Capítulo 29: Lysanthir Vauz
Perspectiva Lysanthir Vauz
Desde que me entendo por gente… sempre fui chamado de talento nato.
Prodígio.
Essas palavras me cercaram como uma segunda pele, antes mesmo de eu entender o peso que carregavam.
Nasci na Camada 2, em Vanaheim, nas províncias do Clã da Luz — especificamente, na linhagem Vauz.
Não éramos da elite, mas nossa família carregava vestígios diretos da linhagem principal. Isso, por si só, já bastava para que a expectativa me esmagasse desde o berço.
Desde cedo, a cena se repetia como um ciclo eterno: meus adversários caídos ao chão, ofegantes, derrotados…
E eu, em pé, observando com olhos indiferentes.
Lembrava das vozes ao redor:
— Lysanthir é um prodígio.
— Ele vai se tornar um dos melhores do Clã da Luz.
— Um verdadeiro gênio.
— O futuro maioral do nosso povo.
Aquilo não me enchia de orgulho.
Não me empolgava.
Era apenas… inevitável.
E assim, eu cresci.
Cada célula do meu corpo parecia pulsar com poder. Meu código genético não era comum — eu havia herdado uma das habilidades mais raras do clã:
“A Criação de Armas de Luz.”
Uma arte sagrada. Um dom reservado a pouquíssimos. E, em minhas mãos, ela florescia com perfeição quase cruel.
Anos se passaram.
Entrei para a Academia Oriniel, localizada na Camada 3 — Vanaheim — a mais prestigiada instituição de formação de guerreiros, intelectuais e estrategistas. Ali, apenas os melhores sobreviviam.
E eu era um deles. Um dos melhores.
Certo dia, fui chamado à sala dos avaliadores principais. A luz da sala refletia em espelhos que se adaptavam à presença de energia vital, e a atmosfera ali era sempre densa, cheia de olhos invisíveis.
O diretor, um homem rígido, mas justo, leu meu relatório final com um sorriso discreto.
— Lysanthir… meus parabéns. Suas notas são as melhores dos últimos dez anos. Cem em quase todas as disciplinas, e no combate, você demonstra um domínio que beira o absurdo.
Ele fez uma pausa.
— Você irá se tornar um grande homem, sem dúvida.
Mas, no fundo…
Eu nunca fiz aquilo por glória.
Havia apenas uma pessoa que eu queria alcançar.
Minha mãe.
Erika Vauz.
Lembro dela com clareza cristalina.
Cabelos brancos como a neve de Helgard, olhos dourados como o próprio sol. Sua beleza era como uma lenda viva, mas não era isso que a tornava grande.
Ela era uma das generais do exército dos Três Palácios, e seu nome era sussurrado com respeito até mesmo entre os mais poderosos.
Numa noite, quando eu ainda era jovem, ela se ajoelhou ao meu lado. O luar iluminava seu rosto com uma delicadeza quase divina. E ela disse:
— Meu filho… você é talentoso. E isso é raro.
— Mas lembre-se: os que você vencer na vida não são fracos. Apenas tiveram a infelicidade de cruzar o caminho de alguém como você.
— Nunca subestime um inimigo. Nunca.
Aquelas palavras foram poucas…
Mas sinceras.
E tatuaram-se na minha alma como fogo.
Anos depois, ao me formar, fui chamado pela família Svet — a linhagem principal do Clã da Luz. Era como um selo de aprovação dos céus.
Me vi então na mansão principal, em uma sala vasta, silenciosa e etérea.
O ambiente era banhado por uma brisa suave, oriunda dos campos que cercavam o palácio. Tapeçarias douradas pendiam das paredes, dançando levemente com o vento. Espelhos de luz se ativavam à medida que reconheciam os laços de sangue, lançando reflexos místicos ao redor. Estátuas de antigos criadores e mestres dominavam os cantos, como sentinelas silenciosas.
E ali, sentado à minha frente, estava o homem que liderava o clã naquele tempo:
Balder Svet.
Sua presença era como a de uma estrela anciã. Majestosa, austera, carregada de séculos de tradição.
Ele me observou com olhos de quem já viu mundos desabarem.
— Lysanthir Vauz… — sua voz ecoou pela sala, grave e carregada de solenidade.
— Quero, humildemente, fazer um pedido.
Ele se levantou, cruzou a sala com passos lentos, até parar diante de mim.
— Quero que você treine meu único filho.
— O herdeiro deste clã.
Por um momento, não respondi.
Havia orgulho ali. Mas também… um estranho pressentimento.
Como se aquele pedido fosse mais do que um simples treinamento.
Como se algo estivesse para começar.
Depois de alguns dias na mansão Svet, finalmente conheci o filho do chefe do clã.
Lucios Svet.
Ele parecia… frágil.
Seus traços eram delicados, quase etéreos. Se não soubesse quem era, poderia jurar que era uma garota. Pele alva como porcelana antiga, olhos pálidos e translúcidos como cristais polidos sob a luz, cabelos dourados perfeitamente cortados em linha reta, caindo até os ombros. As orelhas, levemente pontudas, evocavam os elfos antigos — seres lendários que só existiam nos livros das bibliotecas. Ainda assim, ele não era de nenhuma raça mística. Era humano. E mesmo assim… havia algo de celestial nele.
