abaixou a guarda.
— Fique o quanto quiser. A casa é grande. — Ela se virou para sair, mas parou e olhou por cima do ombro, os olhos roxos brilhando. — Mas não pense, nem por um segundo, que eu não estou de olho em você, Noctys. Se você fizer bagunça no meu tapete… eu te mato.
Ele apenas sorriu.
Um sorriso largo, cheio de dentes, que não prometia paz. Prometia caos.
— Eu não esperaria menos de você, Acara.

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