Vestia-se sempre com trajes cerimoniais brancos, adornados com finos bordados dourados. Sobre os ombros, carregava um manto pesado, marcado com o brasão da família Svet — uma estrela de oito pontas atravessada por uma lâmina de luz. Um lembrete de quem ele era, e de quem não podia deixar de ser.
Mas ele era apenas uma criança.
— Só tem dez anos… — murmurei comigo mesmo, no dia em que o vi pela primeira vez.
E o que pensei, olhando para ele, foi simples:
“Que pena.”
Porque sua vida já havia sido decidida no momento em que nasceu.
Mas como era de se esperar… Lucios era um prodígio.
No primeiro mês de treinamento, ele conseguiu algo surpreendente.
Me arranhou.
Um corte fino, imperceptível para muitos… mas profundo o bastante para ferir meu orgulho. Ele só usara uma das mãos. Um movimento casual, como se não estivesse tentando. E mesmo assim… sua manipulação de luz beirava o impossível. A precisão, a elegância, a força contida. Aquilo era… anormal.
Treinei Lucios por um ano inteiro.
E, então, quando completei dezenove anos, fui dispensado.
Balder Svet me recebeu pessoalmente na mesma sala da primeira vez. O mesmo ar limpo, o mesmo cheiro de incenso dourado, os espelhos de luz ainda reverberando suavemente com a presença do clã.
Ele olhou nos meus olhos com uma expressão calma, quase gentil.
— Não me entenda mal, Lysanthir. Você foi um excelente mentor… Mas agora Lucios precisa de algo além. Ele precisa… evoluir. Ainda mais.
As palavras foram cortantes, mas sua entrega foi polida como uma espada cerimonial.
Fui embora com uma carta de recomendação pessoal da família Svet. Um selo dourado em alto relevo do clã da luz me garantia uma vaga como professor na academia Oriniel — a mesma academia em que me formei.
Ensinei lá por um ano.
Foram os dias mais leves da minha vida adulta. Pela primeira vez, sentia que estava trilhando meu próprio caminho.
Até que o mundo desabou.
— Sua mãe… foi assassinada. Nas camadas negativas. Por demônios…
As palavras foram sussurradas como uma sentença. Quando estenderam o anel que ela sempre usava — aquele com a pedra âmbar entalhada —, senti o chão desaparecer sob meus pés.
Passei dias recluso, trancado em casa. As paredes pareciam mais estreitas a cada amanhecer, como se quisessem esmagar meu peito.
Até que ele apareceu.
Aesyr D’Vharan.
Um homem que dizia vir do Palácio Esmeralda. Um dos três grandes palácios do mundo.
Seus cabelos eram longos, de um verde profundo que parecia brilhar sob qualquer luz. Os olhos tinham um tom musgo estranho — vibrantes, porém densos, como se escondessem florestas inteiras atrás das pupilas. Usava um robe que deixava seu peitoral musculoso à mostra, e cada passo que dava parecia ser medido. Preciso. Quase ritualístico.
— Você é o filho de Erika Vauz, não é? — ele disse, com um meio sorriso no rosto. — Imagino que não esteja num bom momento. Mesmo assim… vim te pedir um favor.
— Que tipo de favor…? — respondi, minha voz seca e fraca.
— Quero que lidere uma expedição de investigação às camadas negativas.
— Investigar…? — franzi o cenho. — Eu nunca estive nas camadas negativas.
Ele inclinou levemente a cabeça, como se fosse óbvio.
— E por isso mesmo você deve ir. Sua mãe era uma general dos Três Palácios… e como tal mãe, tal filho. Você é o mais qualificado.
Hesitei.
— Eu… não sei se…
— Ora, ora — ele sorriu, e havia algo de sinistro naquilo — eu irei te ensinar direitinho, Lysanthir Vauz.
Meses se passaram. Treinei. Estudei. Me preparei.
E, por fim, desci.
Camada 10 — Muspelheim.
O ar era pesado, sufocante. Respirar era um esforço constante. As favelas se amontoavam como um tumor que se recusava a morrer. Crianças esquálidas nos observavam das sombras, olhos famintos e vazios. Homens de rostos marcados pelo tempo e pela dor repousavam no chão como se já tivessem aceitado o fim.
Fumaça negra saía de chaminés improvisadas, tingindo o céu de um cinza perpetuamente sujo.
E no meio de tudo aquilo, Aesyr D’Vharan caminhava como uma figura divina. Cada passo que dava parecia afastar a podridão ao redor, mesmo que por um instante. Ele era… uma luz. Uma presença absurda naquele abismo.
Mas havia algo estranho.
Muito estranho.
O nome dele… Aesyr D’Vharan.
Era quase idêntico ao nome do rei do Palácio Esmeralda.
Mas como eu nunca vi o verdadeiro rei, não poderia afirmar.
Ainda assim, um arrepio me percorria a espinha toda vez que ele dizia seu próprio nome com aquele sorriso ambíguo.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.